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Pan-American Soul 2022: Desviando do Plano

Se o planejamento foi feito, obviamente a intenção era a de segui-lo. Ou não faria sentido ter gasto tempo e esquentado os miolos na sua elaboração. Mas na estrada o imprevisível é um fator determinante para o rumo a ser tomado, podendo em algumas situações alterar drasticamente o roteiro imaginado para a jornada. Um exemplo claro foi a sequência de acontecimentos que nos arrebatou após termos saído de Pascuales. O primeiro indício de que as coisas iriam ficar mais pesadas foi o alerta de um fotógrafo amigo, ainda na cidade de Tecoman, no estado de Colima: “não se assustem ao verem pessoas armadas em Michoacan, isso é normal por lá, apenas as evitem e não terão problemas”.

texto e fotos por Adrian Kojin / Editor Especial da HARDCORE 

Com um sorriso amarelo concordamos com um movimento de cabeça. Falar o quê? Partimos, e não demorou muito para entrarmos num episódio da série Narcos: México. Logo após cruzar a ponte que separa os dois estados, Colima e Michoacan, nos deparamos com um comando com quase duas dezenas de policiais e membros do exército fortemente armados na beira direita da estrada. Do outro lado, três caminhonetes bloqueavam a faixa contrária. Duas da polícia e uma terceira, posicionada entre elas, de cor vermelha, com um corpo coberto por um lençol ensanguentado ao seu lado, estendido no acostamento. Até tentamos filmar, mas não foi possível diante do olhar ameaçador dos policiais e soldados postados ao longo da via. Praticamente só saiu o painel da van no registro tremido.


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Tocamos pra frente sem ter ideia do que se tratava a ocorrência, mas agora ainda mais ligados em tudo que se passava ao nosso redor. Também haviam nos avisado da possibilidade de bloqueios na estrada pelos moradores dos lugarejos ao longo dela, segurando o trânsito por algumas horas e/ou cobrando um pedágio, em desafio ao governo central mexicano. Uns tantos kms mais e avistamos um enorme pano branco onde estava escrito: “Usted está em território indígena de Ostula, aqui el pueblo manda y el gobierno obedece”. No mesmo povoado, duas camionetes da polícia podiam ser vistas abandonadas, ou talvez confiscadas, com pneus vazios e mato tomando a lataria.

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O bom humor é essencial nessas horas em que não temos como voltar atrás, mas desconfiamos muito do que vem pela frente. Brincávamos entre nós sobre o que diríamos caso fossemos parados num desses bloqueios indígenas, ou por algum grupo armado de cultivadores de papoula ou negociantes de especiarias colombianas. Não vou nem repetir aqui as piadas, pois pra achar graça só precisando muito rir, como nós naquela situação desconfortável de estar transitando por uma estrada com tantas possibilidades de surpresas ameaçadoras. Isso sem falar dos desmoronamentos…

Mas não foi dessa vez ainda. Sem maiores problemas, chegamos à praia de La Ticla. Montamos acampamento debaixo de um barracão, nos fundos do terreno de um hotel onde não encontramos ninguém na recepção. Há 35 anos eu havia surfado ondas excelentes ali, sozinho, por horas a fio. Naqueles idos, quando fui montar minha barraca na praia deserta ao lado de uma choupana abandonada, dois pescadores surgiram do nada e me aconselharam a não dormir ali. Dois americanos, aparentemente envolvidos com tráfico de drogas, haviam sido assassinados a tiros num dos quartos, dias atrás.

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Relembrei essa história para meu filho. Ela está também no meu livro Alma Panamericana, onde escondo o verdadeiro nome do lugar sob a alcunha de Tixtla. O que hoje em dia não faria diferença alguma. De deserta a praia não tem mais nada, ainda que sua beleza esteja bem preservada. De frente para o mar, estão os bungalôs do hotel onde nos instalamos, campings e casas de veraneio. Mais adentro, um pequeno e simpático povoado. Antes de nos recolhermos, eu para meu colchão no interior da van e Keone para sua barraca, fomos presenteados com um final de tarde divino, apreciado no conforto de nossas cadeiras de praia, com uma cerveja gelada combinando esplendidamente com a brisa morna. Um sonho tropical muito distante de qualquer pesadelo sugerido pelo trajeto de horas antes.

Comemorando independência mexicana em Caleta de Campos

Surfamos as longas direitas do point break na manhã seguinte. Nada muito sensacional e com um crowd bem no limite do que o lugar comporta, mas assim mesmo uma bela sessão de surfe. Só o maravilhoso cenário já estava valendo. Onda por onda, talvez o beach break tubular em frente ao acampamento tivesse sido uma melhor opção. Com tudo desmontado e guardado na van, passamos na recepção do hotel para pagar pelo acampamento. Dessa vez encontramos os responsáveis pelo lugar. Nos explicaram que haviam se ausentado na tarde anterior para comparecer às “fiestas pátrias”, comemorativas da independência do México.

Próxima parada foi Rio Nexpa, pico para o qual eu sonhei por 35 anos voltar. Passei ali alguns dos dias mais memoráveis da minha vida de surfista, desfrutando de um swell interminável, com ondas absolutamente perfeitas, na companhia de poucos amigos. E é esse justamente o problema da alta expectativa, quando ela não se confirma, a decepção é proporcional. Não foi nem tanto o fato da praia que conheci vazia estar tomada de hotéis, pousadas, mercadinhos e casas antes inexistentes. Até aí, tudo bem, com o crescimento mundial do surfe e a qualidade do pico, seria impossível que isso não tivesse acontecido. E mesmo com a ocupação, o lugar ainda retém um astral bacana.

Na realidade o que entornou nosso caldo em Nexpa não veio da terra, nem de seres humanos. Foi do céu mesmo que caiu a imensa quantidade de água que inviabilizou o prolongamento da nossa estada. Depois de dois dias esperando pelo swell que a previsão anunciava, quando nos tocamos as ondas haviam chegado muito mais de oeste do que deveriam, a lagoa que represa a água do volumoso rio na ponta da praia havia se rompido prejudicando o fundo, e uma tempestade sem fim fez com que surgissem goteiras por todos lados no nosso barraco.

Acordarmos sem ter quase dormido com uma decisão conjunta pronta que não precisou nem de conversa. Tínhamos que ir embora, a situação tornara-se insustentável. De Nexpa levaríamos como boas lembranças a noite em que festejamos com os mexicanos a independência do país na vizinha cidadezinha de Caleta de Campos. A empapuçada de camarões e caranguejos preparados com maestria por Keone. O workshop em que a molecada local conheceu a arte de Rick Griffin debaixo de um temporal absurdo. As ondas vão continuar no sonho, só espero que não por mais 35 anos, pois aí não vai dar tempo.

P.S.1 Dias depois, pesquisando na internet sobre a guerra às drogas no México, fui surpreendido por uma reportagem que descrevia como, em 3 de agosto passado, um carregamento de 600 kg de cocaína havia sido apreendido em Rio Nexpa, pela Marinha Mexicana. Após uma perseguição cinematográfica disponibilizada em vídeo, envolvendo lanchas e helicópteros, os “narcos” abandonam o barco carregado de drogas em que navegavam na praia e conseguem fugir em direção a um coqueiral.

Acompanhe a rota pelo @panamericansoul2022.

Compre aqui o livro Pan-American Soul, em edição digital, com apenas um clique. 

* Nesta seção, o Editor Especial da HARDCORE, Adrian Kojin, traz com exclusividade os diários da sua road trip “Pan-American Soul 2022”, da Califórnia até o Brasil. 

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