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O inventor da Quadriquilha

 


As quadriquilhas não eram só um exemplo para Bocão – seu quiver era composto por elas no inverno havaiano de 1981. Foto: Gordinho 

 

Matias Lovro
(publicado originalmente na HC
 284, em maio de 2014). 

O começo da década de 1980 trouxe grandes inovações para design de pranchas de surf. Em 1981, o mundo abriu os olhos para os primeiros modelos de triquilha depois que o australiano Simon Anderson venceu, durante a semana da Páscoa, o tradicional Bells Beach Classic, logo após levar o caneco do Coca-Cola Surfabout, em Sydney, dois dos maiores campeonatos do circuito da época. Com a chegada da thruster, diversos outros modelos também entraram em fase de experimentação, até que as três quilhas se estabelecessem como o modelo “oficial” do surf, passando a ser usadas por dez em cada dez surfistas. Antes disso, porém, um brasileiro encontrou na quadriquilha a prancha ideal. O ex-surfista profissional carioca Ricardo Bocão afirma que em julho de 1981 – apenas alguns meses após a famosa vitória de Anderson em Bells – criou a primeira prancha de quatro quilhas do mundo. E fez do modelo seu titular.

Antes de 1981, o australiano Mark Richards mostrou que o surf da biquilha era mais radical do que da mono, vencendo quatro títulos mundiais seguidos com uma. O mundo seguiu. Enquanto os lineups estavam dominados por duplas de quilhas cortando as paredes, o carioca Valdir Vargas trouxe a primeira triquilha – um shape de Geoff McCoy – da Austrália, logo após Simon Anderson tocar o sino em Bells. “A três quilhas virou febre instantânea. Todo mundo correu para as salas de shapes para fazer triquilhas. A biquilha desapareceu. Não foi aos poucos. Três meses depois de Bells, 80%  dos surfistas usavam três quilhas”, explica Bocão. O jornalista Rosaldo Cavalcanti, então membro da equipe da Brazilian Dreams, era mais um dos que queriam cair na água com o novo modelo, supostamente revolucionário. Por isso, pediu o foguete de Vargas para que Bocão pudesse shapear uma réplica. Os dois  partiram para a Barra da Tijuca, onde ficavam as oficinas de prancha da época, parando para um surf no caminho, para que pudessem testar a triquilha nova.

“Não achei a prancha nada demais. Pelo contrário, achei ela ruim, difícil de surfar, mas nem falei para o Rosaldo, porque ele queria uma igual. Quando saí da água, antes de guardar tudo no carro e ir embora, coloquei a minha biquilha com as quilhas para cima, a triquilha do Rosaldo também, e me afastei. Fiquei olhando uma, olhando a outra, ligado em ver a curva de fundo e o posicionamento das quilhas para que, quando fosse para a sala de shape, tivesse mais informações. Uma hora, olhei para a biquilha e vi duas quilhas atrás da minha biquilha, no mesmo ângulo, na mesma direção, na mesma distância da borda”, conta Bocão, que, ao expor sua ideia a Rosaldo, encontrou resistência por parte do amigo, que queria sua triquilha, e não uma nova invenção. “Ele recebeu alguma ligação sei lá de onde, do além, e visualizou essa ideia”, conta Rosaldo. “Ele olhou para mim e eu já conhecia aquela cara. Falei: ‘Bocão, o que você vai inventar agora?’.”


O carioca aproveita o drive das quads para passar a seção em Jocko`s, no North Shore. Foto: Gordinho

 

O carioca shapeou a triquilha de Rosaldo em sua oficina, mas em seguida deu forma à sua nova ideia, colocando quatro quilhas na rabeta de sua próxima prancha. Durante os dois anos seguintes, Bocão formou um quíver inteiro de quadriquilhas, surfando com elas do Arpoador ao Hawaii. Segundo ele, ninguém sequer percebeu: “A resistência foi muito grande na época, por parte de brasileiros e estrangeiros. Todo mundo ficava zoando, falando que eu estava querendo aparecer. E ninguém usou. Nos dois anos, fui ao Hawaii três vezes, à África do Sul duas vezes, à Califórnia e, no Brasil, em dois festivais olímpicos. Só usei quatro quilhas em pranchas pequenas ou grandes. Ninguém estava vendo”. Segundo Cavalcanti, o surfista brasileiro estava com a cabeça alguns anos à frente de seus contemporâneos: “O fato é que as pessoas sacanearam muito o Bocão, falando que ele não tinha mais o que inventar. Um tempo depois, em 83 ou 84, a quatro quilhas virou a maior febre, todo mundo usava aqui no Brasil, inclusive eu”.

A invenção da quadriquilha nunca ficou associada ao nome de Bocão por uma série de fatores. Primeiramente, existe uma resistência natural à inovação no design de pranchas. A triquilha também era motivo de chacota até que seu inventor ganhou dois dos mais renomados eventos do mundo, um em seguida do outro, em cima de uma. “Quando o Simon Anderson inventou a três quilhas, também sacanearam, mas ele ganhou Bells, o Surfabout, depois Pipeline, então as pessoas viram que funcionava e quiseram saber do que se tratava”, opina Cavalcanti. Segundo ele, como Bocão nunca teve a exposição trazida por grandes vitórias no circuito internacional, seus modelos não passavam de experimentação para observadores.

No final de 1981, o carioca levou um quíver completo de quadriquilhas ao North Shore de Oahu, onde também foi recebido com piadas, como lembra ele: “Começou a chegar gente para ver, porque as pranchas eram coisas muito diferentes. Eu me lembro do Randy Rarick me perguntando: ‘Por que você não coloca duas quilhas no bico também?’ E eu achando que ele ia fazer um comentário pertinente”. Naquele ano, Bocão pensara em investir o dinheiro de sua viagem ao arquipélago em um anúncio em uma das publicações americanas, como forma de registrar sua invenção. Mas preferiu seguir para o Hawaii, onde toda a comunidade do esporte poderia ver sua criação.

 


Pranchas com quatro quilhas andam bem em tubos e ondas grandes. Shane Dorian fazendo proveito das vantagens. Foto: Bruno Lemos

 

Para o carioca, o mundo do surf estava com todas as atenções voltadas para a chegada da thruster, prancha mais versátil em qualquer tipo de mar, para adotar um modelo que talvez funcionasse melhor, mas apenas em determinados tipos de mar. “Não tinha caixa de quilha, então o cara em 1981, 1982 tinha que viajar com uma capa com três pranchas, o que era uma cota gigante e pesada. Se você precisa de pranchas para mares que variam entre 3 e 7 pés, que sejam triquilhas, pranchas que surfem bem em condições diferentes”, explica ele. “Caiu como uma luva para os caras do Circuito Mundial. E o que os caras do Circuito Mundial usam o mundo inteiro usa”, conclui.

Mesmo a triquilha demorou um pouco para ser completamente aceita. Apesar do sucesso e popularidade do modelo de Simon Anderson, durante seus primeiros anos, os prós da época ainda resistiam em colocar três quilhas em todos os seus foguetes. Na temporada havaiana, a maioria ainda insistia em usar apenas uma em mares maiores. Mas as quads já existiam. Nas mãos de Bocão, segundo ele, e possivelmente nas criações de outros artesãos. Segundo a Encyclopedia of Surfing, escrita pelo jornalista Matt Warshaw, o design de quatro quilhas foi popularizado pelo surfista profissional australiano Glen Winton, em 1982. “Há muita especulação sobre quem fez a primeira quadriquilha. Imagino que alguns designers estavam procurando maneiras de dar mais velocidade às biquilhas e melhorar seu desempenho. Glen Winton foi um dos primeiros surfistas que sei que fizeram uma quatro quilhas. Certamente houve outros”, afirma o próprio Simon Anderson, no blog de Rusty Preisendorfer, renomado shaper e fundador da marca Rusty.

Enquanto o criador da thruster não cita Ricardo Bocão como o criador das quads, tampouco fala de outro nome como o inventor definitivo. “Glen provavelmente não foi o primeiro a colocar quatro quilhas em uma prancha, mas é creditado pelo design”, completa no texto. Segundo ele, o também australiano Bruce McKee fez sua primeira quad no final de 1981 – meses depois de Bocão –, aperfeiçoando seu modelo, o “Mission Quattro”, até hoje.

 


Careca responsável pela grande aceitação das quadriquilhas. Foto: Kirstin

 

A mais tardia popularização das quads só pôde acontecer uma vez que a poeira baixou e a triquilha ficou estabelecida como modelo definitivo no surf do Circuito Mundial, deixando espaço para que novas experimentações fossem vistas e reconhecidas por profissionais, shapers e pela mídia. A partir da metade da década de 1980, quads já puderam ser vistas em fotos e anúncios de publicações estrangeiras. A capa da revista Surfer de março de 1984, por exemplo, mostra o havaiano Larry Bertlemann voando acima do lip, quatro quilhas na rabeta de sua prancha. A partir dessa época, o mundo do surf passou a descobrir as vantagens que as quads traziam em determinadas situações. “Por que a biquilha anda bem pra caramba mas é solta demais? Primeiro pelo espaço no meio, não tem uma quilha pivô atrapalhando e criando resistência, mas ela é solta demais. A quadriquilha é solta como a duas quilhas, por causa do espaço entre elas, só que, com o segundo par de quilhas na borda, quando se quebra a direção, duas saem, mas outras duas ficam dentro d’água”, explica Bocão.

Apesar disso, a popularidade das quads não estourou como a de sua irmã de três quilhas. Alguns surfistas variavam seus modelos, mas apenas quando uma figura com grande exposição na mídia passou a usar quadriquilhas em seu quíver, é que o modelo foi aceito pela maioria dos surfistas como instrumento de alta performance. Foi o que Kelly Slater fez durante a última década, vencendo campeonatos sobre quatro quilhas e provando ao mundo que, nas condições certas, uma variação de prancha pode fazer grande diferença.

Hoje, a maior parte dos atletas do Circuito Mundial tem pelo menos alguma quadriquilha em seu quíver. Para o surfista americano Pat Maus, a palavra-chave é velocidade: “Pergunte a qualquer pessoa que já experimentou uma quad e, em nove a cada dez vezes, a primeira coisa que mencionará será sua rapidez. Com uma quad, na hora em que você acerta o trilho, seja de front ou backside, já está com duas quilhas agarrando a parede. Isso te deixa fazer drops mais atrasados e críticos, além de ficar muito mais estável dentro de tubos”. Além dos cilindros – tipo de onda para a qual a maioria dos surfistas do Tour tira suas quatro quilhas da capa –, esse modelo de prancha encontrou um nicho popular no surf de ondas grandes.

Big riders como Danilo Couto e Greg Long podem ser vistos dropando bombas, na maior parte das vezes, sobre quatro quilhas. “Nas décadas de 1970 e 1980, a gente tinha um problema ao surfar ondas grandes em Waimea. Quando a onda passava de 20 pés, com as guns monoquilhas da época, você não tinha velocidade para descer e conseguir escapar do lip caindo. Quando você começava a cavar, a onda já vinha em cima. Até 20 pés ia, mas, passando disso, era um grande problema”, lembra Bocão. “Tanto é que começaram a fazer prancha de 11 pés, o Owl Chapman apareceu com uma de 12 pés. Quanto maiores, mais lentas as guns ficavam. Quando começaram a usar quatro quilhas em tow-in, falaram: ‘Caralho, a prancha é mais rápida!’ É claro, o drag é menor”, continua.

 


Greg Long e outros big riders adotaram as quads no quiver. Foto: Murray/A-Frame

 

Atualmente não existe um consenso mundial sobre quem foi, de fato, o inventor das quadriquilhas. Segundo os relatos colhidos pela hardcore e a cronologia do que se sabe sobre a criação do modelo pelo mundo, tudo indica que Bocão realmente foi o primeiro a decidir adotar o shape e surfá-lo regularmente. Mas, nas décadas anteriores, desde a revolução das pranchinhas nos anos 1960, muitos modelos e configurações foram testados. “Lembro vagamente do Bocão com suas quatro quilhas, mas não posso ter certeza que ele foi realmente o primeiro”, afirma o havaiano Randy Rarick. “Glen Winton era muito interessado em quads, mas não sei exatamente quando pode ter sido depois de Ricardo ter feito a sua. Eu lembro que cheguei a shapear uma quad durante os anos 1970.” Em casos isolados, é possível que quadriquilhas tenham sido produzidas antes de Bocão. “Sei que nos anos 1970 os caras fizeram vários experimentos”, diz a principal testemunha da invenção de Bocão, Rosaldo Cavalcanti. “O curioso é que ninguém reconhece o que o Bocão fez. Se ele fosse um havaiano, californiano ou australiano, toda matéria hoje em dia provavelmente diria que foi ele que inventou”, opina o carioca.

O que sabemos é que o começo da década de 1980, quando Simon Anderson introduziu a thruster, era um período de grande inovação tecnológica no surf. Shapers ao redor do mundo tentavam novas “maluquices”, sem saber se, 20 anos mais tarde, seriam considerados inovadoras, ou se ninguém nem sequer lembraria delas. É impossível afirmar com absoluta certeza se Bocão foi ou não o criador do modelo, mas é inegável que o carioca esteve na vanguarda do shape de pranchas de surf e visualizou, sem nunca antes ter visto uma quad, um modelo que hoje é usado por grande parte dos praticantes do esporte. Mesmo que não tenha sido, de fato, o inventor da quadriquilha como a conhecemos hoje, ele foi, de qualquer forma, o primeiro surfista a viajar o mundo competindo exclusivamente com elas – e não tratando-as como apenas mais um experimento. HC

Clique aqui para ver a matéria Parabéns Ricardo Bocão, publicada no site HC em 17 de outubro de 2014, dia em que o legend comemorou 60 anos.

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