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Polinésios, peruanos, chineses, africanos? Quem surfou primeiro?

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Se até hoje não chegamos a um consenso sobre o que é surf, o que dizer então sobre quem foi o primeiro a surfar?

Este é um tema que certamente abre espaço para inúmeras discussões, especialmente entre aqueles que se dedicam a explorar a história de uma atividade que agrega, como poucas, esporte e cultura. Graças a esforços significativos empreendidos por historiadores e antropólogos, sabemos que a prática de surfar ondas desempenhou um papel significativo no cotidiano de alguns povos ao longo da história. As versões mais conhecidas incluem as tradições havaianas/polinésias e peruanas. Contudo, estudos revelam que essa fascinante atividade também encontrou expressão na costa oeste da África, na região que atualmente corresponde à faixa litorânea de Gana ao Senegal, assim como na imponente pororoca do rio Qiantang, na China, onde são relativamente recentes as descobertas sobre uma forma ancestral de surf.

Em boa parte, essa falta de informações se deve por não ser fácil reunir dados confiáveis sobre esse tema, uma vez que as fontes originais estão em chinês arcaico e ainda há pouco incentivo para a realização de novas pesquisas. De qualquer forma, os escassos documentos históricos descobertos, traduzidos e estudados, já são suficientes para deduzirmos que na China Imperial existiu uma prática ritual de surfar as ondas da pororoca do Qiantang, restrita a um grupo de monges, mas ignorada pelo restante do império, existiu do século XIII ao XVI, e então desapareceu. Praticamente tudo que se sabe sobre o surf arcaico praticado na China foi sintetizado através de um artigo escrito pelo historiador e cineasta australiano Geremie Barmé chamado “The Tide of Revolution”, publicado em 2011, na revista eletrônica The China Heritage Quarterly.

primeiro a surfar
Gravura chinesa de 1610 intitulada “‘Observing the Tidal Bore”. Foto: Reprodução/ Richard E. Strassberg, Paisagens Inscritas: Escrita de Viagem da China Imperial, pp.252-53

No caso da África Ocidental, os registros mais antigos vêm através de relatos feitos por viajantes europeus (britânicos e alemães) entre os séculos XVII e XIX. Em seu diário de viagem, mais tarde transformado em livro, o alemão Michael Hemmersam descreveu a prática a qual podemos interpretar como um tipo de surf deitado (bodyboarding) com pranchas feitas em madeira e fibras vegetais. Os praticantes, notadamente jovens e crianças, possuíam, segundo descreve Hemmersam, uma técnica sofisticada que envolvia entrar nas ondas antes de quebrarem (e não simplesmente serem arrastados pela espuma). O etnólogo francês, Jean Rouch, autor de “Surf-riding sur la Côte d’Afrique. Notes Africaines” (1949) faz referências a outra descrição, datada do século XIX feita por James Edward Alexander na costa de Gana, também sobre surf. Mas, ainda que as evidências sobre o surf ancestral africano sejam mais robustas do que no caso da China Imperial, ainda há pouca pesquisa sobre o tema e a hipótese mais aceita até o momento é a de que se tratava de uma atividade lúdica restrita a crianças e adolescentes, entendida como uma brincadeira, mas que também tinha a função de prepara-los para domar as ondas quando se tornassem pescadores.

Kevin Dawson, autor de “Swimming, Surfing, and Underwater Diving in Early Modern Atlantic Africa and the African Diaspora” (2009), também faz referência à impressionante capacidade dos africanos da costa oeste em conduzir suas canoas no mar. O surf de canoa, segundo nos revela Dawson, era uma habilidade indispensável a pescadores e para o desembarque de mercadorias e de pessoas a bordo de navios ancorados nessa região do litoral africano. Dada a escassez de baías abrigadas, os nativos eram obrigados a lidar com as ondas para entrar e sair do mar, tornando essa habilidade uma parte essencial da vida marítima local. Em 1966, quando Bruce Brown lançou “Endless Summer”, um dos mais importantes filmes de surf da história, a costa oeste da África é escolhida como um dos destinos do cineasta. Em sua visão tipicamente euro-centrista, Brown descreve Mike Hynson and Robert August como os “pioneiros” do surf africano, sem se dar conta de que aquela população nativa já tinha intimidade com as ondas ao longo de séculos. Nem mesmo uma exibição de surf de canoa feita diante de sua câmera o convence do contrário.

quem foi o primeiro a surfar
As canoas de cerca de um metro e oitenta de comprimento que utilizadas para surf na costa oeste da África eram menores e mais leves do que as pranchas de surf contemporâneas. Foto: Maria H. Kingsley, Estudos da África Ocidental (Londres: 1901).

Mas se na costa ocidental da África o surf era entendido como uma brincadeira entre jovens e na China realizado quase em segredo por um grupo restrito de monges, no caso da Polinésia e, mais especificamente, do Havaí, essa era uma atividade profundamente enraizada na cultura local.

Muito se sabe sobre essa prática e sua importância cultural graças aos estudos da tradição oral no Havaí conduzidos por historiadores nativos a partir do século XIX que aprenderam a escrita através de missionários protestantes. Esses primeiros historiadores coletaram lendas e tradições de seu povo para preservá-las dentro do conceito ocidental de “registro histórico escrito”. Artigos publicados em jornais havaianos desde 1834 foram posteriormente reunidos e traduzidos para o inglês no final do século XIX e início do XX. Esses escritos incluem obras de David Malo, John Papa Ii e Zephrin Kepelino, entre outros historiadores havaianos. Dentre as histórias contadas através da tradição oral destaca-se, por exemplo, uma sobre o chefe Umi, datada do século XV ou início do XVI, descrevendo suas habilidades excepcionais no surf; outras, detalham a fabricação de pranchas e rituais associados desde a chegada dos primeiros polinésios às ilhas havaianas, que teriam ocorrido a partir do ano 1000 – segundo apontam estudos feitos por meio de técnicas de radiocarbono em artefatos encontrados em escavações feitas em regiões onde se instalaram os primeiros assentamentos dessas populações.

Também são ricos em detalhes os registros escritos feitos por navegadores europeus, sobretudo aqueles produzidos pela tripulação da frota inglesa comandada pelo capitão inglês James Cook, uma das primeiras a navegar pela Polinésia e a se relacionar com os nativos. A primeira descrição europeia conhecida sobre o surf corresponde à de Joseph Banks, um dos tripulantes da expedição de Cook, feita em 1769, no Taiti, na qual descreve a incrível habilidade dos nativos em meio às ondas com suas canoas. Já o surf em pé será descrito pela primeira vez na terceira expedição do capitão inglês, dessa vez no Havaí, por meio dos relatos de William Anderson, em 1777. Em “Surfing: A History of the Ancient Hawaiian Sport” (1966), os antropólogos Ben Finney e James D. Houston revelam que surfar ondas era um hábito praticado em diferentes ilhas da Polinésia e também em algumas partes das Micronésia, no entanto, à exceção do Havaí, essa atividade era praticada por meio de pranchas pequenas e deitado. Somente nas ilhas havaianas (e possivelmente no Taiti), era praticado em pé.

No detalhe, o primeiro desenho de uma prancha de surf conhecido. A ilustração foi feita por John Weber, o pintor oficial da terceira expedição de Cook no Havaí, no século XVIII. Foto: Reprodução

E em nenhum outro lugar do planeta havia tanta gente surfando e tanta riqueza cultural envolvendo o surf como no Havaí antigo. De reis (ali’i) aos plebeus, todo mundo pegava onda, incluindo até entidades sagradas, como é o caso de Lono, deus da fartura e da fertilidade. Outro ponto muito interessante sobre a história do surf no Havaí é o fato de que a primeira ilustração mundialmente conhecida de um surfista e uma prancha de surf, no caso, uma alaia, foi feita por John Weber, o pintor oficial da terceira expedição de Cook. Trata-se de uma panorâmica da baía de Kealakekua, Ilha Grande, Havaí, em 1779, onde são visíveis as duas embarcações da expedição, várias canoas e um surfista nativo remando com sua prancha no meio do mar.

Pode-se dizer que o surf, que hoje é praticado em todo o mundo, tem sua origem na Polinésia e começou a se espalhar do Havaí para o resto do mundo no início do século XX, inclusive no Peru, onde existe uma profunda identificação ancestral (simbólica) entre os surfistas peruanos da atualidade com as embarcações conhecidas como caballitos de totora.

Segundo defendem os surfistas peruanos, essas embarcações, que existem há pelo menos 3000 anos, seriam usadas para a pesca e também de forma lúdica nas ondas, ou seja, uma forma de surf tão ou mais antiga que a desenvolvida na Polinésia. Isso é o que defende o economista e historiador peruano Amayo Zevallos, autor do artigo “El caballito de totora Mochica y el origen del Surf”, publicado em 2010 na Revista de Pensamiento Crítico Latinoamericano.

Escultura mochica datada de 400 d.c. é uma das poucas evidências concretas sobre a existência de uma forma de surf ancestral praticada no Peru defendida pelo historiador Amayo Zevallos. Foto: Reprodução

A hipótese de Amayo Zevallos é inspirada em sua observação de antigas esculturas mochicas, população pré-inca a quem se atribui a criação dos caballitos de totora, que apresentam indivíduos ajoelhados nos caballitos (posicionamento tradicional dessa embarcação adotado até hoje pelos pescadores) e outros deitados em posição de cavaleiros, os quais, acredita Zevallos, estão assim por estarem sendo impulsionados por ondas. O historiador defende que, a partir dessas duas representações, é possível deduzir que existiram dois tipos de caballitos de totora: um para pesca e outro para lazer nas ondas (o segundo caso), que recebeu de Zevallos o nome de “Caballito Especial para Surcar el mar” (CES).

O CES, segundo a sua hipótese, desapareceu com a chegada dos conquistadores espanhóis. O historiador acredita que isso aconteceu por um lado à repressão da Igreja que não via estas práticas com bons olhos por se tratar de um lazer pagão. E, por outro lado, à própria ruptura social e o fim do tempo livre para lazer para a população, agora obrigada a trabalhos forçados impostos pelos conquistadores, acabando assim com o CES e, portanto, com o surf ancestral peruano. Já o “shape clássico” do caballito de totora (usado para pesca) permaneceu até hoje, pois, sendo utilizado para trabalho (pesca), não recebeu censura.

Além disso, Zevallos faz uma comparação com o Havaí, onde o surf só não desapareceu porque a monarquia havaiana resistiu e manteve influência política até o final do século XIX, quando foi extinguida após um golpe de estado apoiado pelos Estados Unidos. No caso do Peru, os habitantes pré-colombianos perderam sua hegemonia em definitivo pouco tempo após a invasão dos colonizadores espanhóis e tiveram que se sujeitar a nova ordem política estabelecida pelos conquistadores baseada em trabalhos forçados e nenhum lazer.

Petroglifo (gravura rupestre esculpida em rochas) encontrado na Ilha Grande do Havaí, feito aproximadamente há 600 anos mostra um surfista sobre sua prancha. Foto: Kirk Lee Aeder

Cabe pontuar que, ao contrário do surf havaiano, narrado em detalhes em diversas canções ancestrais e documentado pelos primeiros navegadores europeus, no caso do Peru não há nada, além da interpretação de algumas esculturas ancestrais citadas por Zevallos, que descreva a existência de alguma atividade entendida como surf ou da existência de um caballito de totora feito exclusivamente para o lazer. Mas isso não impede que essa hipótese seja apaixonadamente defendida por surfistas peruanos de renome, como é o caso do lendário Felipe Pomar, primeiro campeão mundial da história, que defende, inclusive, a hipótese de que foram os peruanos que ensinaram os polinésios a arte de deslizar pelas ondas.

Como podemos ver, não é fácil e nem conclusivo determinar quem foram os primeiros povos a surfar. Faltam estudos e incentivo a pesquisas, contudo, a medida em que o esporte se populariza em todo mundo, consequentemente mais interesse e apoio a investigações sobre sua história devem acontecer, possivelmente acompanhados de novas e intrigantes descobertas. Independente disso, é reconfortante perceber que o surf representa uma profunda conexão com nossa ancestralidade não apenas persiste, mas também se mantém mais vibrante do que nunca.

Luciano Meneghello
Luciano Meneghello
Nascido e criado em Santos (SP) e atualmente vivendo em Floripa, Luciano Meneghello começou a surfar no início dos anos 1980 e testemunhou o desembarque da primeira canoa havaiana no Brasil, a Lanakila, no porto de sua cidade. Atuando no jornalismo, foi um dos fundadores da revista Fluir Standup e do site SupClub. Colaborou também com diversos veículos do segmento, como revista Alma Surf, Go Outside, site Waves, entre outros. Em 2020 publicou seu primeiro livro "Raiz, uma viagem pelas origens do surfe, canoa polinésia, stand up paddle e prone paddleboard". Atualmente está se graduando em antropologia pela UFSC, é o responsável pelo portal Aloha Spirit Mídia, e editor executivo da Hardcore.

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