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m 1988 passei um sufoco na fronteira. Acabaram me dando menos de 48 horas para cruzar o país, sobre pena de confiscarem minha motocicleta caso eu não cumprisse o prazo. Foi uma passagem relâmpago, na qual percorri o território de ponta a ponta, mas vivenciei muito pouco. E não pude surfar. Ironicamente, dessa vez foi o país menos burocrático até agora, também o único a não cobrar nada. Nem seguro exigiram que eu fizesse. Pude finalmente dar uma experimentada no muito que o Equador tem a oferecer. Gostei tanto que já estou planejando uma volta. Com mais tempo.
Texto e fotos Adrian Kojin / Editor Especial da HARDCORE
Para evitar estradas interditadas por deslizamentos, além do posto fronteiriço que me deixou traumatizado 35 anos atrás (teve até tiroteio), passei da Colômbia ao Equador pela região amazônica desses dois países. No retorno ao Pacífico, subi a 4 mil metros de altitude, trafegando por cenários incríveis, como uma serra sinuosa repleta de cachoeiras, que iam se desvendando em meio à neblina. Depois de dormir nem sei bem onde, na beira da estrada e perto do céu, aproveitei para conferir o fascinante centro histórico de Quito, antes de despencar para Guayaquil e rumar direto para o litoral.
Montañita é a praia mais conhecida do Equador quando se fala de surfe. Uma combinação de vida noturna agitada e boas ondas atrai a atenção da maioria dos surfistas visitando o país. Mas foi justamente buscando um lugar mais calmo que optei por rumar em outra direção, para o berço histórico, ainda que um tanto esquecido, do surfe no Equador. A região genericamente conhecida por Playas.
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Com seu litoral recortado por point breaks para a direita, escolhi um deles para acampar bem em frente de um dos picos, El Faro. Montei meu barraco debaixo de um sol escaldante, tirei a bike elétrica do rack e fui explorar os arredores. Quanto potencial, mas que eu sabia que dificilmente poderia ser conferido em ação, pois a temporada de ondulações de sul estava mal começando, sem nada substancial previsto para a próxima semana.
Na segunda noite acampado, caiu uma chuva torrencial. Fiquei preocupado em não conseguir tirar minha van do terreno onde havia pedido autorização para estacionar. Assim que acordei, desfiz a estrutura improvisada e decidi dar mais uma checada em Puerto Engabao, um vilarejo de pescadores a uns 10 kms de distância, onde eu havia visto um movimento maior no mar. A estrada lamacenta e em obras não fez muito bem para minha van, que chegou lá com um barulho muito estranho na roda dianteira esquerda. Mas deixei para pensar nisso depois. Primeiro precisava surfar aquelas ondinhas perfeitas que vinham rodando desde atrás das pedras.
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Era um típico domingão de praia, com famílias inteiras, do netinho aos avós, curtindo tomar um sol na areia, experimentar a força das ondas no rasinho, comer nos restaurantes de frutos do mar, se lambuzar com o sorvete refrescante, tirar infinitas selfies. Diversão para todos, e para nós surfistas também. Aguardei a turminha local, uns 8 a 10 surfistas se revezando no pico, dar uma cansada e fui tentar pegar a minha. Bem nessa hora o line up deu uma esvaziada e fui surfando uma atrás da outra, com o sorriso só se alargando na minha cara.
A onda era bem formada, com força mesmo sem muito tamanho, permitindo um chuveirinho logo após o drop e oferecendo uma boa pista para manobras na sequência. Só saí do mar devido à entrada do maral. Hora de tentar consertar a van ali mesmo no estacionamento, debaixo de uma chuva fina que voltou a cair. Não consegui descobrir o que era. Achei melhor não me mover mais, pois se a van parasse na estrada seria complicado conseguir algum tipo de socorro no final de tarde do domingo.
Enlameado dos pés a cabeça, depois de deitar embaixo da van, desmontar as duas rodas dianteiras, testar eixo, etc etc, precisava entrar no mar para me lavar. O vento havia virado para terral e o mar tinha subido um pouco mais. Assim como o crowd. O que me levou a me posicionar mais pra fora, bem em frente às pedras. Veio uma com meu nome escrito e consegui pegar a maior da série e passar por todo mundo até quase a areia. Mas paguei caro logo depois. Um local já tinha ido parar nas pedras um pouco antes.
Nem isso serviu de alerta. Burrão, fui lá pra fora novamente e na próxima grandinha que entrou puxei o bico pois tive a sensação que ia dar direto na pedra. Uma menina local muito habilidosa, que estava ao meu lado e respeitou minha prioridade, deixou claro sua insatisfação com minha amarelada. Me sentindo desafiado, esqueci que eu devia ter três vezes a idade da maioria da molecada em volta. E muito menos agilidade que eles. Outra pra mim, fui, coloquei pra dentro de backside, não passei, fechei os olhos embaixo d’água, coloquei os braços à frente e fiquei esperando.
Sai todo ralado do choque com as pedras e cracas, mas com a prancha não aconteceu nada. Não podia desistir agora. Com os dois joelhos, canela, pulso e dedo indicador da mão esquerda sangrando, remei de volta ao outside sob olhares espantados e perguntas se eu estava bem. Procurei escolher melhor, peguei uma mais facinha e dei o dia por terminado. Lavei os machucados com água doce e passei pomada antibiótica.
Dormi ali mesmo no estacionamento de frente pro pico. A madrugada inteira foi de dilúvio, eu só escutando os pingos pesados batendo intermináveis na lataria. Antes do sol nascer já estava checando o mar, mas o que vi foram ondas um tanto mexidas e de cor barrenta. Todos os córregos que desaguavam na praia vertiam uma torrente de água grossa, suja de terra e vai saber mais o quê. Raladão como eu estava, achei que o risco de contaminação seria alto. E as ondas não estavam tudo isso pra valer a pena. Fui buscar um mecânico em Playas, onde a infra era maior.
A roda foi fazendo trec trec sem parar quase o caminho todo, mas quando entrei na cidade, parou o barulho. Vai entender. Mesmo sendo bem cedo, consegui um lugar para dar uma duchada na van. Nenhum mecânico iria botar a mão nela no estado que estava, e mesmo sem o barulho eu precisava fazer uma revisão para descobrir o problema. O diagnóstico foi pastilhas gastas, e não haviam iguais disponíveis na cidade. Recobriram as gastas.
Nesse processo, que durou um bom tempo e me levou a diferentes oficinas, batendo papo aqui e ali, com os mecânicos vendo as pranchas no teto da van, dois deles perguntaram se eu conhecia o Gringo “Andres”, lendário shaper de pranchas de madeira balsa radicado ali há mais de 50 anos. Eu não o conhecia pessoalmente, mas sabia muito bem quem era.
Quando resolvi ir para Playas considerei a possibilidade de procurá-lo para um registro no documentário sobre a viagem. A informação que eu tinha era que ele, já passado dos 70 anos de idade, estava aposentado e não gostava de dar entrevistas. Van pronta, a dica dada, fui seguindo as indicações buscando a casa do Gringo “Andres”. Não foi difícil achar. Faço o que agora? Bato palmas e digo que quero conhecer ele?
Jamais esquecerei a tarde que passei em companhia daquele figuraça, tomando doses bem servidas de um rum caseiro que ele mesmo prepara, misturado com sucos de frutas, e escutando histórias de suas aventuras desde quando havia decidido deixar a Califórnia e se mudar pro Equador, a princípio como voluntário do Peace Corps. De professor de carpintaria para órfãos em Quito, a mais renomado fabricante de pranchas de balsa do planeta instalado em Playas, repassamos sua vida entre muitas risadas, discussões filosóficas, irmandade instantânea. Perguntei se ele tinha fotos antigas, ele foi buscar. Que viagem!
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