Kelly Slater vai se aposentar; penso que desta vez seja mesmo pra valer. A informação chegou com leveza, mas suscitou sentimentos conflitantes. Já era hora de Kelly relaxar e deixar o circuito, sem dúvida. Acredito que ninguém espera algo diferente de alguém que competiu por três décadas em um esporte extremamente desgastante e altamente exigente. Por outro lado, não há como lamentar o fato de que a maior estrela do surf mundial esteja saindo de cena.
Slater nasceu em 1972, na Flórida, e o surf veio cedo, aos 5 anos de idade. Mais tarde, o surfista revelaria ao mundo que o esporte funcionou, para além de seus benefícios convencionais, como uma válvula de escape ao lidar com problemas pessoais, muitos deles gerados pela doença do pai alcoólatra. Além de um surfista habilidoso, Kelly sempre foi de uma beleza hipnotizante. E foi assim que me agarrei à fantasia de um amor platônico.
Nos anos 90, Kelly Slater transcendeu o surf, ocupando espaços normalmente reservados a artistas de cinema e astros da música, como a capa da badalada revista novaiorquina Interview. Foto: Bruce Weber.
Era o final dos anos noventa, enquanto fazia cursinho na Av. Paulista, com a esperança de entrar em alguma federal perto do mar, que parei em uma banca qualquer. Sempre adorei bancas de jornal, era capaz de gastar horas em uma boa banca. A Paulista, àquela época, costumava abrigar as melhores da capital. E foi justamente em uma delas que encontrei um VHS que mudou minha vida.
A fita, que vinha junto à extinta Revista Inside, era um compilado de cenas de Kelly Slater surfando na onda mais perfeita do mundo, Jeffreys Bay; aquilo era poesia e aula. Era o ápice da estética surfística. Passava horas assistindo aquele homem desenhar linhas perfeitas nas intermináveis direitas gélidas. Seus arcos, sua destreza, sua conexão com a prancha, que parecia ser parte do seu corpo, me faziam pensar que nada deveria ser diferente daquilo, tratando-se de surf. Seria alguém capaz de fazer melhor? Na época, não.
Para além da beleza do surf, era impossível não ficar apaixonada pelos pares de olhos verdes, ombros largos e músculos esculpidos aos olhos e aprovação de Afrodite. Era o mais belo e, para uma adolescente, isso fazia uma enorme diferença.
Assim, me apaixonei por Kelly. É verdade que vieram decepções, muitas, e em uma fase em que a paixão platônica era arrefecida, restou-me a admiração pelo surfista que marcou uma era inteira, deixando um legado que é impossível ser comparado a quem quer que seja, em nenhuma modalidade esportiva, diga-se de passagem.
Kelly Slater em sessão de fressurf em J-Bay, fazendo o que sabe fazer melhor. Julho de 2017. Foto WSL / Pierre Tostee
Kelly decepcionou quando defendeu a sanguinária ideia de abate de tubarões, quando parou de competir no Brasil, quando pareceu estar mais preocupado com o palanque de redes sociais do que com o surf, quando negou a importância da ciência no combate à maior pandemia do século, que matou ao menos 7 milhões de pessoas em todo o mundo.
Ninguém é perfeito, nem Kelly Slater. Com todas as contradições inerentes a todos nós, seres humanos, resta agradecer ao enorme legado, dedicação e ímpeto com que esse homem se dedicou ao surfe durante uma vida inteira.
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A história e a importância de Kelly Slater não terminam aqui; é apenas o início de um novo capítulo.