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Kauli Vaast e a energia ancestral: como o ‘Mana’ influenciou a vitória olímpica

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Quando o taitiano Kauli Vaast conquistou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 2024, ele não apenas celebrou sua vitória com a habitual euforia de um campeão. Em suas primeiras palavras após o título, Kauli declarou que o Mana estava com ele desde o início da competição. Para diversos povos que habitam as ilhas do Pacífico, e especialmente para os polinésios, essa declaração carrega um significado profundo e espiritual, que transcende o simples ato de surfar.

Teahupo’o, conhecida como uma das ondas mais perigosas e veneradas do mundo, possui uma reputação que vai além de sua física imponente. Para os taitianos, as águas e as ondas desse lugar são dotadas de Mana, uma força espiritual poderosa que pode influenciar tanto os eventos quanto as pessoas. Kauli Vaast, um filho do Taiti, cresceu compreendendo a importância de respeitar essa força, e, partindo dessa crença, seu triunfo não foi apenas um feito atlético, mas um momento em que ele se conectou profundamente com essa energia ancestral.

Ao afirmar que a Mana estava com ele, o campeão olímpico reconheceu publicamente que sua vitória foi mais do que fruto de seu treinamento e habilidade. Foi também resultado de uma conexão espiritual com o lugar, com as ondas e com a força que os polinésios acreditam ser capaz de influenciar o destino. Em Teahupo’o, Kauli não estava sozinho; ele estava envolto pela presença viva da Mana, uma força que o impulsionou a surfar com maestria e coragem.

O conceito de Mana

Kauli Vaast mana
A ideia de Mana está presente em diversas culturas do Pacífico, como é o caso do Taiti e Havaí. Foto: Reprodução

Para entender melhor a profundidade dessa declaração, podemos recorrer aos estudos de Marcel Mauss, um dos grandes nomes da antropologia, que explorou o conceito de Mana em sua obra clássica, O Ensaio sobre a Dádiva. Mauss observou que Mana, nas culturas polinésias e melanésias, é uma força que se manifesta de maneira tangível e intangível, permeando objetos, pessoas e eventos com poder e autoridade.

No contexto esportivo, a ideia de Mana pode ser vista como a força que permite a um atleta transcender seus limites, alcançando feitos que parecem impossíveis. Para Mauss, Mana é entendida como uma energia que circula entre pessoas e objetos, sendo tanto uma dádiva quanto uma responsabilidade. É algo que se deve buscar, honrar e utilizar com sabedoria. Kauli Vaast, ao se conectar com a Mana em Teahupo’o, teria se tornado não apenas um campeão, mas também um guardião dessa força, utilizando-a para realizar algo extraordinário.

Mauss sugere que a Mana, como uma dádiva, envolve uma reciprocidade; aquele que a recebe deve algo em troca. Para Kauli Vaast, a vitória olímpica não seria, portanto, apenas uma realização pessoal, mas também uma forma de honrar a dádiva que ele acredita ter recebido. Ele deve agora viver de acordo com essa força, continuando a respeitar as tradições e o espírito de seu povo.

Nesse sentido, sua vitória em Teahupo’o representa a comunhão entre o homem e a natureza, entre o atleta e as forças espirituais que os taitianos acreditam influenciar suas vidas. A Mana que Kauli sentiu e declarou publicamente é um lembrete de que, no Taiti, o esporte e a espiritualidade estão profundamente entrelaçados.

Quem acompanhou as disputas de surf dos jogos olímpicos certamente ficou impressionado com a habilidade de Kauli Vaast em encontrar as melhores ondas, ao mesmo tempo em que seus adversários não tiveram o mesmo êxito. Gabriel Medina, que vinha sendo apontado como favorito à medalha de ouro, foi eliminado porque simplesmente não conseguiu surfar, uma vez que as ondas “sumiram” na semifinal, e o mesmo aconteceu com Jack Robinson na final.

Nosso pensamento racional atribui esses acontecimentos ao acaso e ao conhecimento local do campeão olímpico. Mas, por mais cético que você seja, permita-se ao menos contemplar a ideia de que Kauli foi guiado e protegido por uma força invisível, mas palpável. E ao aceitar isso, ele renovou o compromisso de sua geração com a cultura ancestral de seu povo. Essa compreensão nos ajuda a entender que o surf pode ser também uma expressão de força espiritual e cultural que transcende o oceano e as ondas.

Luciano Meneghello
Luciano Meneghello
Nascido e criado em Santos (SP) e atualmente vivendo em Floripa, Luciano Meneghello começou a surfar no início dos anos 1980 e testemunhou o desembarque da primeira canoa havaiana no Brasil, a Lanakila, no porto de sua cidade. Atuando no jornalismo, foi um dos fundadores da revista Fluir Standup e do site SupClub. Colaborou também com diversos veículos do segmento, como revista Alma Surf, Go Outside, site Waves, entre outros. Em 2020 publicou seu primeiro livro "Raiz, uma viagem pelas origens do surfe, canoa polinésia, stand up paddle e prone paddleboard". Atualmente está se graduando em antropologia pela UFSC, é o responsável pelo portal Aloha Spirit Mídia, e editor executivo da Hardcore.

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