Rodrigo Matsuda, primeiro brasileiro a assumir a tradicional escola de carpinteria Suikoushya, do Japão, conta mais sobre a arte de fazer pranchas em madeira, utilizando técnicas milenares
Em uma das minhas recentes visitas à São Paulo capital, tive a oportunidade única de conhecer as pranchas de madeira criadas pelo artista, surfista e shaper Rodrigo Matsuda, em uma colaboração especial com a Deus Ex Machina. Poucas vezes na vida me emocionei ao ver uma prancha de surf. Se excluirmos a memória carinhosa da minha primeira prancha – uma 6’1, square, azul calcinha, presente de minha mãe –, nunca havia tido um encontro tão memorável com esses objetos, até que vi as obras-primas de Matsuda.
Ao ver as pranchas, senti uma conexão estranha, embora não pudesse tocá-las devido a um aviso que recomendava chamar um vendedor, podia sentir uma espécie de “vida” naqueles objetos.
Na entrevista a seguir, Rodrigo Matsuda compartilha sua jornada, desde os primeiros passos em São Paulo até a consagração como shaper no Japão. Ele revela como suas raízes brasileiras e japonesas influenciaram sua arte e fala sobre a filosofia por trás de cada prancha que cria.
JP – Como foi sua infância? Onde você cresceu?
RM – Nasci em São Paulo e durante minha adolescência me mudei para o Guarujá. Meus avós vieram do Japão, são nascidos na Ilha de Okinawa. Meu pai foi professor de judô em São Paulo durante toda a vida. Sempre pratiquei esportes, mas tinha um grande interesse pelas artes. Lembro que uma tia frequentemente me levava a museus, o que eu adorava. Apesar de praticar esportes, a arte sempre me atraiu mais. Comecei a surfar aos 13 anos. Meus primos mais velhos já surfavam, e o que realmente me fascinou foram as pranchas, quem as fazia e por que havia tantos modelos.
Era o artista falando mais alto desde a infância?
Sim. Sempre foi algo natural. Perguntava-me quem fazia as pranchas, os detalhes delas. Nas visitas ao museu, gostava de observar as artes, tentar descobrir coisas diferentes, interpretando-as de várias formas.
A mudança para o Japão foi em 2000?
Isso. Eu estudava Desenho Industrial em São Paulo, mas tranquei o curso e vim para o Japão com a intenção de trabalhar. Naquela época, a faculdade de artes era cara. Planejava ficar no Japão por um ano e meio para juntar dinheiro e depois retornar. Mas, ao chegar aqui, tudo mudou. A adaptação inicial foi difícil, mas acabei me sentindo mais à vontade no Japão. Sou brasileiro, amo o Brasil, mas sinto algo muito especial aqui no Japão.
Você tem essa ligação com as origens, se pensar na prancha de madeira, é uma espécie de resgate da prancha de surf. Pode falar sobre sua busca pela origem?
Quando comecei a surfar e perceber meu gosto por trabalhos manuais e arte, relacionei isso com a cultura japonesa. Quando temos um hobby, costumamos estudar como as coisas surgiram. Nessas pesquisas, descobri as primeiras pranchas havaianas feitas de madeira e óleo. Contei para minha mãe que queria fazer pranchas, mas ela ficou preocupada, pois eu tinha bronquite e acreditava que isso me faria mal. Fazer pranchas de madeira foi uma alternativa que encontrei.
Além do resgate, a madeira acaba sendo mais ecológica. Pode falar mais sobre a madeira e, especificamente, sobre as pranchas feitas em colaboração com a Deus Ex Machina?
Vim para o Japão em 2000 e fiquei por 10 anos, trabalhando e fazendo cursos de técnicas tradicionais japonesas. Aprendi a fazer pranchas de surf aqui. Desta vez, estou há cinco anos direto no Japão. Inicialmente, ficaria apenas seis meses para fazer uma exposição de pranchas, mas comecei a receber muitos pedidos de encomendas e acabei ficando. Faço pranchas todos os dias em uma sala de shape que construí. Estudei numa escola tradicional de construção de templos e casas antigas chamada Suikoushya, onde não se usa ferramentas elétricas, pregos ou lixas, apenas formões e ferramentas tradicionais japonesas. Em 2019, fui aluno e, naquele ano, o fundador da escola me convidou para ser assistente. No início de 2024, assumi como professor principal na escola de Kyoto e tenho minha sala de shape lá. Sou o primeiro brasileiro a assumir uma escola de técnicas japonesas e o único da América do Sul que já estudou lá.
Qual a técnica utilizada nas suas pranchas?
Utilizo boa parte das técnicas japonesas, mas faço uma mescla, pois preciso dar concaves, etc. Também há a filosofia japonesa dos artesãos, a seriedade ao receber uma encomenda, analisar o perfil do surfista, onde ele vai surfar e fazer a melhor prancha possível. Uso todo o meu conhecimento em cada prancha que faço. Minhas primeiras pranchas eram ocas, fiz muitas alaias, mas hoje uso um sistema a vácuo com a madeira. Uso esse sistema seis a sete vezes por prancha. Cerca de 60 a 70% da prancha é madeira.
Há uma ligação espiritual com as madeiras utilizadas?
Sim. Quando as madeiras são cortadas, realiza-se uma cerimônia de agradecimento à natureza. Colocamos arroz e saquê e jogamos saquê na terra como oferenda aos deuses, uma forma de agradecer e retribuir o que nos dão. Até a pessoa que corta a árvore é um artesão, pois existe uma técnica específica de corte. Eu escolho as partes mais leves e flexíveis, mais adequadas para as pranchas.
A cortiça é puramente estética ou tem função específica?
Há anos desenvolvo esse sistema e percebi que, dentro da água, com a borda de madeira, a prancha ficava mais dura ao surfar e fazer curvas. Precisava de mais flexibilidade, e com a cortiça consegui a maleabilidade necessária.
Pode falar um pouco sobre a parceria com a Deus?
Sempre admirei a Deus por perceber o bom gosto dos produtos e colaborações com shapers que eram meus ídolos. Acabamos tendo um contato mútuo para fazer algo especial. Faço pranchas há 18 anos e o que mais me deixou feliz foi a liberdade que tive nessa colaboração. Isso é raro e me motivou a criar o melhor que pude para apresentar ao Brasil, dedicando todo o meu conhecimento adquirido até hoje. Essa liberdade que eles me deram reflete o conceito genuíno da marca. Foram seis pranchas, tanto em número quanto em modelos, tudo escolhido por mim.
As pranchas custam cerca de 14 mil reais. Como você vê a relação entre o valor das pranchas e a forma como o público entende e valoriza o processo de criação? Vê algo mais acessível no futuro?
Esse assunto é interessante porque, quando fazia pranchas no Brasil e cheguei no Japão, chamavam minha atenção pelo valor que eu praticava, que estava muito abaixo. O respeito pelo tempo e técnicas aplicados em um produto me fez trabalhar mentalmente para aceitar e acreditar no valor das minhas pranchas. Sei que são caras, mas tenho pranchas standard com preços mais acessíveis. Meu objetivo é ver mais pranchas no mar. Estou testando novos materiais, não quero que as pranchas de madeira se tornem apenas peças de museu. Quero quebrar o conceito de que pranchas de madeira não são boas e são pesadas. Quero fazer pranchas de performance.
Finalmente, como foi vir ao Brasil?
Estou tão imerso e focado no Japão que sempre pensava no Brasil como algo para um dia. Mas, com essa colaboração com a Deus, senti que precisava pisar no Brasil para lembrar a energia diferente daqui. Tenho um compromisso de sempre voltar e respeitar a energia daqui. Entrei no mar zero hora no Guarujá e encontrei a mesma galera de sempre. Foi incrível!