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Na mira do Ocidente

Por Rafael Thomé

Como a entrada de um swell, a imolação de Mohamed Bouazizi, tunisiano que ateou fogo no próprio corpo para chamar atenção à miséria do país, gerou ondas de protestos e revoltas no Oriente Médio e no Norte da África. Popularizado como Primavera Árabe, este movimento surgiu em dezembro de 2010 e se espalhou rapidamente por países vizinhos, como Egito, Líbia, Iêmen, Síria, Omã, Palestina, Marrocos, entre outros.

A Primavera Árabe tem como raiz a miséria e a fome. O Egito, por exemplo, importa cerca de 40% do cereal que consome, ou seja, quase metade da comida que alimenta a nação. “São países extremamente vulneráveis às oscilações de preço: quando a comida fica muito cara, a capacidade de compra cai e a população passa fome”, explica o professor da PUC-SP, José Arbex Jr., jornalista que cobriu a Queda do Muro de Berlim (1989) e a Primavera de Pequim (1989) para o jornal Folha de S. Paulo. “Desde 2008 até o momento, os preços dos alimentos têm aumentado vertiginosamente”, completa.

Nesses países árabes, a dificuldade não se limita apenas à comida, mas estende-se a outros artigos básicos, que vão desde água potável até combustível. Parafina? Sem chance, melhor não esquecer a sua! “Tudo é difícil por lá. Não há muitos postos de gasolina ou água limpa, então tivemos que levar muita coisa na bagagem”, conta Cheyne Cottrell, americano que viajou ao Iêmen em busca de ondas.

Quem também embarcou nessa verdadeira aventura de desbravamento foi o surfista profissional americano Jesse Hines, que ficou encantado com a ilha de Socotra: “A costa iemenita é linda. A água é verde- -esmeralda e contrasta com o marrom das íngremes montanhas da ilha. Lá as ondas são muito consistentes, com boas esquerdas e beachbreaks bem ocos”.

A Rainha de Sabá

Cottrell e Hines foram para o Iêmen em 2006, quando os EUA mantinham boa relação com o então presidente Ali Abdullah Saleh, que entregou o cargo após a onda de protestos que dominou o país. “Ir para lá é como voltar no tempo. Me senti como se estivesse em uma parábola bíblica, onde Jesus viria e faria um milagre”, diz Cottrell, que acrescenta: “É muito louco, em alguns lugares, as pessoas ainda vivem em construções que têm 3 mil anos de idade.”

O caminho até as praias foi tortuoso e árduo, porém, a disposição e a hospitalidade dos locais amenizou as dificuldades que encontraram. “Caminhamos por uma montanha à procura de ondas, e quando chegamos à costa, um local usou madeira que veio do mar para montar uma cabana. Depois, ele cozinhou cabra e peixe para nós”, relata Jesse Hines, que ficou surpreso ao saber que o nativo não tinha ideia do que eram aquelas tábuas brancas.

“O pescador pensava que as pranchas eram pequenos barcos de pesca e não conseguiu entender muito o que eram, até que os caras foram surfar”, conta DJ Struntz, fotógrafo que acompanhou a trip. “Fomos presenteados com uma hospitalidade incrível. Eles dividiram conosco o pouco que tinham, como se fôssemos da família, e fizeram desta viagem a mais inesquecível da minha vida”, completa.

Apesar das declarações de Struntz, no Ocidente é comum pensar que o Iêmen é um país extremamente fechado e hostil, lugar onde não se deveria arriscar um passeio. Nem sempre é assim, porém, lá se vive em uma sociedade tribal e, em muitas áreas do deserto do leste , o visitante precisa estar acompanhado por guardas tribais armados e ter permissão das tribos locais para viajar pela área.

Stuart Butler, fotógrafo britânico, viaja ao Iêmen há 20 anos e relata que a experiência pode realmente ser “bastante surreal”: “Os jipes que usamos lá estão cheios de beduínos armados e bem-treinados. Às vezes, em quatro pessoas, levamos cinco ou seis Kalashnikovs (AK-47), algumas pistolas e até mesmo granadas de mão.”

Mesmo na companhia de um guia, a viagem pode apresentar algumas surpresas. “Em Socotra, ficamos numa pequena vila. Nosso guia disse para falarmos que éramos franceses, pois essa tribo, em particular, odeia americanos”, conta Jesse Hines. “Na manhã seguinte, eles começaram a desconfiar que éramos dos EUA e tivemos que sair imediatamente. Na estrada, por acaso, encontramos as melhores ondas da viagem”, comenta o americano.

A costa do Iêmen é feita de pequenas enseadas, onde recifes e beachbreaks se misturam. As poucas ondas que foram descobertas no país proporcionam uma boa queda, inclusive pela completa ausência do crowd. Mesmo já tendo sido explorado por alguns surfistas, o Iêmen ainda reserva ondas desconhecidas.

O lugar é um mistério para boa parte do mundo desde os tempos antigos e remonta a origem do monoteísmo difundido por Abraão, “pai” do judaísmo, cristianismo e islamismo. No Alcorão, principal livro islâmico, o atual Iêmen se localiza onde seria o antigo Reino de Sabá, cuja soberana, Bilqis, se impressionou com a sabedoria de Abraão e deixou de venerar o Sol para aceitar o monoteísmo proposto pelo profeta.

Até hoje, a história rende homenagens. “A melhor onda de lá é uma laje que descobrimos e demos o nome de Shebas Wedge (Laje de Sabá). A forma como o swell atinge o penhasco amplifica sua potência, o que significa que uma ondulação de 2 pés irá gerar ondas de 4 a 5 pés”, diz Butler. “Nessa praia, o vento é canalizado pelo penhasco, tornando-se um terral. É uma onda de muita qualidade”, acrescenta.

Viajar para um local como o Iêmen é uma experiência única e que pode ser mais simples do que aparenta. Apesar da viagem com beduínos armados, o fotógrafo britânico diz que “não é tão perigoso quanto parece. As pessoas não poderiam ser mais gentis e acolhedoras, em nenhum momento me senti ameaçado”.

Os surfistas Cottrell e Hines também foram bem-recebidos e aproveitaram para difundir o esporte por aquelas bandas. “A maioria estava feliz por conhecer americanos, até porque não são muitos os que vão para lá”, diz Jesse. Segundo Cheyne, “todos são muito amigáveis. Até ensinamos três crianças a pegar onda. Foram os únicos surfistas que encontramos na viagem”.

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