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Construindo a identidade cultural do surf brasileiro

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“Identidade cultural” é um conceito muito usado em ciências sociais, como a antropologia, para analisar como indivíduos e grupos constroem e mantêm suas identidades através de práticas compartilhadas e significados simbólicos. Identificar esses símbolos nos faz compreender fenômenos como a coesão social ou potenciais pontos de conflito e rupturas.

No caso do surf brasileiro, há algum tempo venho observando o início de um processo de ruptura e reestruturação dessa identidade. Nos últimos anos, ídolos do surf brasileiro, como Gabriel Medina e Ítalo Ferreira, têm sido questionados por sua forma de se vestir ou por seus gostos musicais, considerados “fora do padrão” por alguns. Mas será que realmente há um “padrão” em um país tão diverso como o nosso? Quando e como foi criada a identidade cultural do surf brasileiro? Ela realmente existe?

+ O surf e o futuro ancestral

Quando o surf começou a se popularizar para valer no Brasil, no início dos anos 1970, os hábitos e comportamentos dos surfistas brasileiros eram abertamente inspirados no que era produzido na Califórnia, então o epicentro da indústria do esporte. De vestimenta à música, tudo que era produzido lá, era reproduzido cá. A influência californiana não era apenas uma questão de estilo, mas uma expressão de identidade cultural que refletia uma forma de apropriação e adaptação cultural. Os surfistas brasileiros viam na Califórnia um modelo a ser seguido, em um processo que os antropólogos chamam de “cultural borrowing” ou “empréstimo cultural”.

Nos anos 1980, quando a Austrália se tornou a potência mundial no surf, seguimos essa tendência e os hábitos australianos passaram a ser repetidos em águas brasileiras. Músicas, hábitos, gírias e roupas vindas da Austrália começaram a dominar o cenário brazuca, ao mesmo tempo em que uma versão surfística do complexo de vira-latas (um termo criado pelo jornalista Nelson Rodrigues para descrever um sentimento de inferioridade de brasileiros em relação a outros países) ganhar uma expressão própria na mídia especializada: os “A.B.O.G”, sigla para “Associação Brasileira de Baba-Ovo de Gringo”, uma brincadeira da época que denunciava o ímpeto de muitos brazucas em valorizar excessivamente tudo que vinha de fora, em detrimento do que era produzido aqui, da qualidade de nossos atletas, música, indústria, pranchas, etc. Para os ABOG, tudo produzido aqui era “pior” do que lá fora.

identidade cultural do surf brasileiro
Filmes como “Fabio Fabuloso” passaram a buscar nossas próprias referências. Foto: Reprodução

Somente a partir da virada do século começou-se a se desenhar uma identidade cultural mais robusta do surf brasileiro. Filmes como “Cambito”, “Surf Adventures”, “Fabio Fabuloso” e “Samba Trance & Rock’n’Roll”, buscaram incorporar uma linguagem regional à identidade do surf. Essas produções não apenas mostravam o surf como um esporte, mas como uma expressão cultural brasileira, com suas próprias narrativas, paisagens e personagens. Mas, na minha visão, a quebra de paradigma veio para valer com a chamada Brazilian Storm e o título mundial de Gabriel Medina.

De repente, o mundo passou a se interessar pelo que era produzido no Brasil e isso ajudou a minar o complexo de vira-latas que ainda era muito forte por aqui. Surfistas brasileiros começaram a ser reconhecidos não apenas por suas habilidades, mas também por sua singularidade cultural. Da mesma forma, shapers e equipamentos “made in Brazil”, como parafinas, por exemplo, passaram a experimentar uma demanda internacional. Curiosamente, os brasileiros que se tornaram grandes ídolos do surf mundial, como Italo Ferreira e Gabriel Medina, são a antítese do que se entendia no passado como identidade de um surfista tradicional. Seus hábitos e estilos são muito mais parecidos com o de jogadores de futebol do que de surfistas. Mas, então, pergunto: existe, realmente, um estilo, uma identidade cultural do surf brasileiro madura o suficiente ou ainda estamos a construindo, por que, nesse caso, não faz sentido questionar Medina por ouvir pagode ou Italo por usar “bermuda de crossfiteiro”.

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Italo Ferreira ao lado de Tati Weston-Webb durante coletiva de imprensada WSL. Foto: @WSL / Thiago Diz

Ao mesmo tempo, a influência brasileira começou a se espalhar globalmente. Ídolos estrangeiros, como John John Florence, passaram a incorporar gírias e músicas brasileiras em suas postagens no Instagram. Segundo Clifford Geertz, em sua obra “A Interpretação das Culturas”, esse fenômeno é um exemplo de como as culturas estão em constante diálogo e transformação, incorporando e adaptando elementos uns dos outros. Portanto, ao invés de simplesmente refratar aquilo que nos parece estranho, podemos buscar compreender como se organizam essas dinâmicas culturais. Não é algo fixo, mas um processo contínuo de negociação, adaptação e ressignificação que se torna mais rico quando as influências, internas e externas, são mútuas. Isso, para mim, é o que será capaz de tornar a identidade cultural do surf brasileiro tão rica e diversa quanto ela pode ser.

Luciano Meneghello
Luciano Meneghello
Nascido e criado em Santos (SP) e atualmente vivendo em Floripa, Luciano Meneghello começou a surfar no início dos anos 1980 e testemunhou o desembarque da primeira canoa havaiana no Brasil, a Lanakila, no porto de sua cidade. Atuando no jornalismo, foi um dos fundadores da revista Fluir Standup e do site SupClub. Colaborou também com diversos veículos do segmento, como revista Alma Surf, Go Outside, site Waves, entre outros. Em 2020 publicou seu primeiro livro "Raiz, uma viagem pelas origens do surfe, canoa polinésia, stand up paddle e prone paddleboard". Atualmente está se graduando em antropologia pela UFSC, é o responsável pelo portal Aloha Spirit Mídia, e editor executivo da Hardcore.

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