Texto Alexandra Iarussi
A estreia do surf nas Olimpíadas e a extraordinária conquista do garoto potiguar nascido em uma vila de pescadores, Italo Ferreira, foram com certeza um marco importante na história competitiva desta arte milenar.
E como esquecer da bateria da semifinal entre Gabriel Medina e Kanoa Igarashi? Quando enfim os embates julgamentais que há décadas permeiam a faceta competitiva do surf foram descortinados às massas.
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Definitivamente, os Jogos de Tóquio inseriram novo capítulo na história do esporte, mesmo sabendo que o cara mais Aloha de todos, o lendário Duke Kahanamoku, já havia mirado isso muito antes de Fernando Aguerre e de algum outro jeito muito espontâneo, lá no século 20, durante suas exibições de natação em quatro Olimpíadas.
Fluindo pelas piscinas do nosso consciente e inconsciente de surfista que ama as ondas muito antes de adorar competição, nos perguntamos qual impacto nos causa o surf nas Olimpíadas. Afinal, o que sente nosso coração, que ama o formato das ondas, vendo o surf em um dos eventos esportivos mais importantes do mundo? Quais serão os benefícios tangíveis ao surf?
Com maior fissura de perguntas do que respostas, fomos, despretensiosos, atrás de três especialistas e perguntamos a eles o quê acham do surf nas Olimpíadas.
A seguir, James Brasil – surfista e ex-colunista da Revista Hardcore; Brigitte Mayer – ex-surfista profissional (a primeira brasileira a disputar circuito profissional), ex-conselheira da Associação Brasileira de Surf Profissional (Abrasp) e ex-presidente da Abrasp, uma mulher pioneira que sempre lutou pela igualdade das mulheres no surf; e Alex Guaraná (ex-top brasileiro, jornalista e comentarista) contam o que acham.
Cada conversa enveredou para caminhos diferentes. Mais do que respostas assertivas sobre desfechos do surf olímpico do surf, você confere a seguir uma série de novos horizontes diante de assuntos que merecem debate.
“São os Jogos Olímpicos que precisam MUITO do surf e do skate,” aponta James Brasil
“Sinceramente? Não dou a mínima para o surf nos Jogos Olímpicos,” inicia James B.
“Venho de uma geração que sempre considerou underground sua relação com surf. E os Jogos Olímpicos, com todas as regras, inibições e controles, vão na contramão do que é o surf para mim. Não que a WSL não tenha regras, inibições e controles sobre os quais discordo diretamente, mas em minha humilde opinião, surf nas Olimpíadas não faz a menor diferença,” diz James Brasil.
James, que adora competição de surf, conta que caso houvesse conflito de datas entre o circuito mundial em Barra de La Cruz e as Olimpíadas, provavelmente não acompanharia os Jogos em Tóquio.
“Posso apenas ser mais um daqueles dinossauros que sonha com o surf como ele era décadas atrás e não lida tão bem com a realidade. Adoraria ver esse boom no esporte causado pela exposição nas Olimpíadas se transformar em dinheiro para nossa mídia especializada que tem sido tão abalada nos últimos anos. Seria muito bom se isso se tornasse catalisador para novos eventos locais, patrocínios a atletas de base e profissionais. Mas no meu ceticismo, cinismo e cretinismo, acho que só os atletas da ponta de cima do iceberg, que já são os que dominam o mercado atualmente, ganham com o surf nas Olimpíadas. Oremos para que eu esteja errado.”
No caminho do underground, o papo vai para o skate e uma comparação entre o surfista e o skatista é inevitável.
Conversamos sobre o protesto dos skatistas brasileiros [Pedro Barros, Pedro Quintas e Luiz Francisco] no Dew Tour, nos EUA, que indignados com os juízes após verem as notas do norte-americano Tom Schaar, protestaram em suas voltas finais – veja mais no vídeo abaixo:
James disse que foi sensacional o comportamento dos skatistas. “Rebelde, justo e underground, mesmo estando no mainstream. Essa é a pegada e a atitude de um skatista. No surf, deveria (ou pelo menos poderia) ser assim também,” ele completa.
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O underground vem à tona quando James fala do quanto as Olimpíadas precisam do surf e do skate [como também disse Tony Hawk] e não o contrário.
“Os Jogos Olímpicos são uma competição velha, ultrapassada e com um monte de esportes que ninguém curte ou escuta falar a não ser durante os Jogos, a cada quatro anos. Com todo respeito, mas pentatlo? Arremesso de disco, de dardo, marcha atlética? Os Jogos Olímpicos precisam urgentemente, compulsivamente, desesperadamente serem rejuvenescidos e se conectarem a um novo e jovem público. Então, na real, são os Jogos Olímpicos que precisam MUITO do surfe e do skate.”
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O legado olímpico, segundo James, reúne a equação de grupos específicos se dando bem com uma cadeia defasada.
“A WSL talvez venha a ganhar de bandeja uma nova audiência pós-Jogos. Dou crédito à ISA e ao Fernando Aguerre por isso. Atletas olímpicos também terão muita exposição de mídia, o que pode ajudá-los renovar ou negociar novos contratos. A CBSURF morderá uma verba muito grande do COI e do COB para os Jogos seguintes. Agora que virá muito dinheiro, quem está dentro não quer largar o osso e quem está fora quer entrar no game. Além desses três grupos de interesse, não vejo ganho potencial seguro para o restante da cadeia do esporte.”
“O surf olímpico pode abrir muitas portas,” diz Brigitte Mayer
De início apreensiva com o surf nas Olimpíadas, sobretudo por divergir da (possível) realização da competição em ondas artificiais [ela julga que isso se refletiria em uma antítese do próprio surf, com tantas nuances e espontaneidade de uma bateria no mar] Mayer se viu em um dilema, “mas me rendi”, ela afirma.
“Existe espaço para o esporte nos Jogos Olímpicos e confesso que quando eu era jovem, o meu sonho, antes de começar surfar, era ir para uma Olimpíada. Como espírito olímpico, foi incrível, mesmo com ondas horrorosas. Se o pico merecia a estreia do surf? Não sei! No final, as estrelas do evento foram brasileiras, teve emoção até o último segundo e mostramos ao mundo um pouco do nosso lifestyle.”
Mayer diz que hoje se considera fã do esporte e enxerga nas Olimpíadas excelente oportunidade para fomentar as hoje tão abaladas estruturas do surf no país. Ela relembra que a geração “Brazilian Storm” vêm justamente de uma época em que as estruturas internas de fomento ao esporte funcionavam.
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“Gabriel Medina, Italo Ferreira, Filipe Toledo; lembro de ter visto todos esses garotos competindo lá atrás. O Mineiro, por exemplo, com 11 anos, já deveria ir para o Havaí há muito tempo. Hoje qual é a menina de 11 anos indo para o Havaí? Não precisa nem ir tão longe: qual menina de 11 anos está indo para o Peru surfar onda performance?,” questiona.
Interpelo Mayer respondendo que apenas as que têm esse privilégio, são as que já nascem em berço de ouro. Nesse papo de oportunidades, resgato um de nossos talentos femininos, na minha opinião desperdiçados, a Julia Santos, do Guarujá.
Mayer responde dizendo que em nosso extenso litoral já perdemos vários atletas ao longo dos anos e que em matéria de surf feminino, infelizmente foram perdidas de duas a três gerações de talentos.
Acredito que perdemos essas gerações que não tiveram oportunidades e talvez agora seja tarde. Quem sabe com a regionalização dos eventos mundiais a gente tenha melhores possibilidades. Mas com o dólar do jeito que está, se algo não acontecer, vai ser difícil. Espero poder assistir e de alguma forma contribuir para mais oportunidades tanto no surf feminino quanto no masculino. Eu fui uma que teve oportunidades, e nem um décimo de talento eu tinha comparando com o material que temos. As oportunidades precisam ser criadas.”
“Foi legal, mas a derrota do Medina teve a mesma mídia que o ouro do Italo,” diz Alex Guaraná
Guaraná conta que na época em trabalhava em mídia de surf, era contra o surf nas Olimpíadas. Não por achar que o surf perderia sua raiz, segundo ele, mas por não concordar com a gerência da ISA – a International Surfing Association – no surf olímpico.
“Eu vim do surf amador, né? Conhecemos como se perpetua esse negócio de federação, confederação. E a ISA sempre foi algo familiar, nunca democrática ou transparente. Uma entidade dirigida pelo mesmo cara há quase 30 anos, e não acredito em nisso para evolução do esporte.”
Guaraná conta que mudou de ideia a partir do momento em que o negócio passou a trazer a liga mundial de surf. No entanto, após assistir aos Jogos de Tóquio e ter achado legal, ele diz que é urgente uma reestruturação política.
Para ele, parte política e técnica andam juntas e, no momento, não há juízes equiparados para formar um quadro olímpico.
“A estrutura política é nociva e precisa mudar. Exemplo: você pega os juízes da WSL e da ISA; eles não têm o mesmo nível de qualidade – hábito e conhecimento – para julgar a elite. Estou falando especificamente do Medina, tá? Nas duas baterias ele foi prejudicado e sabemos que sempre haverá subjetividade no surf, mas não tem cabimento um juiz dar 9.50 e o outro dar 7.50 em uma mesma onda, entende? Isso reflete falta de capacidade e não é culpa do juiz. Esse disparate é bem comum quando o quadro de juízes não está no mesmo nível. Passei minha vida competindo e isso é óbvio pra mim.”
Repercutindo a reforma política, Guaraná observa que a derrota de Medina acabou tendo a mesma mídia que o ouro do Italo. Para ele, foi tão positivo quanto negativo.
Além disso, ele prevê uma revisão do formato da escolha dos surfistas. Para o jornalista, mostrar a globalização do surf é incompatível com reunir os melhores surfistas do mundo.
“Ou você aumenta o número de surfistas participantes, ou coloca os melhores do mundo; faz uma seletiva, algo do tipo, porque a competição perde o sentido sem os melhores do mundo. Uma coisa é o surf ser praticado em 40 países do mundo; outra é esses caras terem nível para competir. Ainda bem que aconteceu em ondas como aquelas, mas, e uma onda extrema como Teahupoo, no Taiti, como vai ser? Tem surfista que simplesmente não vai conseguir surfar.”
Surfando a mesma onda que Mayer, Guaraná alerta para a importância em gerir o surf com competência, conhecimento e democratização, algo que segundo ele, não existe no Brasil.
“Se não me engano, a CBS recebeu 4 milhões de reais nesse ano, e o que que mudou? O que Medina, Italo, Tatiana e Silvana realmente tiveram de apoio para chegar às Olimpíadas? Quinze mil reais do COB pelo Bolsa-Atleta? Quinze mil reais não dá pra nada.”
Ele compara o surf ao vôlei de praia [que nessas Olimpíadas voltou para casa sem medalhas] analisando o presente, prevendo o futuro, e conclui: “Perdemos o bonde”.
Para o jornalista, hoje o surf está no mesmo nível que o vôlei de praia esteve há 10 anos, com uma porção de atletas ganhando tudo.
“Mas sabe o que acontece? A galera fica velha e, se não houver renovação, passa o carro do boi. Porque são ciclos. E te digo: estamos atrasados. Vivemos de coisa esporádica. Você não vê mais um garoto de 14, 15 anos, arrebentando em uma divisão de acesso como o QS. No momento não temos isso.”
Apontando para a falta de estrutura e fomento do surf no Brasil, Guaraná prossegue dizendo que desde meados dos anos 2000 vivemos de atletas que foram frutos de antes. E caso o Brasil continue com a mesma estrutura, podemos ganhar 88 medalhas de ouro que nada mudará.
“Se não tem evento amador, você não fomenta. Igual quando Guga Kuerten foi campeão de Rolland Garros. Depois dele, não se aproveitou nada com o tênis, não teve investimento e hoje nos contentamos com uma medalha de bronze em dupla. Vender mais roupa de surf não fará o surf resgatar àquilo que tinha antes dos anos 2000. Mais dinheiro ajuda marcas e empresários, mas não fará diferença. O que transmutará esse cenário, é uma galera afim de fazer coisas positivas, bem remunerada e cobrada por isso. Só que não temos esse tipo de pessoa e estamos aí, com 8 a 10 anos perdidos.”
Para Guaraná, após a medalha de ouro do Italo, não faltará investimento. Em meio à esta desestrutura, ele prevê incerteza para a continuação da Brazilian Storm, lembrando que fica em cheque também a potente tempestade para as próximas Olimpíadas, em 2024, que acontecem em Teahupoo, Taiti.
“Três anos é muito pouco tempo para fazer alguma coisa. Se você começar a fazer amanhã, colherá frutos daqui 5, 6 anos, se bobear em até mais tempo, 10 anos. Então estamos totalmente atrasados. Vivemos de uma galera que hoje arrebenta, mas e daqui a três anos? Não sabemos se Medina estará surfando; Italo competindo. Alguma hora os caras querem levar uma vida mais tranquila; fazer família, enfim, tem uma galera que já ganhou dinheiro suficiente para parar. E quando essa galera parar, como fica? Será que daqui três anos teremos surfista para fazer pódio? Não sei.”