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Pan-American Soul: Dilúvio no Deserto

Q

uando acontece de chover muito no deserto as consequências costumam ser trágicas. Estradas e pontes são levadas pelo fluxo torrencial de água passando por onde normalmente não escorre uma gota. Foi exatamente o cenário que tive que encarar na minha primeira tentativa de chegada a Lobitos, uma das mais famosas ondas no norte do Peru.

Texto e fotos Adrian Kojin / Editor Especial da HARDCORE

 

Ainda antes de dar início à viagem, eu havia marcado um encontro em Lobitos com um amigo. Só que os caminhos de terra que cortam a região costeira estavam intransitáveis. Tive que buscar abrigo em Talara, a vizinha cidade petroleira, onde descobri que minha incursão no barro pesado havia agravado um problema mecânico já acusado no Equador. 

A van teve suas rodas e eixos dianteiros desmontados no dia seguinte. Ficou claro que eu não poderia prosseguir sem trocar os rolamentos axiais de ambos os lados, sob risco de travar tudo e ficar parado na beira da estrada. O problema agora passava a ser onde encontrar as peças. Era sábado, na segunda-feira teria que correr atrás. Me recomendaram buscar os serviços de uma oficina com melhor estrutura, que provavelmente faria um pedido para que as peças fossem trazidas da capital, Lima. 

 

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Com o carro remontado, ao menos consegui, no dia seguinte, ir ao aeroporto recepcionar meu quase primo e surfista fissurado, Almerigo “Kiko” Bulgarini, e seus parceiros, os irmãos Henrry e Rico Petcov, que eu ainda não conhecia. A água que alagara o deserto já havia baixado um pouco e eles rumaram direto para Lobitos. Foram numa caminhonete 4X4 pilotada por um guia que conhecia bem os caminhos locais. Levaram minhas pranchas. Eu iria assim que possível, de bicicleta elétrica. 

Por pouco os três não haviam cancelado a trip, já que às vésperas do embarque em Florianópolis, de onde partiram, foram alertados pelo dono da El Hueco Villas, onde tinham reserva para hospedagem, que a situação estava feia em Lobitos. Na realidade não só em Lobitos, mas em todo o norte peruano, e se alastrando para o resto do país. Os efeitos do ciclone Yaku foram devastadores, com muita destruição, deixando no seu rastro vários mortos e milhares de desabrigados. 

Num fenômeno que lembrou a tragédia ocorrida recentemente no Litoral Norte paulista, foram registrados recordes históricos de precipitação, não vistos há 40 anos, desde o El Niño de 1983. Enquanto escrevo, o ciclone se encontra no sul do Peru, levando desespero também às populações ao redor de Lima, maior centro urbano do país. 

Em Punta Hermosa, no balneário que recebe levas de surfistas brasileiros, foi decretado estado de emergência, com a ex-campeã mundial peruana, Sofia Mulanovich, indo às redes sociais pedir ajuda para reconstruir a comunidade afetada severamente por um “huaico” de proporções nunca vistas. Huaico é como são denominados os grandes deslizamentos, carregados de pedras e lama, que escorrem por rios e valas em direção as partes mais baixas do relevo arrastando tudo à sua frente.

Após deixar minha van em Talara, numa oficina que se encarregou de obter as peças, montei na minha bike, decidido a chegar a Lobitos. O prazo de entrega das peças ficou em aberto, aguardando o reestabelecimento do trânsito pela Rodovia Panamericana. Não podendo fazer nada para resolver a situação de outra maneira, meu foco para os próximos dias voltava a ser o original, surfar as ondas de Lobitos e arredores na companhia do Kiko e dos irmãos Petcov. Um swell estava previsto para os próximos dias.

Optei por uma rota alternativa, já que a mais usada continuava fechada. Nos trechos mais críticos, onde a chuva cavou valas, o maquinário pesado da prefeitura local e da empresa petroleira já haviam dado um jeito. A lama seca rápido no deserto e com os pneus balão da minha bike facilitando, não tive grandes dificuldades em acessar Lobitos. Deu uma certa adrenalina, mas acabou transcorrendo sem grandes riscos. Ainda bem, com tanta coisa acontecendo só faltava eu ficar atolado ou perdido no meio do nada.

Chegando a Lobitos, tive um choque. O “pueblo” estava irreconhecível, havia crescido muito desde a última vez em que eu estivera ali, quase 14 anos antes, em abril de 2009. Mas além das inúmeras construções já finalizadas ou em andamento, o que mais me deixou intrigado foi que a área de areia onde antes os carros estacionavam em plena praia, de frente para o pico, estava tomada pelo mar, que formava ali uma baía, impedindo que a onda quebrasse como eu lembrava dela.

 

Não que eu esperasse encontrar as mesmas ondas daquele já longínquo abril. Isso seria quase impossível, já que na ocasião tive a sorte, por puro acaso, de testemunhar um dia histórico, com a presença de ninguém menos que Rob Machado e Clay Marzo surfando El Hueco, a seção mais de fora de Lobitos, com uma perfeição poucas vezes vista. O que não é uma avaliação minha, e sim dos próprios renomados surfistas peruanos que faziam parte da hoje lendária expedição, como Gabriel Villarán e Cristóbal de Col. Eu estava de férias com meu filho, mas acabei “roubando” uma baita matéria para a revista FLUIR, publicação que eu editava na época.

Na pousada, conversando com os locais, me explicaram que a temporada de Lobitos só tem começado a partir de julho, quando a areia recupera seu lugar na praia e a fábrica de tubos liga novamente. Achei estranho, pois pelo menos três das minhas passagens anteriores por Lobitos haviam sido entre março e abril, sempre com a praia repleta de areia e altas ondas. Minha suspeita é que o volume de construções na encosta e na própria praia possa ter contribuído para alterar esse fluxo de areia, fazendo com que o preenchimento da praia só ocorra mais tarde durante o ano.

Diante desse imprevisto, tivemos que partir para a busca de ondas alternativas. Piscinas, o pico mais óbvio pela proximidade, também precisava de mais areia e ainda assim apresentava um bom crowd desde cedo pela manhã. Resolvemos explorar lugares diferenciados indicados por nosso guia local, Diego. E foi exatamente essa busca que deu um sabor especial de aventura aos dias que passamos juntos, ziguezagueando pelas estradinhas do deserto. 

Logo na primeira tentativa, ao nos depararmos com um trecho do caminho que tomamos bloqueado pelos estragos causados pelo dilúvio de dias atrás, não nos intimidamos. Prosseguimos a pé, carregando em regime de revezamento o excessivo número de pranchas que haviam sido trazidas no rack do Suzuki 4X4. Após um bom trecho de caminhada no deserto, descemos por uma duna para a primeira praia a ser percorrida. Dali em diante foram mais duas longas pernadas que, por nossa estimativa, somaram 5 kms só de ida. Tudo isso para, no final da caminhada, nos decepcionarmos com as condições encontradas. 

Não desanimamos, motivados por uma vala que tínhamos visto na praia anterior, demos meia volta e fincamos o pé na areia novamente. Quando finalmente remamos pro outside, próximos a uma ponta de praia com várias pedras submersas, o vento já havia trocado de direção, de terral para um maral fraquinho, ao menos inicialmente. Assim mesmo todo mundo se divertiu nas boas ondas disponíveis, esquerdas e direitas com bastante força e bem formadas. Como reclamar? Ninguém em volta, só nós curtindo de maneira intensa a natureza intocada do lugar.

Durante o jantar analisávamos com Diego qual seria o destino da próxima manhã. E assim fomos visitando praticamente todos os picos da região, quase sempre surfando sozinhos. Nada realmente épico em termos de onda, mas sempre muito divertido. A camaradagem na água garantia que cada um pegasse sua cota, com todos vibrando com as ondas surfadas pelos amigos. Não faltava também aquela tradicional zoação mútua, provocando muitas risadas e mantendo o astral lá em cima, mesmo quando o calor apertava, a fome batia e os buracos na estrada sacudiam em excesso.

Quando, cinco meses antes, Kiko e eu começamos a planejar nosso encontro, pensamos em muitas coisas que poderiam acontecer inviabilizando o mesmo. Desde problemas de ordem política no Peru, até enroscos de agenda no trabalho do Kiko, dificuldades burocráticas na minha travessia do Panamá para a Colômbia, ou emergências mecânicas com a van. Inclusive todos esses cenários foram se concretizando, mas acabaram sendo resolvidos. Rolou até a deposição de um presidente da República, resultando em violentos protestos pelo país, e nos deixando em estado total de alerta. Mas o que realmente colocou quase tudo a perder foi uma situação que em nenhum momento sequer consideramos. 

De maneira nenhuma esperávamos por tamanha chuva no deserto. Assim mesmo, soubemos lidar com a mudança radical de cenário e nosso encontro foi um sucesso. Ainda temos mais alguns dias juntos, enquanto espero a chegada das peças para minha van. Amanhã está marcado para sairmos logo que o dia clarear, para mais uma investida em busca de ondas no deserto, que todo dia vai ficando um pouco mais seco. Aparentemente não vai chover tão cedo por aqui.

Acompanhe a rota de Pan-American Soul pelo @panamericansoul2022.

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* Nesta seção, o Editor Especial da HARDCORE, Adrian Kojin, traz com exclusividade os diários da sua road trip Pan-American Soul 2022, da
Califórnia até o Brasil. 

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