O localismo é possivelmente a prática mais criticada no universo do surf. Afinal, ninguém gosta de chegar a uma praia nova e ser recebido com hostilidade. No entanto, o significado original dessa ação foi profundamente distorcido ao longo dos anos. Hoje, em muitas zonas de surf ao redor do mundo, gangues organizadas se apropriam do conceito de localismo para justificar violência gratuita contra visitantes, criando um ambiente de intimidação. Mas o fato é que, em sua essência, o localismo nasceu como um ato de resistência cultural — uma forma de proteger não apenas as ondas, mas também as comunidades locais contra a exploração externa.
Isaiah Helekunihi Walker, historiador havaiano, PhD em História e Colonialismo pela University of California, em seu livro Waves of Resistance: Surfing and History in Twentieth-Century Hawai’i, oferece uma importante reflexão sobre o tema. O autor mostra como, no Havaí, o surf é muito mais do que um esporte. Ele é uma prática cultural ancestral e uma forma de conexão espiritual com o oceano, essencial para a identidade do povo havaiano. Walker demonstra que à medida que o turismo e a especulação econômica começaram a invadir as ilhas, de forma cada vez mais agressiva, os surfistas locais adotaram uma postura de resistência para proteger suas praias e tradições.
+ O surf e o futuro ancestral
Originalmente, o localismo estava ligado à defesa das ondas como um último recurso comunitário. Com as terras do Havaí sendo cada vez mais apropriadas pelo capital estrangeiro, o mar se tornou uma trincheira de resistência cultural. Assim, surfistas nativos começaram a se opor à exploração das ondas por turistas e empresários estrangeiros. Esses visitantes, em muitos casos, não demonstravam qualquer respeito pelas regras implícitas da comunidade — como ceder a vez nas ondas ou entender o valor espiritual do surf para os locais. Não raro, praias eram fechadas para realização de eventos sem a presença de havaianos.
Nesse contexto, é importante abrirmos um parênteses para falar sobre a importância do “Second Hawaiian Renaissance”, movimento cultural que ganhou força na década de 1970 em todas as ilhas do Havaí e foi essencial para a revitalização das tradições havaianas, tendo um impacto profundo na comunidade de surfistas nativos. Esse movimento cultural ocorreu em um contexto de resistência a políticas entendidas como colonialistas impostas pelos EUA, que restringiam a liberdade dos havaianos em sua própria terra, e à crescente influência do turismo de massa, impulsionando a retomada de práticas ancestrais como a língua havaiana, a navegação polinésia e, claro, o surf.
O Hawaiian Renaissance não apenas resgatou o surf como uma expressão espiritual e identitária dos havaianos, mas também fortaleceu o sentimento de pertencimento e preservação territorial. A partir desse renascimento, muitos surfistas nativos passaram a ver o ato de surfar como uma forma de resistência cultural, conectando-se mais profundamente com suas raízes e reforçando a necessidade de proteger sua comunidade dos abusos externos. Assim, o localismo surgiu originalmente como um esforço para garantir que as ondas não fossem monopolizadas por forasteiros e que a população nativa continuasse usufruindo dos espaços que fazem parte de sua cultura.
No entanto, o localismo de resistência cultural é muito diferente da violência gratuita praticada por alguns grupos na atualidade. Walker argumenta que essa forma original de localismo era, antes de mais nada, uma afirmação de identidade e proteção coletiva. Era um pedido por respeito e reciprocidade — não por exclusão ou brutalidade.
Infelizmente, o conceito de localismo foi desvirtuado ao longo dos anos à medida em que o surf cresceu e chegou a outros lugares e outras realidades. Grupos violentos usam o pretexto de “proteger o pico” para justificar agressões físicas e verbais contra visitantes, mesmo quando estes demonstram respeito. O que deveria ser uma forma de cuidar do espaço e preservar a cultura do surf local se transformou, em alguns casos, em atos de intimidação e marginalização, contradizendo a essência do movimento. Essas atitudes não fortalecem a comunidade — pelo contrário, afastam pessoas e degradam o ambiente de convivência nas praias.
Repensando o Localismo: educar ao invés de hostilizar
Walker nos lembra que o verdadeiro localismo não é sobre violência, mas sobre respeito mútuo. Surfistas locais não deveriam se ver apenas como “donos” de uma onda, mas como guardiões daquele espaço. Ao entenderem as raízes históricas e culturais do localismo, especialmente sua conexão com movimentos de resistência, esses surfistas poderiam adotar uma postura mais responsável, ajudando a cuidar das praias e preservar as tradições — em vez de simplesmente hostilizar visitantes.
Resistência cultural não é sobre afastar, mas sobre ensinar — mostrando aos recém-chegados como respeitar o espaço, valorizar as pessoas que ali vivem e as tradições locais. Portanto, o caminho para um “localismo positivo” está em recuperar sua essência original: proteger o ambiente e as pessoas, com respeito. Afinal, surfar vai além de pegar ondas — é uma forma de se conectar com a natureza e com os outros, algo que todos, locais e visitantes, podem aprender juntos.