“Em essência, não faz sentido restringir a compreensão do surf a um único tipo de equipamento.”
Por Luciano Meneghello
Se você pega onda há algum tempo, é provável que já tenha se envolvido em conversas que orbitam em torno da intrigante questão “o que é surf?”. Será que o bodyboard é considerado surf? E o stand up paddle? E o longboard? Ou será que apenas aqueles que dominam as pranchas modernas, as chamadas “shortboards”, têm o privilégio de serem rotulados como surfistas?
Quando um tema como esse é abordado com base na perspectiva emocional ou na opinião pessoal, é natural que cada indivíduo apresente uma resposta única. No entanto, ao examinarmos essa questão à luz dos fatos históricos, considerando sua origem, aspectos culturais e disseminação a partir da região da Polinésia, no Oceano Pacífico, e mais precisamente, no Havaí, as nuances da definição se tornam mais evidentes.
Existem hipóteses e relatos históricos que apontam para sociedades antigas que, de maneira lúdica, desfrutavam das ondas em várias partes do mundo, incluindo a China, Peru, costa oeste da África e várias ilhas do Pacífico. Entre todas, nenhuma se compara ao Havaí, onde a prática não apenas estava profundamente enraizada na cultura local, mas também era realizada de maneira extremamente sofisticada. Foi a partir de lá que o surf foi “descoberto” e disseminado para o resto do mundo.
Contudo, sendo uma das últimas ilhas do Pacífico a serem alcançadas pelos polinésios, é natural que o surf havaiano tenha sido uma herança de outras ilhas. Narrativas transmitidas pela tradição oral polinésia e documentos históricos corroboram esse fato. Os primeiros registros remetem aos escritos feitos por exploradores europeus no final da chamada “Era das Grandes Navegações”.
Em 1768, durante sua primeira expedição ao Pacífico, o capitão inglês James Cook testemunhou o surf de canoa no Taiti. Em seu diário de bordo, ele escreveu: “Não pude deixar de concluir que esse homem sentia o maior e mais supremo prazer, enquanto deslizava tão veloz e suavemente pelo mar”. Em 1779, na terceira expedição do capitão inglês, o tenente James King (a quem foi delegada a tarefa de prosseguir com as anotações do diário de bordo após a morte de Cook durante essa mesma viagem) fez um extenso relato sobre a interação do povo havaiano com o oceano. Impressionado com o que vira, King, através de seus escritos, enaltece a habilidade dos nativos sobre as ondas, seja através de canoas ou diferentes modelos de pranchas de madeira, indo e voltando à praia, impulsionados pela força do mar, de forma totalmente lúdica e destemida.
No século 19, quando mais da metade da população nativa do Havaí já havia sido dizimada por doenças trazidas pelos colonizadores, coube aos missionários protestantes a tarefa de pesquisa e registro da primeira gramática no idioma havaiano. Consta no dicionário desenvolvido por esses religiosos a palavra “He’e Nalu”, que significa “Wave Sliding” (deslizar na onda), atribuída ao ato de deslizar pelas ondas de forma recreativa. É aqui que a coisa fica interessante, pois relatos históricos apontam para o uso de diferentes equipamentos para a prática, como as paipo (atual bodyboard), alaia (atual shortboard), olo (de certa forma, atual longboard) e wa’a (canoa havaiana). Já o surf de peito, ou seja, praticado apenas com o corpo, era chamado de “he’e umauma” ou “kaha nalu”. Com o passar do tempo e a padronização do inglês como língua oficial do arquipélago, colonizadores e nativos passaram a se referir ao He’e Nalu como “banho de surf”.
Já deu para perceber que em essência, não deveria fazer muito sentido restringir uma compreensão de surf a um único equipamento. Mas é inegável que, tendo em vista a tecnologia e a matéria prima daquela época, surfar em pé sobre uma alaia ou uma olo era muito mais prático do que usar uma canoa, e desafiador do que correr uma espuma em linha reta deitado sobre uma paipo.
Possivelmente por essa razão, Duke Kahanamoku, o pai do surfe moderno, escolheu a prancha de madeira para popularizar globalmente o esporte legado por seus antepassados. No entanto, não há registros de Duke referindo-se ao surf como uma prática exclusiva em pranchas de madeira. Na verdade, ele se amarrava em fazer bodysurf, surfar de canoa e inventaria, nos anos 1930, o que viria a ser conhecido como stand up paddle.
Acontece que, a partir dos anos 1950, quando a revolução tecnológica da indústria estadunidense, impulsionada pela 2ª Guerra Mundial, possibilita a fabricação das pranchas de fiberglass, que ajudaram a popularizar o esporte na Califórnia, a televisão e o cinema tornavam-se as principais ferramentas de um fenômeno chamado pelo sociólogo Theodor Adorno como “cultura de massa”, através do qual uma “indústria do entretenimento” busca padronizar produtos culturais para criar e atender demandas do mercado, resultando em uma homogeneização de expressões artísticas.
Por essa razão, não é coincidência o fato de Hollywood ter produzido centenas de filmes e séries sobre “surf” com a mesma temática superficial e de fácil assimilação, a começar pelo fenômeno Gidget (1959). Surf, então, passou a ser associado à prancha e ao ato de deslizar ondas de pé. Veio a era das competições e, mais uma vez, a necessidade de se “aprimorar” o “produto”, para torná-lo mais atrativo. As pranchas diminuíram de tamanho e com elas o entendimento do que seria o esporte. O circuito mundial, dominado por australianos e californianos, reforça essa ideia desde os tempos de IPS. Hoje, sua versão atual, a WSL, elegeu a pranchinha como símbolo do surf.
No entanto, mesmo com toda força do mercado, nem todos preferem pegar onda com uma prancha 5’11”. Há quem se divirta mais usando um bodyboard, um longboard ou um SUP e muito se discute sobre o que é ou não é surf. Mas o fato é que, independentemente das dinâmicas mercadológicas, a essência do esporte criado pelos havaianos não pode ser mudada.