Em entrevista, João Medina, da nova geração de artesões do pranchão, conta que gosta de colocar a plaina na massa como nos velhos tempos.
Por Jair Bortoleto
O historiador e pensador grego Heródoto dizia que é preciso pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro. Com a tecnologia na produção de pranchas avançando a mil, um carioca de apenas 22 anos de idade vem nadando contra a corrente e se especializando na produção de pranchas tradicionais, todas feitas a mão, em um processo criativo que se inicia muito antes da plaina no bloco. Mesmo usando técnicas consideradas “antigas” – levando-se em conta os métodos de fabricação de pranchas atuais – João Medina, gosta de reviver o passado, inspirado pelas histórias do surf para diariamente ressuscitar o mais básico dos movimentos, o deslizar. Nessa entrevista, João fala do seu começo no surfe, suas tentativas e erros na plaina, e como as pranchas clássicas e alternativas vêm abrindo espaço para diversas formas de expressão.
Jair Bortoleto – Quando começou seu interesse pelo surf?
João Medina – Meu interesse pelo surf começou em 2016, quando fui morar em San Diego com os meus pais. Os dois são artistas e queriam agitar um movimento cultural para os brasileiros que moravam lá. Como na época eu só tinha 14 anos, fui debaixo do braço. Lá, a gente morou com um amigo deles que surfava em Pacific Beach e comecei a ter mais contato com esse mundo, afinal, eu estava na Califórnia e não podia estar lá e não surfar. Mas, por mais que tenha aparecido a vontade de aprender a surfar lá, a água era fria demais e tinha muito tubarão, não estava me animando tanto assim (risadas). Então, só quando voltamos para o Rio que eu falei: “É agora!”.
JB – Você lembra da sua primeira onda?
JM – Como se fosse ontem. Tinha acabado de comprar meu primeiro longboard, todo cacarecado, com o dinheiro de uma guitarra velha que vendi e fui surfar na Praia do Secreto com um amigo. Eu já estava tentando surfar há uns 2 meses com uma pranchinha 6’0” emprestada e não conseguia de jeito nenhum ficar em pé, parecia impossível. Mas, quando botei o longboard na água e remei na primeira onda, fui que fui. Com um empurrãozinho do amigo, lógico. Levantei e comecei a deslizar, deslizei alguns segundo e caí, virei pra traz comemorando que tinha conseguido, já chorando de felicidade. Foi a sensação mais mágica que senti na minha vida. O vento na cara, a água passando em volta da prancha é pura magia. E parece mentira, mas assim que peguei aquela onda pensei: quero fazer uma prancha e surfar com uma prancha que eu mesmo fiz. Demorou pra isso acontecer, mas a vontade de fazer pranchas veio ali naquela primeira onda. Isso foi em 2017 e eu tinha de 15 pra 16 anos.
JB – Qual seu background no shape?
JM – Sempre fui aquela criança engenhoca, que gostava de criar, construir, dar forma e significado às coisas. Achava muito mais interessante ter algo que eu fiz do que algo comprado. Tomar um café com uma xícara que eu mesmo fiz, o café sai até mais gostoso. E foi daí que bateu aquela vontade de fazer minha prancha. Mas, depois de quase dois anos surfando sem parar e tentando descobrir como fazer uma prancha, sem êxito, o rumo da minha vida mudou e fui morar com meu irmão em outra cidade no interior do Rio e estudar educação física. Porém, depois de alguns meses lá, me vi num habitat que não era o meu. Queria mesmo era estar pegando onda e fazendo prancha. Tranquei a faculdade e voltei pro Rio por volta de outubro de 2019. Voltei a surfar e comecei a procurar cursos, pessoas, vídeos, qualquer coisa que me ensinasse a fazer prancha. Fui na sala de shape do mestre Olímpio OGM (que também foi quem fez o longboard que eu comprei já cacarecado) querendo aprender a shapear e ele disse: “João, primeiro você precisa aprender o básico de uma prancha, como ela é feita, as misturas da resina, os processos, depois você pensa em shapear. Se não, você vai ser só mais um que não sabe nada de prancha, mas shapeia”. Passei alguns meses atrás de aprender sobre os processos com alguns fabricantes aqui do Rio. Mas aí veio a pandemia. Tive que parar o aprendizado e me trancar em casa. Algumas semanas antes eu havia trincado aquele meu primeiro longboard num mar grande na Praia da Macumba e meio sem saber o que fazer, descasquei ele todo e deixei o bloco secar no sol. Quando me vi trancado em casa sem poder fazer nada, mas com aquele bloco todo regredido e sem função do jeito que estava, à disposição, falei: pronto, vou shapear outra prancha com esse bloco, menor e mais fina pra conseguir nivelar tudo. Fiz uma fish 6’0” com o bloco do meu longboard 9’1”. Foi a primeira prancha que shapei, no início de 2020, na garagem da casa dos meus pais com um ralador de queijo, uma lixa ferro e um serrote enferrujado. O cavalete de shape, eu mesmo fiz com umas madeiras velhas. E a fish, está no hotcoat até hoje, nunca lixei ela. Comecei a pesquisar e evoluir muito depois que comecei a shapear e fui percebendo que aquela fish tava um toco (risadas) e larguei ela pra lá.
JB – E o que você fez pra aprender mesmo?
JM – Queria estar é aprendendo pelas fábricas, mas não podia por causa da pandemia e não tinha grana pra ficar tentando fazer prancha sozinho, sem saber muita coisa. Então, montei um ateliêzinho na garagem e comecei a fabricar miniaturas de prancha pra começar a me entender com os materiais e experimentar, sem chance de perder muito material. Deu até pra reproduzir uns designs que vinha fazendo no computador mas só não dava pra testar na água (riadas). Aprendi bastante com esse mini-laboratório.
JB – E quando a pandemia começou a dar trégua?
JM – Em setembro de 2020 algumas coisas foram liberadas, fui até praia espairecer um pouco depois de seis meses de quarentena e quando vi o mar crowdeado, só queria estar naquele crowd também, mas estava sem prancha, e com aquela fish não dava. Na volta pra casa passei na First Glass, uma das fábricas mais conhecidas no Rio. Eu ia comprar um bloco novo, decente e ia fazer um longboard clássico pra mim que era o que sempre quis surfar. Chegando lá – eu com 19 anos, o gerente da fábrica olhou pra mim e perguntou, “tu sabe fazer prancha?”, respondi: olha, tô aprendendo ainda, não sei muito não, mas sei um pouco. Do nada ele perguntou se eu queria trabalhar lá, estavam precisando de um handsander, que é o cara que lixa as bordas das pranchas na mão pra ficar lisinha pro gloss. Na hora eu fiquei de cara, já tinha ido lá uns anos antes querendo aprender, mas não davam curso e agora estavam me chamando pra entrar lá. Falei: lógico! Mas eu não sei muito não, e ele disse: “relaxa, tu aprende”. Acabou que nunca fiz handsand lá, logo mais contrataram um menino que já fazia isso há muito tempo e eu fiquei só perambulando pela fábrica aprendendo de tudo um pouco e eventualmente precisaram de alguém mais pra laminar e comecei a laminar pra eles. Lá, eu tive oportunidade de conhecer, assistir e aprender com alguns dos maiores e mais antigos shapers do Brasil, entre eles Carlos Mudinho, Lipe Dylong, Pastor, Gustavo Kronig, Beto Santos e mais uma lista que passava por lá com suas plainas.
JB – E quem acabou te ensinando a shapear?
JM – Nunca tive uma pessoa mesmo do meu lado me ensinando a shapear, a maior parte do que sei foi batendo cabeça, errando, experimentando, lendo livros sobre surfe e pranchas, assistindo filmes antigos de surfe.
JB – Quais influências no surfe e shape?
JM – Sempre tive uma alma meio de jovem senhor, sempre gostei de carro antigo, música antiga, filme antigo, arquitetura antiga e com o surfe não foi diferente. Já tinha assistido alguns filmes de surfe antigos como The Endless Summer e quando veio a vontade de surfar já sabia que queria surfar como Mike Hynson e Robert August naqueles tocos. No shape, tenho bastante influência de californianos e australianos como Bob McTavish, Thomas Bexon, Keyo, Roger Hinds, Matt Calvani, Hobie e Gordon & Smith.
JB – Como vê a atual situação da cultura surfe no mundo?
JM – Com os avanços tecnológicos, o acesso à informação em escala global abriu espaço para a prática do surfe em todos os cantos do mundo, tornando assim a cultura surfe cada vez mais diversa. Mas, do ponto de vista de artesão, esses avanços embora tenham fortalecido o desenvolvimento e evolução dos equipamentos, enfraqueceram a parte humana do processo. Uma máquina pode fazer quase todo o trabalho de um shaper, mesmo ainda necessitando de alguém para criar o design e finalizar o shape. Também a facilidade de importar equipamento pode ter dificultado o desenvolvimento daquela cultura local.
JB – Acha que é possível continuar nadando contra a corrente por fazer um trabalho diferente do comum?
JM – Acredito que sim. O surfe tem se tornado um espaço bem diverso, abrindo espaço pra diferentes formas de expressão. Além disso, a cultura do surfe de pranchas clássicas e alternativas é bem forte em alguns lugares do mundo, e no Brasil não precisa ser diferente, a gente tem onda pra isso e esse movimento tem crescido cada vez mais por aqui.
Para conhecer mais sobre as pranchas do João, visite seu Instagram @jaumsurfboards. Você também encontra suas pranchas, e ele ocasionalmente, na Small Riders no Recreio, Rio de Janeiro.