Quem tem amigo tem tudo. Da minha recente passagem por El Salvador levo, mais do que as lembranças das boas ondas que surfei, as demonstrações de amizade que recebi. Demorei 35 anos para voltar ao país que conheci destroçado, durante um período trágico de sua história, em meio a uma sangrenta guerra civil que resultou em pelo menos 75 mil mortos e 15 mil desaparecidos. Como consequência, picos lendários, como La Libertad, deixaram de fazer parte por mais de uma década da rota de peregrinação dos surfistas. Dessa vez encontrei uma nova nação, com o governo investindo forte para que se torne um dos principais destinos de surfe no planeta. Mas esse cenário foi apenas o pano de fundo para três encontros diferentes que fortaleceram minha vontade de cumprir a missão à qual estou entregue no momento.
texto e fotos por Adrian Kojin / Editor Especial da HARDCORE
foto de abre: Rafael Mellin, Punta Mango
Claro que já venho recebendo ajuda de vários amigos desde o começo da viagem, e até mesmo de antes, quando estava ainda somente me preparando. Acho importante contar isso aqui, para agradecer a atitude de quem me apoiou. Eu sempre lembro daqueles que acreditaram no que eu estou fazendo, enxergaram valor na minha maluquice, quiseram me ver seguindo em frente. A memória dos gestos de solidariedade é um combustível permanente, colocando um sorriso na minha cara e alimentando a motivação para que eu resolva os próximos desafios do caminho.
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Mas vamos aos encontros. O primeiro se deu de forma apenas virtual, mas não menos vibrante do que se tivesse sido pessoal. Quando ainda estava na Guatemala, recebi uma mensagem do Paulo Furtado Filgueiras, um surfista de Floripa que vinha me acompanhando pelo Instagram. Nela o Paulo me informava que já tinha feito uma reserva em meu nome para quatro noites na pousada Aloha Bocana, em El Tunco, El Salvador, pertencente ao salvadorenho Walter Mejia, seu bom amigo. E acrescentava que a estadia era por sua conta: “Não é muito, mas é o que eu posso fazer em agradecimento pela inspiração”.
A partir dessa enorme gentileza, passamos a trocar mais mensagens e fiquei sabendo que havia participado da vida de Paulo de uma maneira significativa, como ele contou num texto que reproduzo o início a seguir: “Em 2011 eu voltei a surfar e sonhava com uma surf trip. Recorri à internet e a relatos e nessa pesquisa bati com um livro, Alma Panamericana. Comprei, esperei ansioso, li umas quantas vezes e teu livro passou a fazer parte da minha vida como uma bíblia. Conheci a América Central e espanhola por seus relatos. Surfei Mexico, El Salvador, HB, sempre com o Alma Panamericana ao meu lado. El Salvador foi meu paraíso encontrado…”
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Que bacana foi receber essa mensagem do Paulo. Terminei de ler comovido. A estrada havia me proporcionado mais uma amizade que iria durar pra sempre. Já fiquei imaginando o dia em que vou passar por Floripa e dar um abraço físico no Paulo e trocar histórias dos picos que visitamos e situações pelas quais passamos. Para completar, Paulo ainda me conectou com outros dois amigos salvadorenhos seus, Amilcar e Valentim, me orientando como eu deveria fazer para acampar de frente para a onda, em Punta Mango, meu próximo destino.
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Depois de 6 dias surfando ondas muito divertidas em El Tunco, parti em direção ao sul de El Salvador, área que não havia visitado na minha primeira passagem pelo país. Naquela época, além do difícil acesso, a região era território dominado pela guerrilha. Mas antes de pegar a bem conservada rodovia litorânea, fui cumprir uma promessa de muito anos. A de entregar um exemplar do Alma Panamericana pessoalmente a um dos locais mais lendários de La Libertad, Carlos Omar Rodriguez Rivera. Nossa amizade havia começado em 1987, quando Omar comandava o pico e arredores, e me recebeu de braços abertos e garantiu minha segurança. Anos depois nos reconectamos pelo Facebook e desde então eu estava devendo cumprir a promessa de entregar pessoalmente um exemplar do meu livro, no qual ele é mencionado.
Quando contei, pelo Messenger, a Omar que eu estava pra chegar a El Salvador, por terra e com pouco dinheiro no bolso, ele logo acionou suas conexões e conseguiu uma hospedagem gratuita em La Libertad para mim. Que eu acabei não utilizando pois o Paulo me proporcionou os dias em El Tunco. Só que eu tinha que entregar o livro e marcamos um encontro de frente para Punta Roca. Trinta e cinco anos depois abracei novamente Omar, coloquei em suas mãos um exemplar assinado do Alma Panamericana e agradeci por sua hospitalidade de antes e de agora. Promessa feita, promessa cumprida.
Ainda no mesmo dia, depois de passar por Las Flores e pegar uma estradinha de terra entre fazendinhas à beira mar, cheguei a Punta Mango no final de tarde. Armei minha barraca na cara do pico. Para entrar na água bastava uma caminhada de menos de 30 metros. Tudo encaixando como planejado, restava apenas torcer para que a boa ondulação prevista para o dia seguinte realmente se materializasse. O que aconteceu, mas com muito mais gente na água do que eu imaginava encontrar.
A compensação pelo crowd foi que a surpresa não ficou só por conta da quantidade de pessoas, mas principalmente pela presença totalmente inesperada de um grande amigo entre elas. Me dirigindo ao outside, eu já havia notado a habilidade daquele surfista diminuto numa pranchinha vermelha, rasgando as ondas com um estilo polido e manobras bem colocadas. Mas nem suspeitei que se tratasse do cara para quem eu, ainda antes da pandemia, primeiro havia revelado o plano de que iria fazer essa viagem. Inclusive o convidando para dirigir o documentário que pretendia gravar durante o percurso.
Quando me dei conta, Rafael Mellin estava remando em minha direção me chamando pelo nome. Que coincidência. Nos cumprimentamos efusivamente, um tanto quanto incrédulos. Sem combinar nada, o encontro que não havíamos, por diversos motivos, conseguido viabilizar, estava acontecendo da melhor maneira possível. Por assim dizer, organicamente.
Quando apresentei o esboço do projeto Pan-American Soul a Mellin, ainda em 2019, ele ficou super entusiasmado em dirigir o documentário. Chegamos a viajar juntos à Califórnia em dezembro daquele ano, para discutir parcerias com eventuais empresas interessadas em apoiar a gravação e veiculação. Regressamos ao Brasil com boas perspectivas nesse sentido, mas aí veio a pandemia e qualquer iniciativa que dependesse de cruzar fronteiras se tornou inviável. Tivemos que abandonar qualquer plano conjunto. Mais de dois anos depois acabei me atirando na Rota Panamericana de maneira improvisada, na raça, sem condições de bancar a produção de um documentário com o nível de profissionalismo com que Mellin, um diretor premiado e consagrado, trabalha.
Esprememos o máximo do swell que pudemos, Mellin com sua conhecida fissura passando horas e horas seguidas na água, incansável. Nos momentos em terra ele me pagou dois almoços e ainda fez uma doação pro meu combalido caixa. Conversamos um montão e retomamos a possibilidade de algum tipo de parceria no documentário. As ondas foram acabando e decidi partir para Honduras e Nicarágua. Me despedi de Mellin, deixando meio que combinado um encontro mais adiante, talvez no Chile. Se acontecer vai ser bom demais.
Acompanhe a rota pelo @panamericansoul2022.
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