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Pan-American Soul 2022: Embaixador da Pura Vida

Q

uando conheci Gilbert Brown, em 1989, ele tinha apenas 7 anos de idade e nem surfava ainda. Sua família era vizinha do Hotel Puerto Viejo, que eu administrava, e no qual morava com minha mulher, Mila, grávida da minha filha, Moana. Anselmo, o pai de Gilbert, era um preto forte e muito alto, de mãos enormes. Descendente dos jamaicanos trazidos ao Caribe da Costa Rica para construir a estrada de ferro para Limon, e trabalhar nas plantações de banana da United Fruit Company, ele era um dos melhores pescadores de Puerto Viejo. Tínhamos a sorte de ter Anselmo como nosso fornecedor de frutos do mar. Já a mãe de Gilbert era de origem indígena, mestiça da etnia Bribri, sempre muito simpática e acolhedora. A criançada resultante dessa união brincava feliz na rua, que terminava logo ali na praia, de onde se avistava Salsa Brava disparando seus potentes tubos.


Texto Adrian Kojin / Editor Especial da HARDCORE
Foto de abre: Gilbert Brown / Salsa Brava / crédito: Augustin Muñoz

No terremoto de 1991, eu continuava vizinho da família Brown, mas agora pelo outro lado da casa deles, onde havia acabado de abrir um restaurante. Lembro claramente de nossas famílias –  Moana já com um ano e meio – ajudando-se mutuamente no desespero que se seguiu ao violento tremor e subsequente tsunami.

Depois da tragédia, que fez com que eu acabasse regressando com a família ao Brasil, só vim a encontrar Gilbert novamente quase duas décadas mais tarde, quando o fotógrafo brasileiro Kalani Brito organizou uma barca para a Costa Rica e nos disse que havia convocado o melhor surfista da terra da Pura Vida para participar. Não acreditei na coincidência, era ele, meu pequeno vizinho, agora um gigante nas ondas, cria da temida Salsa Brava.

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Durante os dias em que produzimos a matéria, viajando pela Costa Rica, com ele e Rodrigo Sino dando show de surfe, Gilbert me atualizou sobre seu pai, que infelizmente havia falecido, e sua mãe, ainda vivendo em Puerto Viejo, enquanto ele havia se mudado para Jacó. A base no Pacífico foi necessária para ele poder melhor atender seus compromissos de surfista profissional, numa brilhante e pioneira carreira, que o levou a se consagrar quatro vezes campeão nacional e viajar o planeta atrás da onda perfeita.

 

No seu auge Gilbert tinha a prancha lotada de adesivos de patrocinadores. Agora ele surfa apenas por prazer e se dedica a ensinar o que aprendeu a seus alunos.


A última vez que estive com Gilbert foi em 2015, quando encontrei com ele no mar durante um swell excepcional em Pavones. Quando comecei a expedição Pan-American Soul 2022, vinha com o nome dele anotado como um dos caras a serem entrevistados para o documentário que estou gravando. Dito e feito. Batemos um longo papo onde Gilbert, como sempre, externou toda sua vibração positiva. Confira abaixo alguns trechos.

 

Gilbert Brown – Embaixador da Pura Vida. Foto: Adrian Kojin

 

Você era moleque, mas lembra do terremoto em Puerto Viejo?

Sim, me lembro, foi uma segunda-feira, 22 de abril. Eu estava na escola, de lá fui pra casa e quando cheguei toda a gente estava na praia, vendo que a água do mar já havia recuado. Me recordo que em todo o recife havia cachoeiras (n.a.: a costa da região sul caribenha da Costa Rica elevou-se em consequência do terremoto, chegando a 1,85 m em certas partes). Os peixes e as lagostas se debatiam sobre o coral seco e eu inclusive vi que tinham uns loucos que foram pegar. Eu me dizia, esses malucos não sabem que quando o mar voltar vamos morrer todos? Demorou vinte minutos para o mar regressar. Nos recifes de fora, que estão a um quilômetro da costa, a água entrou por baixo e começou a espirrar como se fossem gêiseres, expelindo jatos de água para cima, 50, 100 metros de altura. Nessa hora do impacto da água, o povoado tremeu, e todo mundo começou a correr e gritar. De lá para chegar em terra, a água demorou um minuto, e entrou como uma maré. Na nossa casa a água chegou a entrar 30 cm acima do piso, mas a casa era suspensa em pilotis de mais ou menos um metro de altura.

 

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Você ficou na casa? Eu corri para a montanha.

Minha mãe subiu o morro, mas eu fiquei. Meu pai estava amarrando os barcos, todo mundo correu, mas cada um ficou por sua conta própria. A água veio forte, mais como uma maré do que uma onda, e entrou uns 100 metros, passou o Hotel Puerto Viejo e aí voltou e foi embora de novo pro mar. Após 15 minutos veio de novo e parou. Depois ficou um tempo tendo várias mudanças de maré durante um mesmo dia e todas extremas, super altas e super baixas.

 

Atualmente Gilbert mora no lado do Pacífico da Costa Rica e faz de Playa Hermosa seu campo de treino diário. Foto: @alexjacosurfcamp

Quais foram os anos em que você foi campeão da Costa Rica?

2001, 2008, 2012 e 2014. Poderia ter sido mais, mas entre todos esses anos eu estive viajando muito, competindo no ALAS Tour e fazendo um ou outro QS. Minha verba nunca permitiu que eu me dedicasse plenamente ao QS, mas o que eu fiz foi viajar pelo mundo. Fui várias vezes a Indonésia, Havaí, estive nas Maldivas, viajei por toda América Central. Dizia que a competição não era tudo. A competição me marcou, criou esse estilo de surfe que tenho, mas o free surf sempre foi o que existe de melhor. Surfar ondas de sonho. Eu acredito que nesse momento em que estou, com 40 anos, posso dizer que sou um surfista feliz. Passei por todo tipo de lições, passei por situações… quase me afoguei em Puerto Escondido, no Havaí bati a cabeça no coral, tive que tomar pontos e agora, recém, faz dois anos, quebrei a perna em Salsa Brava. E nem era um dia grande, estava da altura da cabeça, mas a onda é muito tubular e forte, e do jeito que a onda me pegou quebrou o osso. Mas fiz a cirurgia e estou bem. Quatro meses depois já estava surfando de novo em pranchão. Estou 97% recuperado.

 

A grave fratura na perna em Salsa Brava exigiu cirurgia, mas Gilbert já está completamente recuperado.

Quais são pra você as cinco melhores ondas da América Central?

Vamos colocar Pavones de número 1. Por que você sabe, Pavones é uma viagem. Depois, de número 2, Colorado (na Nicarágua), que é um beach break incrível. Não vou por nessa lista ondas pesadas, assassinas, que aí nem todo mundo pode surfar. E tenho que colocar na lista Playa Hermosa, pois sempre, o ano inteiro, tem uma característica de pouquíssimas ondas no planeta, nunca fica flat. Em quarto lugar vou por um beach break no Panamá, Morrillos, muito bom, muito tubular. É que estou fazendo uma lista para que as pessoas possam ficar mais relaxadas. Mas para terminar vamos colocar Salsa Brava.

 

Gilbert colocou Salsa Brava em quinto lugar na sua lista de melhores ondas da América Central, mas quando estes funcionando é com certeza sua favorita. Foto: Yilbert Cortez.

Pensei que você ia colocar Salsa Brava em primeiro lugar?

É que numa lista dessa não se trata de falar somente da qualidade da onda. Mas sim da constância da onda. Salsa Brava é muito boa, mas demora muito para que fique boa. Toma demasiados ingredientes para que a Salsa fique mesmo do jeito que um surfista quer. Mas como nem tudo é cor de rosa, Salsa Brava tem que estar nesse ranking. O surfista tem que sofrer de vez em quando. Mas a verdade é que, só na Costa Rica, temos dezenas de ondas. Isla Uvita, Playa Negra, Tetas… Fora os picos que nem se falam.

 

Gilbert Brown e sua filha. Foto: Adrian Kojin


Então não é nem preciso sair de Costa Rica?

Veja, o melhor tubo da minha vida peguei aqui em Salsa Brava. Talvez não o mais grande, mas o melhor. Impossível, de dar medo. E o mais longo e mais pleno, e olha que eu já surfei Kandui, foi em Damas. Tem muita onda boa aqui.

 

Alta performance sem perder o estilo sempre foi a característica marcante do surfe de Gilbert Brown. Foto: Jonathan Aguero

E como é que se escuta dizer que na Costa Rica só dá onda pequena?

Olha, o que acontece é que quem conhece esses lugares quer as ondas só para eles. O que eu digo é que somos surfistas e estamos no esporte mais legal do planeta. Somos os mais felizes, pois é pura felicidade. Ser feliz é estar em contato com a natureza, sempre temos umas paisagens incríveis onde vamos surfar, até água fria fica boa.

 

Mas acaba acontecendo que perguntamos se a onda está boa e nos dizem, não, está ruim, esse lugar não serve pra surfar, vão te roubar. Esses surfistas se transformam em mentirosos, mas quando você vai ver estão ali, morando. Somos surfistas, temos que compartir. Se vamos surfar juntos eu e você, e eu peguei uma onda muito boa e vem outra onda, e estou em posição, mas você ainda não surfou, eu vou deixar essa onda para você. É minha obrigação dizer, Adrian essa é sua, esse é o espirito dos surfistas. Deve ser de dividir as ondas. Se querermos surfar com amigos, e ninguém quer surfar sozinho, temos que, novamente, aprender a compartilhar.

 

Acompanhe a rota de Pan-American Soul pelo @panamericansoul2022.

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* Nesta seção, o Editor Especial da HARDCORE, Adrian Kojin, traz com exclusividade os diários da sua road trip Pan-American Soul 2022, da
Califórnia até o Brasil. 

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