Desde que me tornei surfista passei a ouvir uma frase que, apesar de verdadeira, sempre me incomodou bastante: “as mulheres estão evoluindo”.
Sabe aquele papo do “Brasil, país do futuro?”, pois bem, era mais ou menos uma frustração semelhante, vinda de um futuro que custava chegar.
Passei a me perguntar como gostaríamos de ver mulheres de alta performance se não houvesse investimento. Tampouco incentivo, uma vez que a falta dele reflete diretamente na ausência de prática. É tão simples.
Imagino que se tentar explicar ao meu filho prestes a completar quatro anos, ele será capaz de compreender.
Então, clara como a luz de uma manhã ensolarada de outono, se faz a relação entre oportunidade e evolução ou a falta dela e a estagnação.
Enquanto seguíamos na sombra, sem incentivo proativo capaz de ampliar e disseminar o surf feminino profissional no país; os brasileiros invadiam literalmente o CT.
Era a era “Brazilian Storm”. Se os homens eram tempestade, mulheres mal eram brisa úmida de manhã com vento terral.
Julia Santos, ex-campeã brasileira, é outro exemplo de talento com potencial para voos ainda mais altos. Foto: Guadalupe.
Meses atrás a jornalista, escritora e surfista Mindy Pennybacker me perguntou: “Janaína, por que há tantos brasileiros que chegam ao CT e tão poucas brasileiras?”
Conheci Mindy através da internet. Em uma entrevista, ela expôs seu ponto de vista sobre o machismo no surf. Fiquei tão fascinada com a fala dela, que entrei em contato.
Mindy foi a primeira pessoa que ouvi falar abertamente sobre a relação do dinheiro e o boicote sistemático às mulheres no surf. Ela explica que desde que o surf virou um produto lucrativo, a partir do século XX, mulheres foram boicotadas.
Apesar da pergunta dela parecer óbvia e pertinente, causou dor: “uau, até lá fora percebem nossa ausência!”
Então, respondi que a ausência de brasileiras no CT era reflexo de muitas coisas que, basicamente, tinham como origem o machismo, que inviabilizou de diversas maneiras (direta e indiretamente) a evolução do surf feminino no Brasil.
É claro que não é possível colocar a conta desse atraso todo só no machismo, mas todas as vezes que me questiono, é nele que encontro origem.
Homens tendem a se arriscar mais e o surf é um esporte de risco. Esse é um ponto. As mulheres precisam ver outras mulheres para compreender que é possível se arriscar também.
Historicamente, mulheres ocupam um papel na sociedade mais voltado ao cuidado, ao zelo. Enquanto ao homem a aventura, “o sair de casa”.
Porém, nem todas as civilizações foram assim, e se adentrarmos na questão antropológica também encontramos a influência do patriarcado que determinou papéis às mulheres desde sempre.
Para quebrar paradigmas é preciso esforço, dedicação e representatividade. E é justamente isso que tem ocorrido nos dias de hoje com relação ao surf feminino.
No Brasil, porém, parecem continuar menosprezando a batalha da mulher. Recentemente, o Ubatuba Pro Surf, campeonato que já revelou campeões mundiais, premiou as mulheres da categoria profissional com METADE do valor dado aos rapazes.
A justificativa é a falta de aderência e interesse das próprias mulheres. Agora pergunto: existe uma vontade genuína em investir no surf de base feminino? Existem programas municipais olhando para essa questão? Acham normal que não existam mulheres interessadas em surf competitivo numa cidade como Ubatuba?
Eu não tenho e nem pretendo ter todas as respostas. Mas me obrigo a fazer o exercício da indagação quando me deparo com situações estranhas como esta.
Uma vez que o surf feminino profissional não evolui, não há aumento substancial de atletas, títulos ou atenção.
Lembrei-me agora de uma fala vinda de um dirigente de confederação, em minha estreia no jornalismo especializado de surf. Parece que ela foi dita há anos, de tão retrógrada que soa.
“O surf feminino precisa de um personagem, uma linda surfista, que além de surfar, seja modelo, que ela tenha o poder de levar o surf para a massa da população e não só atingir o nicho que já existe e consome o esporte.”
Há um percurso de luta sendo traçado por mulheres como Pauline Menczer, Wendy Botha, Frieda Zamba e Keala, que abertamente se posicionaram e seguem se posicionando contra a opressão e a desigualdade a que as mulheres foram e são submetidas, seja no surf ou na sociedade.
Mas não convém se prender ao passado.
É preciso reconhecer e seguir adiante, com passos firmes, em direção a relações mais justas entre homens e mulheres.
De fato, há uma espécie de revolução das mulheres no surf profissional, e estamos com olhar atento sobre como isso vai refletir no país.
É uma pena que tudo isso ainda esteja resumido a uma cena internacional, já que no Brasil a realidade parece transcorrer atrasada como sempre.
Basta olhar para o ranking de acesso da principal liga mundial de surf, o Challenger Series 2024, trampolim para o CT, no qual a brasileira nascida e criada no Brasil (importante essa distinção, já que o recorte é sobre oportunidade e investimento em território nacional) melhor colocada é Sophia Medina, que ocupa a décima oitava posição.
Vale dizer que Medina, quando iniciou no mundo do surf de competição, não era necessariamente a garota mais talentosa e traçando um paralelo com Adriano de Souza, ela dispôs de estrutura que envolve treino, saúde física, mental e boa nutrição. Ela teve oportunidades e se agarrou a elas.
Ainda há muito o que ser feito. Inclusive iniciar o diálogo acerca do número de mulheres nos mundiais, que é sempre menor.
Se você chegou até aqui, parabéns! Você é um guerreiro que certamente está do lado das mulheres nessa luta incessante por respeito e igualdade.