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Temos que fortalecer a presença preta no Brasil país do surf

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Alguém tem dúvida de que é muito mais fácil para um surfista branco ser bem sucedido em qualquer área do esporte?

Quantas leituras uma foto permite? O ditado que diz que uma imagem vale mais que mil palavras reverência justamente o poder que as imagens tem de comunicar sem que nada precise ser dito. Fica por conta de quem observa a leitura do que está sendo visto. O que pode fazer com que uma mesma imagem comunique diferente mensagens para diferentes pessoas. Ou seja, eu posso ver uma imagem e ter uma leitura totalmente diferente da pessoa ao meu lado. Claro que um texto também pode ser interpretado de diferentes maneiras, mas a margem de possibilidades é bem mais reduzida.

Na sexta-feira passada, dia 1º de dezembro de 2023, a equipe brasileira conquistou um feito histórico, vencendo o Mundial Jr. da ISA, realizado na praia da Macumba, Rio de Janeiro. Durante o evento foram divulgadas imagens da equipe que circularam nos mais diversos meios de comunicação e mídia social. Minha reação inicial a essas imagens foi de um sorriso de aprovação, alegre pela conquista de mais um título significativo para o surf brasileiro. Isso até me deparar com uma dessas imagens postada num grupo de surfistas do qual faço parte no WhatsApp e ocasionalmente acompanho. Digo ocasionalmente pois são tantos os grupos a serem verificados diariamente, e às vezes tão aceleradas as trocas de mensagem, que é virtualmente impossível estar a par de tudo que é falado ali.

Mas eu tento. Por curiosidade pessoal, e também pelo que eu julgo ser um dever profissional, já que os grupos são um excelente termômetro para sentir o que está pegando no universo do surf. Bom, nesse caso, a referida imagem da equipe brasileira, a mesma que ilustra esse texto, vinha acompanhada de um comentário que me abriu os olhos para algo que eu ainda não havia enxergado naquela foto: “Não tem um preto, né? Ou preta? Bizarro? Só loirinho. Viramos o país do surf, mas com surfistas com cara de gringos”.

Não se trata aqui de tirar uma conclusão precipitada, nem de querer buscar uma polêmica para caçar clicks. Foi algo que realmente me tocou como um questionamento válido, ainda que típico de grupos de WhatsApp, onde os mais diversos assuntos são abordados de forma espontânea, num ambiente que não prima pelo aprofundamento dos mesmos. Meu entendimento é de que os temas tratados num grupo de WhatsApp devem permanecer entre os participantes do grupo, por uma questão de privacidade. Como nesse caso o comentário foi feito por um jornalista especializado em surf, que é também o administrador do grupo, achei que o mais correto seria informá-lo que seu comentário havia me inspirado a escrever esse texto.

O jornalista é o Gustavo Migliora, e o nome do grupo é Comenta Cako, homônimo da sua conta no Instagram @comentacako, onde ele costuma postar comentários tão inteligentes quanto impiedosos. E que, em muitas das vezes, despertam reações apaixonadas e discussões calorosas. Bom, a resposta do Gustavo à minha mensagem de que iria mencionar seu comentário foi a que eu esperava dele: “Fica à vontade, Adrian, se quiser pode me citar também”. O que eu acho mais do que justo, pois foi dele a leitura reveladora da imagem que eu não havia tido.

Após o comentário do Gustavo, que até onde eu sei é branco, notando acertadamente a estranheza de não haver naquela imagem, que de certa forma representa o futuro do surf brasileiro, ninguém de pele preta, outros se seguiram. Nenhum discordante, muitos lembrando grandes ídolos pretos do surf brasileiro, como Tinguinha Lima, Jojó de Olivença, Wiggolly Dantas e Victor Bernardo, entre outros. Mas a discussão apenas boiou na superfície e logo mais adiante entrou outro assunto, com esse sendo deixado para trás, como é da natureza dos grupos de WhatsApp.

Do meu lado, restou a vontade de expor o comentário do Gustavo para mais gente do que os 245 participantes do grupo. Como afirmei acima, não é o caso de tirar conclusões precipitadas, como a de que a imagem da equipe brasileira Jr. é a comprovação de que existe racismo estrutural no surf brasileiro, ainda que os indícios nesse sentido sejam vários. E friso aqui que os integrantes da equipe brasileira Jr. não tem culpa nenhuma nessa constatação feita pelo Gustavo. Para eles, deixo meus parabéns pela brilhante campanha que levou a nação brasileira ao lugar mais alto do pódio.

Considerando que o Brasil tem, segundo dados do IBGE de 2022, 56% do total da população formada por pessoas negras, ou seja, que se autodeclararam pretas ou pardas, a desproporcionalidade do número de surfistas brancos nessa imagem é gritante. Que eu não tenha notado isso num primeiro momento, é mais um forte indicador de que se trata mesmo de racismo estrutural, quando algumas raças estão tão acostumadas com seus privilégios na sociedade que não conseguem se dar conta do óbvio.

Eu sou branco de origem russa e portuguesa. Ganhei uma prancha zero bala quando tinha 12 anos de idade, morava em São Paulo, mas tinha casa de praia, desde muito cedo tive acesso a viagens internacionais, estudei em colégios particulares, entrei em universidade públicas de primeira linha sem muito esforço, tirando o lugar de quem precisava mais das vagas, para depois abandonar os estudos. Preciso dizer mais…

Adrian Kojin
Adrian Kojin
Por duas vezes cruzou as Américas por terra, da Califórnia ao Brasil. Em 1987, pilotando uma moto, aventura narrada no livro Alma Panamericana, e 35 anos depois, a bordo de uma minivan. Fez parte da equipe da Fluir por quase duas décadas, 10 anos como diretor de redação. Editou também o The Surfer's Journal Brasil e colaborou com as extintas revistas Surfer e Surfing e foi editor para o Brasil do Surfline.com. Traduziu as biografias dos campeões mundiais Kelly Slater, Mick Fanning e Shaun Tomson, além de editar os livros Arpoador Surf Club e Pororoca – a onda da Amazônia, entre outros. Atualmente é diretor editorial da Hardcore e prepara o documentário sobre sua mais recente expedição @panamericansoul2022.

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