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O berço do surf brasileiro é um só. E fica em Santos

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Moro em Florianópolis e costumo viajar muito a Curitiba para visitar minha filha, que mora na cidade. Para preencher as horas de estrada, tenho o hábito de ouvir programas de podcast. Entre eles, o “Aloha”, apresentado por Rico de Souza, um dos mais ilustres personagens do surf brasileiro, cuja história de vida se confunde com a desse esporte, é dos meus preferidos.

Rico é um comunicador nato e conduz com muita competência suas entrevistas, normalmente feitas com amigos pessoais e invariavelmente descontraídas, mas confesso que a sua insistência, sempre ao conversar com algum surfista carioca da velha guarda, em dizer que “o primeiro lugar onde pegaram onda foi Santos, mas o berço do surf é, na verdade, o Rio”, é algo que me intriga.

Berço do surf brasileiro
Juá Haffers, Santos, anos 1940. Foto: Reprodução / Museu do Surf de Santos

Como não se discute com fatos historicamente comprovados, e até a presente data não existe registro mais antigo no Brasil do que as fotos de Thomas Rittscher surfando com uma réplica da hollow board de Tom Blake em Santos, Rico normalmente emenda sua fala dizendo que ele diz isso porque foi a partir do Rio de Janeiro que o esporte floresceu e se espalhou pelo Brasil.

Nesse ponto eu concordo com ele. O surf na cidade maravilhosa tem uma história rica e fascinante, que teve seu início nos anos 1950, quando um grupo de mergulhadores na praia do Arpoador, diante da dificuldade de praticar a caça submarina em dias de mar agitado, começou a usar pranchas improvisadas de madeirite para surfar. Figuras como Paulo Preguiça, Jorge Paulo Lehmann e Irencyr Beltrão, entre outros, foram pioneiras nesse movimento, inspirando muitos a experimentar a emocionante sensação de deslizar sobre as ondas.

Berço do Surf Brasileiro
Surf no Arpoador, Rio de Janeiro, anos 1950. Foto: Tito Rosemberg

Naquela época a cidade era a capital do Brasil e seu maior polo cultural. Todas as atenções estavam voltadas para o Rio de Janeiro e a praia de Ipanema seu cartão de visita. A Bossa Nova então ganhou o mundo, trazendo consigo o lifestyle praiano da zona sul carioca e tudo isso ajudou muito a popularizar o surf. Dessa forma, eu concordo que a cultura do surf carioca, que nasceu na praia do Arpoador, influenciou e ajudou a impulsionar o esporte em todo o país – inclusive em Santos. Mas, perceba que isso não é o mesmo que dizer que o Rio é o “berço do surf” no país.

Sabe-se, comprovadamente, que houve ao menos duas gerações de surfistas santistas antes da geração carioca de 1950. Primeiro, Thomas e Margot Rittscher, nos anos 1930, seguida por Osmar Gonçalves, Juá Haffers e Silvio Manzoni, nos anos 1940, que, em tese, não teria deixado “herdeiros” nas ondas santistas até que, em 1964, após retornarem de uma viagem ao Rio de Janeiro, um grupo de amigos santistas decidiu introduzir na cidade “a nova mania dos cariocas”, como descrito no livro “Santos, onde nasceu o surfe no Brasil” (2024). A partir dessa geração dos anos 1960, a cultura surf ganhou popularidade na cidade de Santos.

Berço do surf brasileiro
Margot Rittscher, praia do Embaré, Santos, data desconhecida. Foto: Reprodução / Museu do Surf de Santos

Mas isso significa que ninguém pegava onda em Santos de 1950 a 1960? Para os historiadores do esporte, parece ser o caso. No entanto, acho essa afirmação questionável. A própria Margot dizia, antes de morrer, que surfou durante décadas na praia do Embaré. Como ela, é razoável deduzir que outros jovens santistas da época tenham se aventurado nas ondas. O desafio reside na falta de registros documentados e no financiamento para pesquisas nessa área, em contraste com o que me parece ocorrer no Rio de Janeiro.

Além disso, a História é um campo dinâmico, sujeito a mudanças conforme novas descobertas surgem, trazendo narrativas que nem sempre agradam àqueles que têm mais recursos para contá-las. Em 2022, enquanto investigava outro assunto, descobri por acaso que no início de 1940, o catarinense Francisco Perfeito da Silva, um oficial da marinha mercante, trouxe para seu estado uma hollow board quando retornou de uma viagem aos EUA. Familiares de Francisco, que infelizmente faleceu quatro anos depois de, em tese, “inaugurar o surf em Santa Catarina”, me ajudaram com algumas fotos e relatos, mas não souberam dizer se ele surfou ou não. Com as informações que consegui, escrevi uma matéria para a Hardcore intitulada “História do surf brasileiro: Descobrimos a 1ª prancha catarinense (1940)” e entrei em contato com alguns historiadores do surf brasileiro na esperança de conseguir apoio e juntar forças para pesquisar mais a fundo esse evento. Ninguém me retornou.

história do surf brasileiro
Francisco Perfeito da Silva (à dir.) e amigo em Laguna entre os anos 1940 e 1943. Foto: Arquivo pessoal Yohann Ivanoski

O fato é que falar de pioneirismo mexe muito com o ego das pessoas e isso não é exclusividade do mundo do surf. Na verdade, acredito que no ambiente acadêmico a coisa é bem mais aguda. Por isso mesmo, entendo que seria muito bacana se personagens com grande relevância e alcance, como é o caso do Rico de Souza, dessem mais destaque à importância histórica da cidade de Santos para o surf brasileiro. Não se questiona o papel central que o Rio de Janeiro desempenhou na popularização da cultura surf em nosso país. Mas berço do surf brasileiro é um só, e ele fica na cidade de Santos.

Luciano Meneghello
Luciano Meneghello
Nascido e criado em Santos (SP) e atualmente vivendo em Floripa, Luciano Meneghello começou a surfar no início dos anos 1980 e testemunhou o desembarque da primeira canoa havaiana no Brasil, a Lanakila, no porto de sua cidade. Atuando no jornalismo, foi um dos fundadores da revista Fluir Standup e do site SupClub. Colaborou também com diversos veículos do segmento, como revista Alma Surf, Go Outside, site Waves, entre outros. Em 2020 publicou seu primeiro livro "Raiz, uma viagem pelas origens do surfe, canoa polinésia, stand up paddle e prone paddleboard". Atualmente está se graduando em antropologia pela UFSC, é o responsável pelo portal Aloha Spirit Mídia, e editor executivo da Hardcore.

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