“De repente, de trabalhador braçal nos Estados Unidos, eu agora era um jornalista de surf na sua primeira reportagem como correspondente de guerra.”
Por Adrian Kojin
Se foi o filósofo chinês Confúcio quem disse que “escolha um trabalho que você ame e não terá que trabalhar um único dia em sua vida”, nunca ficou provado. Fato é que a frase está entre as mais citadas da história por tocar numa questão essencial, que é a decisão do rumo a ser tomado profissionalmente para se ter uma vida plena.
Ao contrário do que muita gente com quem converso sobre o assunto pensa, eu não escolhi ser jornalista de surf. Até por que nos dois anos em que cursei a faculdade de jornalismo, antes de abandoná-la para poder ter mais tempo para o surf, isso no início dos anos 80, praticamente nem existia o que chamamos jornalismo de surf. Iria trabalhar onde? E, se formos mais adiante, até hoje a expressão jornalista de surf é vista com uma certa ironia.
De qualquer maneira, o destino fez com que fosse essa a ocupação a que me dediquei com mais constância e afinco do que qualquer uma das várias outras que almejei ou experimentei. Estudei para ser engenheiro agrônomo e historiador, sem encontrar motivação para ir além do primeiro ano em ambos cursos. Fui contato publicitário, chapeiro, tratador de cavalos, motorista de caminhão, carpinteiro, gerente de hotel, guia de turismo de aventura, dono de jornal, diretor de marketing. E posso dizer com um sorriso largo na cara, que a profissão de jornalista de surf foi a mais generosa comigo.
Contradizendo o que diz o provérbio, independente do amor ao meu ofício, eu trabalhei sim, e muito. Por vezes exausto, varando noites, em outros momentos me questionando se era isso mesmo que eu deveria estar fazendo da vida. Mas, para minha tranquilidade existencial, o saldo final sempre foi positivo. Posso dizer que consegui ser remunerado justamente ao longo da minha carreira. Ou até excessivamente, se levar em conta todos os bônus advindos das experiências incríveis que a profissão de jornalista de surf me proporcionou.
Tive o privilégio de estrear na mais prestigiada revista do final dos anos 80, a americana Surfer Magazine, apelidada de a “Bíblia do surf”, com oito páginas preenchidas por texto e fotos de minha autoria. A matéria narrava uma viagem de moto, realizada entre 1987 e 88, com uma prancha na garupa, entre a Califórnia e o Brasil. Foram oito meses de estrada, rodando 25 mil kms e cruzando 14 países. A aventura rendeu também artigos em português para as revistas Trip e Duas Rodas, e o livro “Alma Panamericana”.
Recebi, pouco depois de ter chegado ao Brasil, uma proposta da revista Surfer para retornar à conflagrada América Central, e me aprofundar na exploração do litoral nicaraguense em meio ao conflito entre os Sandinistas e os Contras. Topei. E pronto, de repente, de trabalhador braçal nos Estados Unidos, eu agora era um jornalista de surf na sua primeira reportagem como correspondente de guerra.
Aconteceu que, ao fim da incursão em território Nica, não regressei ao Brasil, como planejado. Acabei ficando pelo Caribe da vizinha Costa Rica, alojado num, então, pequeno vilarejo, Puerto Viejo, onde quebrava uma onda semi-secreta, considerada por muitos o melhor tubo da América Central, Salsa Brava. Me tornei sócio gerente do único hotel do lugar, uma velha construção de madeira caindo aos pedaços.
Conto isso para aclarar o que disse no começo do meu texto, que não escolhi ser jornalista de surf. Escolhi viver para surfar. Sempre as ondas primeiro, a profissão depois. Teria que gastar muitos parágrafos aqui se fosse explicar como, após três anos de muitos tubos caribenhos, e nenhuma letra ou foto vertida em matéria, novamente enveredei pelo caminho das revistas de surf, até me ver, muitos anos mais adiante, dirigindo a redação da Fluir.
Mas vale notar que, no final de 1991, ou início de 92, não estou certo agora, fiz minha primeira matéria para a Hardcore. Pautado pelo vibrante editor Alceu Toledo Junior, o Juninho, contei como havia sido encarar o destruidor terremoto, seguido de um tsumani, que me expulsara da Costa Rica, depositando de volta no Brasil a mim e minha mulher, Mila, companheira solidária nos sonhos mais malucos. Ela e eu desempregados e com uma filha, Moana, de um ano e meio, para criar, à qual, algum tempo depois, iria se juntar o Keone.
Foram quase duas décadas contínuas de Fluir, três anos à frente do The Surfer’s Journal Brasil, e inúmeras colaborações com publicações de outros países, como Estados Unidos, França, Inglaterra, Portugal e Japão. Além de traduções de biografias de grandes ídolos, edição de livros e consultorias em roteiros de documentários focados no surf. Ao embalar de verdade no jornalismo de surf levei o ofício extremamente a sério. Do início casual, tornou-se uma profissão real, que havia me escolhido, e que eu amava. O que não quer dizer que, como em boa parte das grandes histórias de amor, não tenham havido períodos turbulentos.
Permita-me dar um salto no tempo, ou não chegarei à razão mais imediata desse texto. Estava eu, por volta de julho de 2022, justamente me reconciliando com o jornalismo de surf, após um período de saturação da relação, quando recebi uma ligação totalmente inesperada. Do outro lado da linha, o publisher Caco Alzugaray, me convidava para tomar parte de um novo projeto que ele tinha para a Hardcore, desde 2009 sendo publicada pela editora Rocky Mountain, sob seu comando.
Ainda que lisonjeado pela lembrança e oportunidade oferecida, tive que, inicialmente, negar minha participação. Atendi o telefonema dele enquanto trafegava pela Pacific Coast Highway, num momento em que me preparava para refazer o mesmo trajeto de 35 anos atrás, por terra, da Califórnia ao Brasil, dessa vez numa minivan.
Expliquei isso ao Caco, só que, conversa vem, conversa vai, encontramos uma alternativa paralela. Terminou que fechamos uma parceria. Peguei a estrada rumo sul com o compromisso de enviar para a Hardcore, semanalmente – na medida do possível – um relato das minhas andanças. E assim procedi durante nove meses, curtindo muito cada texto despachado e o retorno recebido dos leitores. Numa jornada solo, feita com um orçamento pra lá de enxuto e repleta de desafios ao longo do caminho, toda e qualquer mensagem de apoio recebida era muito bem vinda para me impulsionar adiante.
Cheguei. Missão cumprida. E agora? Nos planos um novo livro e um documentário. Mas ainda mais urgente, tomar uma decisão em cima daquela conversa com o Caco, iniciada ainda lá na Califórnia, quase um ano antes, e que teve prosseguimento em diversas oportunidades ao longo do caminho. Topei, acertamos para que eu assumisse a direção editorial da Hardcore. Já estou aqui desde junho, sincronizando com a equipe, estudando a profusão de mídias que, desde o advento da “Brazilian Storm”, tomaram um súbito interesse pelo surf, e fazendo alguns ajustes iniciais. Tudo enquanto planejávamos o projeto que estamos lançando hoje.
A Hardcore tem uma história de combate e sobrevivência como nenhum outro veículo na mídia de surf brasileira possui. É aquela luta de guerrilha, travada a partir do subterrâneo, com alicerces sólidos fincados na sua autenticidade. Sua principal característica, que não perdeu em mais de três décadas de existência, é ser uma publicação raiz, de surfistas para surfistas, sempre feita por uma equipe apaixonada pelo surf.
Hoje, muito diferente de quando abandonei a faculdade de jornalismo para pegar onda, o surf é assunto diário nos principais meios de comunicação brasileiros e tem presença forte em todas as mídias sociais. Só tenho a agradecer por estar aqui exercendo um trabalho que eu amo. E prometo que vou dar meu melhor para estar à altura desse novo desafio.