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Sem igual – Memórias de uma época de ouro na Fluir

* Crédito da foto de abertura: Shields / A-Frame


Por Steven Allain
[Editor Internacional Revista HARDCORE]

Qualquer surfista brasileiro, acredito eu, lembra da primeira Fluir que comprou. A primeira vez que folheei um exemplar foi há mais de 25 anos. Lembro-me vagamente da capa – o que me marcou foi uma matéria com o “novo” campeão brasileiro, Picuruta Salazar.

Eu começava no surf e a revista era minha inspiração. Os surfistas, as ondas, as viagens – tudo aquilo era um sonho. Um sonho que dava objetivo à vida de um garoto que pegava suas primeiras ondas. Uma vez que escolhi ser surfista e vi os horizontes do surf nas páginas da revista, estava decidido: um dia faria aquelas viagens, àqueles picos, para surfar aquelas ondas. Esse objetivo traçado (e, anos depois, a duras penas, felizmente conquistado) acabou desenhando todo meu futuro. Folheando minha primeira Fluir, não imaginava que aquelas páginas marcariam o começo de uma relação com o surf que mudaria minha vida para sempre – e ditaria as mais importantes decisões. Tenho certeza que, para a maioria dos surfistas brasileiros, em um nível ou outro, isso também é verdade.

A Fluir foi umas das revistas especializadas com maior tempo de circulação em todo o mundo: durou 33 anos. Ela teve fases marcantes – e outras nem tanto – sob diferentes editores. Quando olho para trás, vejo a Fluir como, perdoem o clichê, uma metamorfose ambulante. Ao leitor mais astuto, é obvia a influência dos diferentes “capitães” na linha editorial. E assim, ao longo de anos e décadas, a revista mudou e se transformou – por isso é impossível falar da Fluir como uma coisa só, uma publicação homogenea que sempre teve a mesma pegada.

Pessoalmente, posso falar da época em que estive lá. Em 2004, a Fluir deixou de ser uma referência e passou a ser uma escola para mim. Lembro-me como se fosse ontem: cheguei nervoso na redação para uma conversa com o diretor de redação, Adrian Kojin. Não esqueço que o editor-chefe, Alex Guaraná – que mais tarde se tornaria meu maior mentor – praticamente me ignorou quando apareci na Vila Olímpia para pedir emprego. Eu tinha 26 anos, pouca experiência editorial, mas uma penca de viagens internacionais na bagagem. E foram elas – as surftrips – que me garantiram o trampo. Quando Kojin me disse, ao me contratar, que queria que eu passasse o maior tempo possível trabalhando “na praia”, eu sabia que tinha arrumado o emprego dos sonhos. No final, não passei tanto tempo assim na praia – Kojin sempre soube vender seu peixe muito bem. Mas não há dúvidas de que nos 5 anos seguintes tive um trabalho de dar inveja a qualquer ser humano que goste de surf, escrita, viagens – e baladas.

Eu não sabia na época, mas vivi a era de ouro da Fluir. A revista nunca foi tão influente e lucrativa quanto nos anos 2000. Para um jovem editor, isso se traduzia em viagens. Muitas viagens.

Kojin me colocou para cobrir o Tour, temporadas havaianas e trips de freesurf. Não faltava grana para produzir conteúdo mundo afora e tanto Adrian quanto Guaraná sabiam que viajar, especialmente para um jornalista de surf, era preciso. Com isso, eu passava semanas a fio na estrada. Pela Fluir, viajei para o Hawaii, Tahiti, Califórnia, Chile, Peru, África do Sul, Indonésia, Austrália e até Malásia. Entrevistei algumas das maiores lendas do esporte e testemunhei momentos históricos do surf.

Mas não era apenas no exterior que o sucesso da Fluir garantia grandes momentos. Naquela época, as festas promovidas pela revista eram absolutamente memoráveis. Sempre com bebida liberada, os melhores DJs, nas melhores locações: Rio, Floripa e SP. Por volta de 2006, Guaraná fechou uma parceria com o Warung Beach Club, de Balneário Camboriú, e me deixou como responsável pelo disputadíssimo “Camarote Fluir”. A cada 15 dias eu tinha que voar para Santa Catarina com a ingrata missão de decidir quem entrava no camarote. Eram 70 pulseiras femininas e 30 masculinas. Foram tempos difíceis…

Mas nem só de festas e viagens vivia a Fluir. Ralávamos muito na redação. Kojin e Guaraná exigiam excelência em tudo que era publicado e isso se traduzia em longas noites durante o fechamento e sessões quase torturantes de edição de texto com Adrian. Muitas vezes ele era brutal na edição (“esse texto tá uma merda!”) – mas foi a melhor escola que tive.

A principal característica da revista naqueles dias era sua independência. Os editores não aceitavam influências de anunciantes (o que enfurecia muitos parceiros e levava nossos representantes comerciais à calvície) e a revista era produzida sem rabo amarrado. O espaço editorial era sagrado.

Essa independência era clara na linha editorial. Em vez de babar o ovo e encher a bola de nossos atletas, a revista era crítica e objetiva. Ao contrário do que queriam surfistas profissionais e seus patrocinadores, não comemorávamos cada fase passada ou cada nota 10 conquistada como uma vitória. Naqueles dias pré-Brazilian Storm, nossos atletas estavam aquém dos melhores do mundo e a Fluir fazia questão de dizer isso. Quem não se lembra das análises cirúrgicas de Guaraná sobre nossos representantes no Tour?

Isso enfurecia os Tops brasileiros da época. E, na maioria das vezes, quem tinha que lidar com eles era eu, que estava na linha de frente, viajando, cobrindo os eventos e entrevistando os mesmos camaradas que eram descascados nas páginas da revista. Não foram poucas as vezes que ouvi barbaridades de surfistas que eu admirava (e ainda admiro) imensamente. Ao defender a linha editorial da revista, cheguei a me indispor com caras que, poucos anos antes, eram meus ídolos. Mas vestir a camisa era parte do trabalho. Meus dias de fã estavam para trás – um dos grandes ensinamentos de Guaraná.

As razões pelas quais a Fluir deixou de ser comercialmente viável e parou de circular, acredito, não cabe a mim discutir – especialmente como editor da HARDCORE, a eterna rival.

Mas, certamente, é com grande pesar que testemunho seu fim. Para mim, a Fluir foi fonte de inspiração, escola, e, posteriormente, um concorrente que sempre me fez trabalhar mais e melhor.

O que guardo de meus anos na redação da Fluir são os dias repletos de risadas, as amizades, as viagens alucinantes e as valiosas lições de toda a equipe – especialmente Adrian Kojin e Alex Guaraná, pois foi com eles que aprendi que uma revista de verdade não economiza na produção de conteúdo, nem cede a pressões comerciais. O compromisso de qualquer veículo sério é sempre, em primeiro lugar, com o leitor. São conceitos que parecem esquecidos no fragilizado mercado editorial atual, mas que sempre carreguei comigo em todo e qualquer trabalho.

Obrigado, Fluir!

* Texto publicado na HARDCORE de julho – edição 319 – AQUI – nas bancas!

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