Imagina você pegar a estrada com uma pitadinha de irresponsabilidade. Não no sentido de sair fazendo doideira, mas de perguntar se… “Caramba, vai dar pra chegar no destino com esse dinheiro?”
Mesmo com essa, e outras tantas incertezas iniciais, o surfista, jornalista, documentarista e editor especial da HARDCORE Adrian Kojin, se jogou na Via Panamericana em agosto de 2022, para retraçar a mesma rota percorrida 35 anos atrás, cruzando 14 países, entre a Califórnia e o Brasil, em busca de ondas.
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Após nove meses e 28 mil km rodados, Adrian concluiu sua jornada pelas Américas em maio de 2023, e imediatamente iniciou os trabalhos para transformar o conteúdo captado num documentário.
Lembrando que a viagem foi acompanhada em colunas semanais publicadas em nosso site, a HARDCORE conversou com Kojin para saber em que pé anda a produção do que ele diz ser “mais que um filme de surf, um filme de vida”.
Na entrevista abaixo o aventureiro fala sobre o “a força do chamado da estrada” e compartilha alguns dos seus muitos aprendizados on the road. Confira e descubra.
HARDCORE (HC): Como você sentiu a diferença entre as trips – a primeira, em 1987/88 e essa de 2022/23?
Adrian Kojin (AK): Na essência, o Adrian de hoje é o mesmo de antes, principalmente no que toca a sede de aventura, a curiosidade pelo mundo, pelas pessoas. Na vontade de buscar tudo que a estrada tem a nos oferecer.
Principalmente a liberdade. A sensação de que ali no horizonte está nosso destino e vamos atrás dele.
Mas é lógico que 35 anos depois, com família, filhos e a experiência profissional como jornalista, muita coisa mudou. Perde-se um tanto daquela coisa bacana que é a explosão de energia do jovem, de um comportamento mais atirado, ainda que muitas vezes ingênuo, sem medir as consequências, na base da maluquice mesmo, mas que resulta em experiências incríveis, próprias daquela idade e momento que se está vivendo.
Por outro lado, acredito que o tempo é nosso melhor mestre. Mais de três décadas passadas, espero ter evoluído na capacidade de entendimento do mundo e nosso papel nele. Uma diferença grande é que encarei essa viagem muito mais como documentarista.
Na primeira viagem, entrei surfista e saí jornalista. Nessa entrei surfista também, mas principalmente jornalista, com objetivo de registrar e comparar o que aconteceu nos últimos 35 anos nesses lugares pelos quais passei, principalmente sob óticas sociais e ambientais. Detalhe importante, entrei jornalista e sai mais surfista ainda.
HC: Como está o andamento do documentário?
Tinha um roteiro pensado para o documentário, mas ao longo do caminho ele foi se modificando. Então agora tenho uma história de autoconhecimento, superação, da importância da amizade, da nossa relação com a natureza e com o mundo.
Nesse momento escrevo esse roteiro. Estou feliz por já ter parceiros para o documentário alinhados com esse conceito. A produtora com a qual estou trabalhando é reconhecida pela alta qualidade que coloca em tudo que faz, o que vai de encontro ao meu desejo de que o acabamento seja de primeira linha.
Importante lembrar que meu principal instrumento de filmagem foi um celular, pretendo demonstrar também como é possível criar um doc tendo apenas uma ideia na cabeça e um celular na mão.
HC: Você viajou com um orçamento muito reduzido. Como foi se virar com pouca grana?
AK: O conselho que posso dar é: fomente suas amizades. Não fosse pelos amigos eu não teria chegado ao Brasil. Quem tem amigo tem tudo.
O verdadeiro amigo pode sempre ajudar. Se não ele diretamente, alguém que ele indique que possa te ajudar a conseguir onde dormir e comer. Ou na hora de explorar um lugar.
Além dos velhos amigos, de 35 anos atrás, fiz muitos novos amigos ao longo da jornada, vários via Instagram. Teve muita gente em sintonia com o espírito dessa nova viagem, então criou-se uma corrente de apoio à qual só tenho que agradecer.
Isso comprovou algo que sempre digo. Que se você ficar esperando pelas condições ideais, existe uma chance grande de não fazer o que planeja. É algo que há muito tempo tomei como princípio de vida. Não fique esperando ter todo o dinheiro, todos os equipamentos, todos os recursos. Faça com o que tiver disponível, ou vai ficar estancado no mesmo lugar com aquela sensação de que sempre falta alguma coisa.
HC: Alguma dica que possa dar?
Um exemplo, minha mini-van estava longe de ser ideal para um percurso como esse. Não é 4X4, tinha sido fabricada há 22 anos, peguei a estrada já com mais de 320 mil km rodados marcados no hodômetro. Deu trabalho, quebrou algumas vezes, mas chegou. Foi o que eu pude pagar, U$ 1,8 mil dólares. Outro exemplo, das quatro pranchas que iniciei a viagem, duas foram presenteadas, por um sobrinho e pela vizinha. Pranchas velhas, amareladas, mas que me trouxeram muitas alegrias. Mais um, fiz uma parceria com o fabricante das bicicletas elétricas Murf e eles me deram uma bike modelo Alpha em troca de publicação de fotos no Instagram. Economizei muita gasolina utilizando a bicicleta como transporte local em todos os picos visitados.
Conseguir receita no meio do caminho também é uma boa, como trabalho voluntário em troca de estadia e comida. Ofereça algo de útil para os lugares onde você vai se hospedar. No meu caso ofereci divulgação como jornalista, usando meu Instagram.
O mais importante é começar a viagem. Depois as coisas fluem. Nada acontece se você fica no sofá sonhando como seria.
HC: Como os seus olhos sentiram o impacto do homem no planeta?
AK: O impacto negativo do ser humano sobre o planeta Terra é cada vez mais visível. Está cada vez mais claro que não respeitamos as outras vidas com as quais compartilhamos o planeta.
Achamos que somos donos deste planeta que é de todos os seres vivos. Algumas formas de impacto são mais chocantes que outras, a que mais me chamou a atenção foi a quantidade de plástico nas praias. Há 35 anos não me lembro de ter visto plástico nas praias. Agora o plástico domina muitos dos cenários. Têm praias nas quais você não sente a areia sob o seu pé, ao caminhar sobre tanto plástico.
E também tem a questão do esgoto, tratamento de água, coleta de lixo… Então você vê lixo acumulado, rio poluído, todo tipo de coisa derivada do crescimento desordenado, que em grande parte dos casos teve início com a chegada dos primeiros surfistas ao pico.
Enfim, os destinos de surfe mais famosos cresceram, em grande parte, de maneira desordenada. Você chega em lugares com construções de mega projetos embargados, abandonados, fantasmas no meio da paisagem belíssima. Tipo em Puerto Escondido, onde um prédio horrível, nunca terminado, há anos enfeia a paisagem, aguardando para, tomara, um dia finalmente ser demolido.
Temos de pensar nas consequências do desmatamento. Do plástico no mar. Da emissão do carbono. Por todos os lugares pelos quais passei, de uma maneira ou de outra, senti os efeitos disso. Isso vale pro planeta todo.
Então se, por um lado, o surfe trouxe crescimento econômico, ele também trouxe um monte de problemas.
O lado bom é que pude ver exemplos de ações positivas, nos quais surfistas estão trabalhando em prol de trazer melhorias para essas comunidades, colocando a proteção do meio ambiente como uma prioridade.
HC: Como equilibrar a nossa presença nesses lugares paradisíacos?
AK: Não tem como não atender a força do chamado da estrada, não é? De querer ver o que tem do outro lado daquela montanha; conhecer o que existe no fim daquela praia; entrar na floresta e descobrir se no seu interior não passa um rio maravilhoso que desagua numa cachoeira; descobrir um lugar no qual a gente pode eventualmente colocar uma casinha e ser feliz.
Mas a gente sempre impacta o lugar. Não tem como andar sem deixar pegada. Acho que se trata de deixar o mínimo possível de pegadas e realizar uma compensação. A gente tem de construir mais do que destruir.
Se é possível, não sei. O mundo está provando até agora que não. É óbvio que esse equilíbrio original foi há muito comprometido. A presença humana no planeta tem deixado um rastro muito grande de destruição. Então quando a gente sai pra uma viagem como essa, ou mesmo vai só até ali na esquina, tem de pensar no que é que estamos fazendo.
Acho que falar sobre isso é minha obrigação de jornalista. Acho que todo mundo envolvido com surfe e com aventura, tem obrigação de viajar sabendo das consequências que deixa ao passar por um lugar.
HC: Ainda é possível encontrar picos sem crowd?
AK: O crowd nunca esteve tão grande. Principalmente depois da pandemia, o surfe viveu uma explosão, e a internet contribuiu muito pra isso.
Lidar com o crowd durante a viagem foi um exercício de paciência, mais ainda por eu ter conhecido muitos dos picos quando ainda se podia surfar praticamente sozinho neles. Mas tem uma notícia boa. Existem lugares a serem explorados, às vezes debaixo do nosso nariz. Em outros casos, nem tanto.
A grande diferença de hoje para minha primeira viagem nessa rota, foi ter a previsão de ondas disponível, com até 14 dias de antecedência, e assim saber em quais dias os picos iriam funcionar.
HC: Como encontrar o equilíbrio entre o inesperado e o planejado em uma aventura?
AK: O surfista sempre deseja surfar o maior número de ondas perfeitas possível. Essa equação é muito mais favorável hoje em dia, principalmente pra quem tem uma vida corrida. O surfista chega em um surf camp e o guia o coloca na cara da onda, na melhor hora do dia, e isso é fantástico.
Mas eu busco um equilíbrio diferente. Minha equação é outra. Eu me pergunto, o que você quer na sua viagem? Você quer uma viagem na qual você já sabe tudo do começo ao fim? Não quer imprevisto e quer concentrar-se somente na sua contagem de ondas perfeitas? Ou quer uma viagem em que o imprevisto seja um dos fatores que a tornam especial? Vai de cada um.
Em muitos casos a viagem planejada em demasia se torna algo plastificado. Então você deixa de ter contato com locais por ter um guia; não sente o calor do lugar pois o hotel ou surf camp conta com ar-condicionado em todos os ambientes; a comida é preparada baseada no que o visitante come em casa; todo o esquema é voltado para você estar nas melhores condições para poder surfar. É muito mais fácil hoje em dia, mas acho que a dificuldade de antes proporcionava experiências e aprendizados muito mais interessantes.
Surf camps são sensacionais. Quando vou aproveito a infraestrutura ao máximo, mas gosto muito do desconhecido e do imprevisto e acho que isso precisa ser resgatado. Sem entrar na questão do custo para ficar num surf camp, que muitas vezes é impeditivo.
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Porra, se eu pegar um carro velho, colocar a prancha na capota, ou tomar um ônibus, e descer em tal lugar, e sair andando, alugar uma bike, e dar um pedalada pra conhecer… Pô, você vai dar numa onda X, vai sentir o prazer imenso da descoberta, de atender essa necessidade.
Não curto isso de dizer que antes era melhor ou pior. Cada tempo com seus aspectos positivos e negativos. Mas acho que antes a experiência era mais completa, quando saímos buscando ondas, ao invés de ser levados a elas. Este é o resgate que proponho, ir para a estrada.
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