Bem, não foi exatamente surfar o que nós fizemos em nossa visita ao Lago Atitlan, considerado o coração Maia da América Central. Mas não faltou adrenalina, e nem drops insanos, como quando, do nada, perdi o freio da minha minivan na descida de uma serra pra lá de íngreme, e quase partimos dessa para outra. Viagens de surfe para mim sempre foram muito mais do que só pegar onda. Ainda que essa seja a principal razão, as oportunidades de conhecer novas paisagens e culturas têm de ser aproveitadas. Depois de surfar Barra de La Cruz, no México, sob a luz da lua cheia – como contei na coluna anterior de Pan-American Soul – meu filho Keone e eu optamos por nos distanciar da praia por alguns dias, para uma viagem de volta ao passado entre os vulcões da Guatemala.
texto e fotos por Adrian Kojin / Editor Especial da HARDCORE
Após termos cruzado a fronteira, nos restavam apenas quatro dias antes da partida do Keone para o Brasil, com embarque previsto para a Cidade da Guatemala. O que nos fez priorizar subir para as montanhas sem nem antes dar uma checada no litoral. A verdade é que a Guatemala tem muito mais onda do que a maioria das pessoas sabe a respeito, mas nada realmente espetacular. Principalmente para quem, como nós, vinha de várias semanas pingando de pico perfeito para pico mais perfeito ainda, ao longo do privilegiado litoral mexicano.
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Também não ajudava o país ter sido atingido pelas chuvas torrenciais do furacão Julia justo no dia anterior à nossa chegada, provocando inundações em vários dos lugarejos e estradas ao longo da costa. Foi a quarta tormenta furiosa que enfrentei desde minha saída da Califórnia. Uma na Baja, outra no ferry cruzando o Golfo da Califórnia, a terceira em Rio Nexpa, no México central, e agora mais essa. Debaixo de muita chuva, sob o risco de sermos atingidos pelos constantes desbarrancamentos, pegamos uma estradinha estreita e apontamos a frente da van para o alto, bem alto.
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Se a transmissão passasse pelo teste, a esperança de chegar ao Brasil com a van, que quase ficou pelo caminho depois do piripaque em Puerto Escondido, aumentaria muito. Se desse pau de novo, Keone teria que pegar um ônibus para o aeroporto e eu provavelmente ficaria me lamentando na beira da estrada por ter comprado uma lata velha até decidir como prosseguir. De bicicleta elétrica, numa motinho, de carona… Desistir jamais. E foi nesse clima apreensivo mas decidido que escalamos mais de dois mil metros contra a enxurrada de barro que descia os morros sujando o asfalto esburacado.
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E bota dificuldade nisso. É claro que tinha que ficar escuro antes de chegarmos a Quetzaltenango, o nosso destino para aquela noite. E quando finalmente isso aconteceu, durou um baita de um tempo para encontrar um hotelzinho dentro do nosso orçamento e que tivesse estacionamento. Na entrada da apertada garagem subterrânea, por pouco não causei um grave acidente, ao dar uma fechada num carro que trafegava em alta velocidade. Pelo menos na hora de ir pra cama não teve erro, foi fechar o olho e apagar. Só para acordar de madrugada com frio, os pés gelados sentindo saudades do abafado calor noturno do litoral.
O perrengue todo foi compensado na manhã seguinte, quando demos um passeio maravilhoso pelo mercado local, recebendo o carinho da população indígena vendendo seus produtos frescos trajando vestimentas típicas. Que encantadora aquela explosão de cores, das frutas e hortaliças recém colhidas se misturando aos tecidos vistosos feitos à mão, da mesma maneira que seus ancestrais há séculos teciam. Fizemos a feira, abastecendo a van com morangos, uma espécie local de framboesa gigante, amêndoas, uvas e mel. E nos divertimos percorrendo os corredores estreitos com uma descoberta a cada esquina.
A chuva tinha parado e ficou bem mais seguro conduzir a van quando retomamos nosso caminho. As nuvens foram se dissipando e tivemos a sorte de ter nossa primeira visão do Lago Atitlan, de um mirante na beira da estrada, bem no momento em que o sol conseguiu dar uma escapada do bloqueio. Lá embaixo, a água brilhou prateada e os três vulcões que o circundam tiveram suas encostas verdes iluminadas. Que espetáculo, justificativa plena para o Atitlan ser comumente citado como o lago mais bonito do mundo.
Passamos nossa segunda noite na Guatemala em Panajachel, no pior hotel da viagem até aquele momento. Seduzidos por uma oferta irresistível, esquecemos de observar aquela máxima em inglês, muito certeira, que diz que “you get what you pay for”. Meio na linha de “o barato sai caro”. O que não foi exatamente o caso, pois não tivemos despesas extras, ainda que o conforto tenha deixado muito a desejar. Pelo menos era bem próximo da margem do lago, e pouco após o amanhecer, em cinco minutos já tínhamos a van estacionada com os vulcões ao fundo, pronta para uma sensacional sessão de fotos enquanto a luz do sol ia se descortinando por trás das montanhas.
Bonito demais. A calma da manhã apenas quebrada pelo som distante do motor das embarcações que transportam passageiros e mercadorias entre os 12 povoados habitados por descendentes do Maias ao redor do lago, e o canto dos galos nas casas mais próximas. Ficamos ali contemplando a magnitude daquela paisagem por um bom tempo, até Keone ter que entrar numa reunião de trabalho online para a qual quase nos atrasamos. Na correria de levá-lo de volta ao hotel a tempo, esqueci o tripé e um carregador de bateria à beira do lago. Logo que cheguei no hotel, percebi e voltei a tempo de encontrar tudo onde eu havia deixado. E de também observar a singela cena de companheirismo de um pastor alemão com seu dono, os dois saindo para um rolê de stand up paddle juntos. Deu muita vontade.
Tínhamos até considerado a possibilidade de alugar caiaques, mas, terminada a reunião do Keone, nossa escolha final de programa foi dirigir até Chichicastenango, com a intenção de visitar o mais movimentado mercado Maia da Guatemala. Precisávamos comprar algumas lembranças para ele levar para o Brasil. Minha mãe faria 87 anos na semana seguinte, e achei que seria legal enviar pelo Keone um presentinho especial para ela.
Por muito pouco a boa intenção não resultou num acontecimento trágico. Depois de um infindável sobe e desce pelas estradinhas locais, estávamos dropando uma encosta brava, daquelas que parecem uma onda de Puerto Escondido num dia grande, quando o carro à frente diminui a velocidade para uma lombada e, ao tentar fazer o mesmo, pisei no freio sem efeito nenhum. Nem sei como, no puro susto, consegui desviar jogando a van para a outra pista. Por muita sorte nenhum veículo estava subindo no sentindo oposto e eu ultrapassei o carro antes à minha frente para só depois conduzir a van em direção a um meio acostamento cheio de pedras. Como a van parou, se o freio voltou a funcionar parcialmente, se as pedras a detiveram, se o motor segurou, não sei explicar. A descarga de adrenalina foi tanta que apagou o HD. Como às vezes acontece quando pegamos aquela onda assassina sobre o fundo de coral raso e, ao sobrevivê-la, não lembramos exatamente que manobras fizemos, apenas que escapamos da morte certa.
Um mecânico 100 metros à frente, disse que o óleo aqueceu e que aquilo acontecia direto por ali. Grande consolo, mesmo com ele garantindo após a troca do óleo que a van estava segura para ser dirigida sem maiores problemas, fiquei na paranoia total o resto do dia. Já com compras feitas, após outro fascinante mergulho na cultura local, compensamos a espelunca da noite anterior nos hospedando no melhor hotel da viagem até aquele momento. Às margens do Lago Atitlan, no charmoso vilarejo de San Antonio Palopó, com vista para os vulcões, o cenário foi perfeito para celebrarmos os 40 dias de viagem do Keone, que partiria na noite do dia seguinte, já pensando em voltar para cumprir mais um trecho da viagem.
Foi um sonho realizado poder dividir parte da jornada com meu filho. Juntos curtimos muitos momentos especiais e superamos vários desafios. Até sobrevivemos uma surfada em quatro rodas nas montanhas. Pode vir de novo, Keone, seu lugar na van está guardado.
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