A série HARDCORE CONVIDA começa com Yago Dora, num encontro clássico da cena surf de São Paulo às vésperas de seu embarque para o início do Circuito Mundial 2019
Por Fernando Guimarães; fotos Alexandre Gennari
Final de março, a poucos dias do início do Circuito Mundial de 2019, e Yago Dora está sentado a uma mesinha numa loja de roupas na região central de São Paulo, capital. Já é noite. Em cima da mesa, uma pilha de revistas, outra de pôsteres — ambos estampados com fotos dele mesmo –, uma caneta, uma garrafa de água e outra de energético. À sua frente, uma fila que se estendia por toda a área da loja e invadia a calçada da Rua Augusta, com gente de todas as regiões de São Paulo.
Yago Dora é uma estrela de um esporte cada vez maior, e sabe disso. Autografava, sorria pra foto, trocava apertos de mão e abraços e atendia ao próximo. Depois de quase duas horas desta cena se repetindo, a fila enfim começou a diminuir e, num respiro, conseguimos trocar uma ideia sem frustrar a expectativa de alguém que havia pegado duas horas de trânsito caótico para poder conhecer seu ídolo de perto.
A loja-sede da Volcom bombava com música alta e um vaivém frenético de conhecidos e desconhecidos da cena surf paulistana, entrando para agarrar uma latinha gelada de cerveja Praya, saindo para acender um cigarro e assim por diante. A única pessoa que não tomava cerveja naquele noite, além das poucas crianças e adolescentes presentes, era o próprio Yago. Consciência de sua condição de atleta, da qual ele se orgulha.
Capa da nossa edição atual, reclassificado para a elite mundial com um desempenho sensacional em Pipeline e vindo de duas finais consecutivas em solo brasileiro, Yago tinha agenda cheia em São Paulo e não conseguiria vir à redação. O que, a princípio, contrariava a proposta da HARDCORE CONVIDA. No final, entre a música, a cerveja e as demais conversas, o ambiente acabou sendo perfeito para a ideia da série: muito mais que uma entrevista, uma troca real de ideias e impressões com alguns dos principais nomes do surfe brasileiro.
Quando o último pôster é assinado, Yago se levanta e começamos a conversar. Tenho que ligar o gravador e segurá-lo perto de seu rosto. Uma merda, pensei. Ninguém gosta disso. Yago, na real, não ligou a mínima.
O que achou do primeiro ano no CT?
Cara, apesar de ter passado por vários altos e baixos, acho que o resultado principal foi alcançado, que era me manter para o ano seguinte. Foi um ano irado. Era um ano de adaptação, de pegar experiência, tentar aprender em cada etapa, aprender com meus erros, tentar evoluir. Eu to bem ansioso pra começar esse ano, corrigir meus erros do ano passado, evoluir nas coisas que eu precisava, ir melhor em cada evento.
Na sua segunda etapa no CT no ano passado, Bells, você perdeu para o Conner Coffin no R2, mesmo depois de completar um aéreo girando na última onda, e reclamou bastante. Depois de um ano, você pode dizer que entendeu melhor como funciona o julgamento? Ou você acha que existem erros mesmo?
Existem erros. Sempre teve, sempre vai ter. O julgamento é subjetivo. E cada um tem seu gosto também. Às vezes o juiz vai gostar mais de um surf mais tradicional, mais básico, menos arriscado… Mas acho que por ser o primeiro ano, começo no circuito, os juízes ainda estão conhecendo o teu surf, ainda estão entendendo o que que eles vão julgar de ti. Ainda estão entendendo que surf eles querem que você faça. E o juiz também não é uma máquina, ele não julga todas as pessoas da mesma forma. Ele acaba criando uma expectativa de cada surfista. E isso acontece, não tem como controlar. O surf é um esporte que emociona muito, e o juiz também cai na emoção às vezes, acaba gostando de algumas coisas de cada surfista, sem um parâmetro igual para todos. Cada surfista é julgado de uma maneira. Você tem que corresponder ao seu próprio nível de surf, sempre superando a si mesmo.
Às vezes acaba saindo uma coisa que você não gosta, e aí precisa tentar melhorar, deixar um pouco mais bonito. Eu me preocupo bastante [com estilo]. Acho que um cara sem estilo… Não tem graça.
Isso te abala, quando você perde uma bateria tendo certeza que merecia ganhar? Como lidar com isso?
Claro que me abala. Na hora é muito triste, quando você sai da água você sente que não era pra ser aquele o resultado. Mas depois de um tempo tem que esfriar a cabeça e tentar entender por que aconteceu aquilo e tentar evoluir, Não deixar chance. Isso é o mais importante, não deixar nenhuma margem para o resultado ir para o outro lado.
No final do ano passado você emplacou uma sequência muito boa. Ganhou Maresias, fez quartas de final em Pipe grande e valendo a vaga no CT, fez a final em Noronha… Alguma coisa mudou com você? O que aconteceu?
Mudou sim. Acho que eu tinha muita pressão em cima de mim. A vitória em Maresias foi muito importante. Tive uma perna europeia horrível, e eram eventos que eu tinha uma expectativa bem alta, tanto pra Hossegor quanto pra Portugal. Acabei perdendo cedo nos dois e deixando pra Pipe a última esperança de me manter no circuito. Fui pra Maresias tentando aliviar a cabeça, fazer meu surf, e acho que me deu uma confiança boa. Consegui liberar o que tava pesando na minha consciência e aí fazer um resultado bom em Pipe depois.
E esse lance da mudança no formato… Ela foi votada entre os tops? O que você votou? Essas coisas nunca ficam muito claras para a imprensa e o público em geral.
Foi votada sim. Eles vieram com a ideia e ofereceram aos atletas. Sempre tem bastante comunicação entre a WSL e os atletas, sempre que eles tem alguma ideia nova eles tentam apresentar pra gente, e só aprovam essa ideia se a gente aprovar também. Os atletas apoiaram a decisão do novo formato. Eu acho interessante ir para a fase homem-a-homem e manter desse jeito até o final. Acho que vai ser legal.
Mudando de assunto, esses dias escrevi, meio sem pensar, que você era o goofy mais estiloso do circuito. Você se preocupa com isso? Você pensa no seu estilo enquanto está surfando?
Claro! Hoje em dia já ficou mais natural, porque eu formei meu surf pensando nisso, sempre dei muita atenção pra isso. E ainda assim até hoje, às vezes acaba saindo uma coisa que você não gosta, e aí precisa tentar melhorar, deixar um pouco mais bonito. Eu me preocupo bastante. Acho que um cara sem estilo… Não tem graça.
Depois do Pipe Masters, o Steve Shearer escreveu que você parecia uma mistura do Gerry Lopez com o Rob Machado.
Isso é bom [risos].
“Não uso droga, não uso nada, cuido da alimentação, treino fora da água, passo o máximo de tempo que eu consigo dentro da água. Desde o meu começo sempre fui um atleta”
Você já viu vídeos deles? Em Pipe, especialmente?
Assisti muito do Rob Machado em Pipe! Do Gerry Lopez não tanto porque não tem tanta coisa disponível, não tem tantos registros… Mas acho que assisti praticamente tudo que ele tinha de Pipe, e mais bastante coisa do Rob Machado de outros lugares. E com certeza eu me inspiro neles, no approach deles em Pipe, que é mais clássico, descer a onda no lugar certo, já cortando e ficando na profundidade certa pro tubo. Pipe é uma onda que apesar de ser muito difícil de pegar alguma eu me sinto muito bem. Eu gosto de surfar lá, desde minha primeira temporada no Hawaii sempre foi meu pico principal, onde eu mais foquei pra evoluir, e competir lá é incrível.
Imagino que ficar na Volcom House ajuda…
Ajuda. Acho que todo lugar que te deixa em um contato maior com o mar, olhando pro pico o dia inteiro… Quanto mais contato você tem com o mar, mais conectado você fica com o pico, vai aprendendo as manhas da onda, a se posicionar, esse tipo de coisa.
Falei do Rob Machado, mas quem eram os outros caras que te inspiravam no surf quando você começou? Aqueles caras que você olhava e falava “Po, quero surfar igual esse cara”.
Na época que eu comecei era a época de Andy Irons e Kelly. Eles eram os caras do momento. Quando eu comecei a evoluir no surf foi a época que veio Dane Reynolds, Jordy Smith, Clay Marzo, Craig Anderson, uma galera que eu sempre gostei muito de assistir. Acho que não teve um cara só… Se teve, acho que foi o Dane, apesar de eu ser goofy e ele ser regular, tentei sempre me inspirar no surf dele, trazer umas manobras dele pro meu surf.
Você falou de dois caras, Dane e Craig… O Dane largou competição ainda cedo, o Craig acho que nunca nem chegou perto. Muita gente fala que o surf está mudando, que o surf pode estar perdendo sua essência com a competição. O que é a essência do surf pra você? Estar na competição é algo que te distancia da essência?
Ah, acho que o surf está perdendo um pouco da sua essência core, do que é o surf mesmo. Está perdendo… O surf. Tá virando um esporte profissional, como futebol, futebol americano. É legal por um lado, porque cria oportunidades pra alguém que queria viver do surf ter uma condição de vida boa, sustentar uma família. Isso é uma oportunidade incrível. Se o surf conseguir continuar se expandindo mas mantiver o seu público core, quem é fã do surf de verdade, acho que isso é muito importante. Às vezes as pessoas deixam de prestar atenção nisso.
A competição te puxa a estar sempre tentando evoluir seu surf. No free-surf não tem muito pra onde expandir, pra onde crescer. Você acaba se mantendo naquela mesmice, acha que está bom e só quer viajar pegar onda boa e não se puxa pra evoluir, ir a um nível acima do que você está.
Você se considera um atleta?
Sim, com certeza. Não uso droga, não uso nada, cuido da alimentação, treino fora da água, passo o máximo de tempo que eu consigo dentro da água. Desde o meu começo sempre fui um atleta.
Olimpíadas passam pela sua cabeça? Mexe com você de algum jeito?
Ah, gostaria de um dia fazer parte das Olimpíadas, com certeza, mas ainda não consegui me visualizar nessas do ano que vem. Acho que tenho que me concentrar nas minhas metas principais. Me focar em ter um bom resultado no circuito, evoluir meu surf. Prefiro focar em como competir melhor e melhorar meu desempenho a cada etapa do que estar lá entre os dois melhores brasileiros. Meu foco é total no CT esse ano.
Desde quando você começou a aparecer mais no surf, você já teve um reconhecimento internacional que raramente os surfistas brasileiros têm, e o seu surf já demonstrava um potencial grande. E muita gente te identificava mais com o free surf. Você parecia o cara que tinha o potencial pra ser um cara do free-surf bem sucedido, com uma carreira animal. Mas você foi pra competição. O que te arrastou pra competição? O que te ganhou na competição?
Eu sempre gostei de competir. Claro, no começo é difícil. Eu comecei um pouco mais tarde, quando comecei a evoluir os outros surfistas da minha idade já competiam fazia quatro, cinco anos. E demora um tempo até você pegar a manha da competição, e quanto mais experiência você tiver, melhor. Demorou um tempo até eu descobrir essa mágica, esse truque de ganhar um campeonato. Tem gente que ainda não descobriu. É uma coisa que alguns atletas tem, que é um atleta vencedor de campeonato. Isso me faz muito feliz, saber que eu tenho potencial para chegar e vencer um evento, não chegar só até a semi, chegar até a final… Saber que eu posso chegar lá e vencer tem um certo apelo… É diferente você ser um cara que vai bem em vários campeonatos de ser alguém que é capaz de vencer. E eu gosto muito desse sentimento. A competição te puxa a estar sempre tentando evoluir seu surf. No free-surf não tem muito pra onde expandir, pra onde crescer. Você acaba se mantendo naquela mesmice, acha que está bom e só quer viajar pegar onda boa e não se puxa pra evoluir, ir a um nível acima do que você está.
Você lembra do primeiro campeonato que você ganhou?
Lembro… O primeiro que eu ganhei… O primeiro circuito! Foi o circuito paranaense amador, era o sub-12 na época, eu tinha onze anos. Acho que foi o segundo ou terceiro ano que eu tinha começado a surfar e eu ganhei o campeonato na praia de Leste, no Paraná.