por Steven Allain | publicado na HARDCORE #316, edição de abril (mais aqui).
Neste inverno, no hemisfério norte, Yuri Soledade, 40, dropou uma das maiores ondas já registradas em Jaws. Sua façanha não deveria ser surpresa, afinal, o baiano é pioneiro no pico, ao lado de Danilo Couto e Márcio Freire. Mas pouca gente sabe da odisseia vivida por ele antes de encontrar forças – e coragem – para estar no lugar certo, na hora certa, no swell da temporada. Todo o esforço não foi em vão: no dia 23/04, Yuri Soledade escreveu mais um capítulo na história do big surf mundial com a conquista do prêmio de Maior Onda pelo WSL Big Wave Awards, com uma bomba em Pe’ahi avaliada em 73 pés de altura (leia aqui) – que inclusive estampa a capa da edição de abril. Nos meses que precederam o El Niño, ele teve um ano cheio de lesões. Em abril de 2015, na Califórnia, quebrou a perna em dois lugares. passou três semanas internado e quatro meses sem surfar. Em dezembro, participou do campeonato de Jaws. Na primeira bateria, tomou uma vaca sinistra e destruiu os ligamentos do ombro (em seguida ainda dropou duas ondas). Um mês depois, longe de estar 100%, outra vaca em Jaws lhe rendeu duas costelas quebradas – e várias noites em branco por causa da dor. Yuri fala sobre o inverno histórico, o futuro, a evolução e as politicagens do surf de ondas grandes e a expectativa de vencer o XXL [vale lembrar, na época em que a edição foi fechada, final de março, ainda não haviam saído os vencedores do WSL Big Wave Awards].
Há quanto tempo vive em Maui? Sua família é daí?
Moro em Maui há 22 anos. Tenho três filhos e minha esposa, Maria, é brasileira.
Fora o surf, você trabalha com o quê atualmente?
Tenho três restaurantes aqui na ilha de Maui. O Paia Fish Market está em processo de expansão, tenho dois funcionando e vou abrir o terceiro dentro de um mês. E tenho um sushi, que é outra empresa, separada, mas que a gente abriu, arrebentou e hoje é considerado um dos melhores restaurantes de Maui. Então é isso, trabalho no ramo de comida e, graças a Deus, as coisas andaram super bem e o negócio está bombando.
Você construiu sua própria casa, não é?
Eu tenho um tio que já mora aqui há um tempão e, provavelmente, foi a razão pela qual eu vim parar aqui em Maui. Ele morava no North Shore e era até uma figura bastante conhecida no meio do surf, o nome dele é Paulinho Magulô. Então ele se mudou para Maui e eu, moleque ainda, morando na Bahia, sempre quis visitá-lo. Ele aparecia nas revistas, sempre pegava ondas grandes, naquela época dos Brazilian Nuts e tal. Aí eu venci um campeonato no Brasil, ganhei uma passagem e vim para o Hawaii. Isso foi no inverno de 1994 para 1995 e minha ideia era ficar em Oahu. Mas, no final da história, eu vim para cá porque ele estava aqui. Ele sempre trabalhou com construção. Quando finalmente eu pude comprar a minha casa – um terreno com uma construção pequenininha atrás, que era só um estúdio – a gente já tinha, claro, aquela ideia de construir algo maior. E aí eu, meu tio Paulinho e outro tio que se mudou para cá e era engenheiro no Brasil construímos a casa inteira, desde a fundação até o final. A casa é linda, animal.
O documentário Mad Dogs (que conta a trajetória de Danilo Couto, Márcio Freire e Yuri Soledade) foi lançado no ano passado. Como foi ver sua história contada na telinha?
Pô, foi super legal e emocionante, porque sempre existiu a ideia de fazer esse documentário e a gente nunca conseguiu tirar do papel. A vontade já vinha de três, quatro anos e muitas pessoas se interessaram, várias produtoras, mas ninguém nunca deu sequência até que a Primitivo, do Bebeto Studart, abraçou a ideia. Ele veio para Maui e fez tudo em duas semanas. E a gente não participou ativamente do projeto, da edição. Tanto que não vimos nada até ele ser lançado. Na verdade, uma semana antes do lançamento ele deixou a gente assistir e mesmo assim foi muito rápido. É natural você ficar apreensivo e querer saber como uma pessoa vai contar a sua história. Até por que, pelo nosso estilo de nunca ter fotógrafo junto das sessões, nunca ter filmmaker acompanhando, teve muita coisa que não foi registrada. Então eu me perguntava como seria contada a história se, especialmente nas nossas primeiras investidas em Jaws na remada, não havia nenhum registro fotográfico. Mas o pessoal da Primitivo fez um ótimo trabalho de contar partes da nossa história pela visão da galera, com depoimentos dos locais de Maui. Uma galera da nova geração, como Albee Layer e Matt Meola, que são caras com quem temos um relacionamento legal, conhecemos, mas na verdade não são assim tão próximos. Os caras foram lá e falaram “Meu irmão, esses caras são os caras”, e isso foi muito gratificante. Poder sentir todo o carinho e respeito que a galera tem pela gente, aqui, foi algo muito especial.
“Enquanto, em uma temporada normal, pegamos Jaws uma vez por mês, às vezes até menos que isso – esse ano quebrou acima de 20 pés mais de 30 vezes.”
Esse inverno foi o melhor de todos os tempos? Como uma temporada dessas contribui na evolução do surf de ondas grandes?
Desde que eu estou aqui com certeza foi o melhor. Em janeiro foi impressionante a quantidade de ondulações que rolaram acima de 20 pés. Jaws quebrou todas as semanas, por dois ou três dias. Enquanto, em uma temporada normal, a gente pega Jaws uma vez por mês, às vezes até menos que isso – esse ano quebrou acima de 20 pés mais de 30 vezes. O surf de ondas grandes, geralmente, evolui a passos pequenos. É um processo demorado, como se você fosse aprender a surfar, pois você pega um dia aqui e talvez o próximo só aconteça dois meses depois. Aí você passa seis meses sem surfar ondas grandes no verão. Em um ano mágico como esse, todo mundo pôde usufruir das inúmeras sessões que rolaram e testar pranchas, equipamentos. A gente conseguiu surfar na remada, no tow in e a galera realmente teve a oportunidade de evoluir e puxar o limite. E foi o que todo mundo viu. Acho que a gente evoluiu nessa temporada o mesmo que teria evoluído em dez anos comuns. Essa temporada de El Niño vai ser um marco para as próximas gerações. Acho que daqui a 10, 15 ou 20 anos, neguinho vai olhar para trás e falar: “Pô, aquela temporada foi um momento em que o surf mudou, que as pranchas e os equipamentos evoluíram, como nunca tinha acontecido antes”. Cresceu o número de surfistas em Jaws, o número de sessões surfadas. Absolutamente tudo vai expandir a partir dessa temporada.
No dia do Eddie Aikau, você dropou uma das maiores bombas já vistas em Jaws. Como foi?
Foi no “Brock Swell”. Geralmente, quando aparece uma bomba no mapa, a ondulação parece gigante, mas perde força e quando bate na costa está sempre menor do que a previsão. Nesse swell foi o contrário. Apareceu no mapa como uma bomba normal. Mas aí a parada começou a ganhar força e chegou na costa com boias jamais vistas no Hawaii. Então todo mundo se mobilizou, focou em Waimea e no Eddie Aikau – o que deixou Peahi (Jaws) praticamente vazio, sem nenhum dos melhores surfistas, e a gente ficou na dúvida do que ia acontecer. Eu mesmo, na véspera, estava sem parceiro. Eu falava “meu irmão, o que é que eu vou fazer?”. Também não sabia se eu ia remar, se ia ser tow, o que ia fazer. Aí fechamos um barco, o Marcinho (Freire) estava na trip e o fotógrafo Fred Pompermayer, que se hospedava na minha casa, foi junto. Acabei fazendo parceria com o Chuck Patterson, que é um cara aqui de Maui. Fechamos um barco de apoio, mais os jets. Meu filho Kaipo, hoje em dia, é quem faz minha segurança na água, então toda vez que eu saio, ele sai com a gente. Levei minhas pranchas de remada e de tow-in. Quando chegamos lá, não tinha ninguém ainda no canal. Aí os irmãos Porcella entraram e começaram a fazer tow. Não tinha ninguém remando. A parada estava gigante. Aí pronto, acabou que foi a minha vez. Quando a série surgiu, o Chuck perguntou: “Quer ir nessa?”. Aí eu já pensei: “Não quero ir na primeira, não. Vamos pra segunda”. Ela veio e ele falou: “É essa, é essa!”, que já era uma bomba. E aí eu olhei pra trás e vi que o horizonte estava todo preto, por isso decidimos ir na terceira. Pouco antes de soltar a corda deu para ver que aquela era uma onda totalmente diferente das outras. Era gigantesca e levantou de ponta a ponta no lineup, algo que eu nunca tinha visto. Quando comecei a descer e pegar velocidade, olhei para aquela parede gigante e pensei que a única forma de eu fazer essa onda seria indo lá em cima, ganhando muita velocidade e passando a sessão. E foi o que eu fiz. Cavei no meio dela, nem cheguei na base, já joguei lá em cima, um pouco antes do West Bowl, e aí fiz outro drop, desci de novo. Foi um segundo drop e naquele momento peguei tanta velocidade, a prancha estava indo tão rápido, que quase caí pra trás. Consegui fazer a sessão e passar o West Bowl – finalizei no canal. Saí ileso e todo mundo começou a vibrar. A galera falou: “Meu irmão, você não está entendendo. Você acabou de pegar a maior onda já surfada na história de Jaws”. Foi a onda da minha vida. Quando saí do mar já estava na mídia, em todo lugar, Instagram, Twitter, Facebook. Já tinha um monte de mensagens no meu telefone (risos). Graças a Deus eu não caí, não morri e estou aqui, são e salvo.
Você acredita que leva o XXL?
Sinceramente, a gente sabe que é difícil. São muitas coisas em jogo, principalmente em uma temporada como essa. Sei o que aconteceu com o Danilo Couto dois anos atrás, quando pegou uma bomba para a esquerda que, na minha opinião, era, no mínimo, finalista. Mas neguinho nem botou a onda entre as finalistas. Sei que nos últimos dois anos, até com o que está acontecendo no cenário mundial, os brasileiros sendo referência, a coisa fica mais globalizada, possivelmente um pouco mais justa. Para mim, só de fazer a final já é um grande prêmio, principalmente em uma temporada como essa. Tem muita gente falando que a minha foi a maior onda da temporada. Mas eu, pessoalmente, não me botaria como Ride of The Year, talvez Biggest Wave, como foi. A onda do ano tem que ser na remada, é o que eu dou mais valor.
Você foi um dos precursores do big surf na remada, especialmente em Jaws. Como vê a evolução atual? Qual a próxima barreira a ser quebrada?
Acho que a barreira foi quebrada esse ano. O tamanho das ondas e a performance da galera foi algo nunca antes visto. Acho que a partir de um certo tamanho e uma certa velocidade, realmente, para uma prancha de remada fica difícil. A velocidade é muito grande e o espaço a percorrer é amplo. O que precisa evoluir mais são os equipamentos e as pranchas. Tem alguns shapers que focam nisso, mas, de repente, não trocam ideias entre si e a coisa não anda tão rápido. Eu acho que, se houvesse uma união, todo mundo trabalhasse em prol dessa evolução, a coisa ficaria muito mais fácil e andaria mais rápido. Esse ano a gente viu, neguinho se tacava lá de cima, mas ia reto, não passava a onda e tomava cada vaca animal. Muita gente se machucou. Foi um ano no qual todo swell, de cinco a dez surfistas se machucavam por sessão. Então eu acho que, com as pranchas e com a evolução do equipamento, a gente vai diminuir um pouco isso e começar a ver realmente um show de surf nessas condições. O meu objetivo, desde que comecei a surfar ondas grandes, é surfá-las como ondas pequenas. Então esquece que a onda é gigante e vai para a performance, entubar, rasgar. Acredito que esse é o futuro e o equipamento vai fazer a coisa acontecer.
“Meu irmão, não botar um cara como o Danilo no evento de Jaws (no Big Wave World Tour) foi uma sacanagem, um desrespeito, uma parada que ficou entalada.”
Uma significativa parcela dos big riders discorda do critério de escolha dos convidados para os eventos de onda grande da WSL. Uma das reclamações é que caras como Danilo e Márcio não são convidados, enquanto surfistas sem currículo em ondas grandes são. É mesmo uma panelinha da turma do Peter Mel (diretor de prova do Big Wave Tour)? O que poderia e deveria melhorar no Tour de ondas grandes?
Nesses eventos cada pico deveria ter seu critério. Não só discordo do número de atletas que correm o evento – dez do ranking do ano passado, mais seis locais e o resto é um convidado disso, convidado daquilo –, mas também acredito que o principal erro está no critério de escolha. O Peter Mel não está sempre por aqui, não vê quantas sessões e quanta energia o Marcio, o Danilo, ou até eu dedicamos à essa onda. Ele não sabe quantas vezes a gente quase se matou aqui. Então ele não usou esse critério. Sei que não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo, mas ele poderia, pelo menos, se informar e ver realmente quem é que merece. E analisar de diferentes formas. Eu sei que tem uma galera nova, que está arrebentando, chegando com tudo e que os moleques serão o futuro. Mas não podemos esquecer do presente. Meu irmão, não botar um cara como o Danilo no evento de Jaws foi uma sacanagem, um desrespeito, uma parada que ficou entalada. Tanto que, para mim, que entrei esse ano de alternate, não estava nem amarradão em correr o campeonato. Porque caras como o Marcinho e, principalmente, o Danilo, que deram a vida para esse pico e deixaram tudo de lado pra viver o big surf, é que mereciam estar no evento. Eu entrei no campeonato, estava animado porque eu tinha conseguido entrar, porque a galera me deu essa chance e tal. Mas acho mesmo que foi um desrespeito. Tem que dar a chance para a galera que botou a vida ali – e os caras não deram importância a isso.
O que vai fazer se levar a bolada do XXL?
Eu quero aproveitar o momento, porque para mim foi um ano muito difícil, com muitas lesões e dúvidas. Aproveitar com os amigos mesmo, porque no fundo, meu irmão, isso tudo é passageiro. Todo mundo tem o seu momento. Eu acho que todos vão pegar a onda da sua vida. Graças a Deus eu consegui pegar a minha esse ano e foi uma onda de destaque. Mas eu sei que todo dia uma pessoa está pegando a onda da vida. E a minha foi essa. Se tiver esse retorno financeiro, justamente depois de eu ter investido tanto no surf e em tratar minhas lesões, quando poderia ter investido no meu negócio e na minha família, seria muito bem vindo. Seria legal ter esse reconhecimento e retorno financeiro e poder também curtir um pouco, passar uns momentos felizes com a galera, os amigos que são de infância. Isso que é o mais legal da vida. HC