Por Kevin Damasio | Fotos Giulio Paletta
HC #315, março/16
Enquanto uma tarde de dezembro cai, Lucas Teixeira anda a passos lentos em direção à foz do Rio Doce. O vento intenso conduz rajadas de areia em direção ao mar de Regência. Com a voz imersa em nostalgia, “Índio” recorda a semana que antecedeu a chegada da lama.
As condições estavam épicas na mítica onda da Boca do Rio. Uma ondulação de dois metros bateu na segunda-feira e durou até sábado à tarde. “Esquerdas vinham lá debaixo, da foz do Rio Doce. Direitas… uma semana com onda direto”, conta o nativo de 21 anos. O cenário se transformou na tarde de 21 de novembro de 2015, quando, após 16 dias, uma enxurrada de rejeitos de mineração terminou de percorrer 663,2 quilômetros do curso do rio, até alcançar o litoral do Espírito Santo, no pior desastre socioambiental da história do Brasil.
Em 5 de novembro, a barragem de Fundão, na cidade de Mariana, Minas Gerais, se rompeu. A estrutura continha ao menos 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos, pertencentes a Samarco Mineração, cujos donos são a Vale e a anglo-australiana BHP Billiton. Segundo o Ibama, 30 milhões de metros cúbicos foram lançados na hora; o restante continuou vazando aos poucos. Ainda há o risco de rompimento das barragens de Germano e Santarém, parte do complexo minerário, que liberariam mais toneladas de rejeitos.
De Mariana a Regência, a lama deixou um triste rastro: soterrou Bento Rodrigues e parte de Paracatu de Baixo; matou 17 pessoas e deixou duas desaparecidas; avançou para o Rio Doce, contaminou a biodiversidade na bacia hidrográfica e afetou a vida de milhares de pessoas que viviam ao longo das margens, em 41 municípios, distritos e vilas.
Apesar da pouca idade, Índio já conseguia viver do surf. Filho de pai pescador e mãe costureira, o mais velho de cinco irmãos, aos 19 anos se mudou para Linhares, para trabalhar e complementar a renda da família. Em meados de 2015, voltou para a vila de 1.200 habitantes, alugou um estabelecimento da tia e abriu a loja Regisurf.
Nos seis meses seguintes, a rotina de Índio era pegar onda de manhã e trabalhar na surf shop à tarde, além de assumir o posto de vice-presidente da recém-fundada Associação de Surf de Regência. No quintal da casa onde a família mora de favor, ele ergueu uma oficina de madeira, onde conserta pranchas. “Não vou falar que ganhava horrores de dinheiro, mas era o suficiente e conseguia juntar para construir um ‘barraco’ para minha família.”
Agora sem demanda, a loja está fechada desde a chegada da lama. Mas a fissura para surfar era tanta que, a exemplo de uma dúzia de nativos e locais, Índio entrou no mar na manhã de 5 de dezembro. Ondulação de sul de um metro e meio, vento terral. Na Boca do Rio a água continuava marrom-alaranjada, mas no Point 1, cerca de 5 quilômetros ao sul, os tubos rodavam em paredes esverdeadas.
Antes de cair na água, Índio ficou alguns minutos ajoelhado na areia, voltado para as ondas, cabeça baixa e olhos fechados. “Fiquei grilado no começo, mas depois que entrei me senti mais confortável”, conta ele, quando pergunto se os riscos a longo prazo não o preocupavam, caso houvesse metais pesados no mar. Nenhum laudo, oficial ou independente, fora divulgado até aquele momento. A Prefeitura de Linhares anunciara na internet a interdição do mar, mas nos picos de Regência não havia placas para alertar. Entretanto, “Bebeto”, o pai de Índio, não acredita que há motivos para o filho se preocupar.
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A ordem para que a Samarco deixasse que a lama tóxica vazasse para o mar partiu da Justiça do Espírito Santo, em 21 de novembro. A decisão contrariou a Justiça Federal no estado, mas teve amparo de ambientalistas e técnicos do município de Linhares, da Procuradoria e do Ministério Público estaduais.
O governo e a empresa baseavam-se em um estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, encomendado pelo Ibama. Acreditava-se que a chamada “pluma de turbidez” se espalharia no mar em uma área de apenas nove quilômetros e se dissiparia. Ledo engano: a mancha permanece na foz e se estende conforme direção e intensidade da ondulação e do vento. Em 30 de dezembro, o Instituto Estadual de Meio Ambiente registrou que a pluma havia se esticado por 168,2 quilômetros quadrados – 14,3 km ao norte, ainda no município de Linhares; 22,3 km ao sul, até Aracruz; e 10,7 km para alto mar.
Para escoar o lamaçal, a mineradora teve de abrir a assoreada foz do Rio Doce. Trata-se de um hotspot de biodiversidade mundial, essencial para o equilíbrio da vida marinha e costeira no Atlântico Sul; um estuário de peixes, crustáceos, tartarugas e cerca de 70 espécies de tubarões e arraias. Na tentativa de reduzir os danos, a empresa contratou 45 dos 88 pescadores registrados na associação local, para instalarem e monitorarem nove quilômetros de boias, de um tipo normalmente usado em vazamentos de óleo.
Regência se transformou em 21 de novembro,
quando uma enxurrada de rejeitos de mineração
alcançou o mar capixaba, no pior desastre
socioambiental da história do Brasil.
Carlos Alberto Teixeira foi um dos escolhidos. “Bebeto” recebe semanalmente 150 reais por dia trabalhado, de segunda a segunda, das sete da manhã às seis da tarde, com intervalo de duas horas e meia. Se tivesse barco próprio, receberia 450 reais por dia. Em um domingo, após o expediente, ele está sentado ao lado de Índio, seu primogênito.
O pescador de 46 anos, que desde os 13 vive em Regência, demonstra satisfação com o aparato de segurança que a empresa fornece: luva, bota, colete, protetor solar, combustível e dois macacões laranjas. Se já viu muito peixe morto pelo rio? “Nada. Pelo contrário, tá pulando peixe!” Se comeria algum desses? “Eu comeria tranquilo”, responde, sem hesitar. “Mesmo sem o resultado das análises, tenho confiança no serviço que eles estão fazendo. Pelo que vi até agora, é só barro, nada de anormal. Quando o rio enche, a água fica barrenta daquele jeito.” Ele reconhece que a situação tem afetado a loja do filho, mas não acredita na poluição do mar e do rio.
Tais percepções, entretanto, são contraditas pelo Ibama. Em relatório preliminar, publicado no início de dezembro, a agência federal confirmou que pelo menos 11 toneladas de peixes mortos foram encontrados no rio – oito em Minas Gerais, três no Espírito Santo. O Ibama aplicou multa de R$ 250 milhões a Samarco – mas, na história brasileira, nem 3% das punições são, de fato, pagas. Já o Governo Federal determinou que Samarco, Vale e BHP Billiton depositassem R$ 20 bilhões em um fundo para recuperação socioambiental, em parcelas, durante dez anos.
Em 23 de fevereiro, 111 dias após o rompimento, a Polícia Civil mineira pediu a prisão preventiva de seis funcionários da Samarco, inclusive o ex-presidente Ricardo Vescovi, e um da Vogbr, consultora responsável por laudos sobre as barragens. Eles foram indiciados por homicídio qualificado por dolo eventual, inundação e poluição da água potável. Segundo investigação do Ministério Público, a mineradora sabia desde 2013 que a barragem de Fundão estava comprometida.
Em um primeiro momento, os peixes da bacia foram sufocados pelos rejeitos de minério, que são desprovidos de oxigênio, explica Flávia Bottino. A bióloga de 33 anos integra o GIAIA, grupo de cientistas que investiga, de modo independente, a situação na bacia hidrográfica. Na primeira expedição pelo rio, ela ficou impressionada com a alta concentração de oxigênio no Doce. Isso se deve à turbulência da enxurrada no rio, que permite a entrada do gás por difusão. “Mas não é suficiente para manter a vida aquática. A turbidez elevada impede que as algas se desenvolvam e realizem fotossíntese, processo que permite a entrada de oxigênio na água”, observa. “As algas são a base da cadeia alimentar – sem elas, outros organismos não se desenvolvem. Além disso, a elevada temperatura da água diminui a difusão de oxigênio.”
Em janeiro, a Samarco divulgou um estudo que “confirma a existência de peixes ao longo da calha do Rio Doce”. Mas tal cenário não indica que a biodiversidade esteja livre de perigo, já que as substâncias tóxicas identificadas contaminam a vida na bacia.
A Samarco diz que os rejeitos são compostos de minério de ferro, areia e água, mas não são tóxicos. “O contato com água abundante e em movimento libera dois metais: ferro e manganês, típicos do solo de Mariana e da região da Bacia Hidrográfica do Rio Doce”, informa, em vídeo no YouTube. Já os metais pesados, segundo a empresa e a Agência Nacional de Águas, “descansavam” no leito do rio e subiram à superfície conforme a torrente de lama descia pela bacia.
A Samarco diz que os rejeitos são compostos
de minério de ferro, areia e água, mas não
são tóxicos. Por outro lado, análises
independentes encontraram altas
concentrações de metais tóxicos.
Por outro lado, análises independentes encontraram altas concentrações de metais tóxicos. Em laudo técnico parcial, a Fundação SOS Mata Atlântica registrou a presença de magnésio em praticamente toda a extensão do Rio Doce, em valores acima dos 150 mg/L, que a Cetesb estabelece como aceitável, além de coliformes em quantidades ao menos 2.400 vezes superior ao que o Conama considera adequado. Em Regência, a quantidade desse metal é de 166 mg/L.
Tais compostos, conhecidos como “metais traço”, existem em baixa quantidade nos ecossistemas e são essenciais para processos biológicos, explica Flávia Bottino. “O manganês, por exemplo, é importante para a fotossíntese.” Contudo, o aumento da concentração de qualquer um desses metais pode trazer prejuízos à fauna e, consequentemente, aos seres humanos, porque se acumulam na cadeia alimentar. “Se um homem ingere um peixe que consumiu algas ou peixes menores contaminados, os metais podem se acumular no fígado ou, dependendo da quantidade, no sistema nervoso central, tendo como consequência o enrijecimento muscular.”
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Na maré enchente, as águas do Rio Doce descem rápido em direção à foz. Eduardo Barcelos conduz um pequeno barco de madeira movido a motor de rabeta. Apesar de ser sócio da associação local, o nativo, pescador e surfista de 33 anos não foi contratado pela Samarco. “Gostaria de receber o dinheiro, mas achei até bom ter ficado de fora, pelo fato de os pescadores esconderem peixes mortos.” Em novembro, o jornal britânico The Guardian publicou um vídeo em que pescadores de macacão laranja enterram animais mortos nas areias da praia. Para amenizar o prejuízo financeiro, Eduardo pegou um barco emprestado e passou a guiar expedições pelo rio, muito procuradas por pesquisadores e jornalistas.
Navegar pelo Rio Doce ajuda a compreender a dimensão da tragédia provocada pela Samarco. Uma imensidão marrom-alaranjada se estende rio acima e no estuário, margeada pela mata ciliar cujo solo encontra-se em risco iminente de contaminação, caso caiam as típicas chuvas de verão que provocam as cheias. Um estudo da Universidade Federal do Espírito Santo aponta que na bacia hidrográfica há 300 miligramas de rejeito de minério para cada litro de água.
Navegar pela imensidão marrom ajuda a
compreender a dimensão da tragédia
provocada pela Samarco. No Rio Doce,
há 300 miligramas de rejeito de
minério para cada litro de água.
Garças e andorinhas-do-mar sobrevoam o rio em busca do alimento, assim como um ou outro urubu. Na região do estuário, peixes irrompem a superfície – alguns quase caem no barco. A lama chegou justamente no período de reprodução da ictiofauna, no qual a pesca é proibida. Antes, Eduardo ajudou a resgatar alguns indivíduos das principais espécies do Rio Doce, como robalo, ticupá e curimatã. “Os peixes pulam da água para pegar oxigênio, e não porque estão saudáveis”, diz Eduardo. “Estão infectados, não tá pra consumo humano. Quem vai ser o primeiro a arriscar? Eu não, e turista nenhum vai querer comprar peixe.”
Nos meses seguintes, porém, escuto relatos não apenas de gente surfando, como também consumindo os peixes pescados na água tóxica. Em 4 de fevereiro, o Ministério Público Federal entrou com uma liminar para proibir a pesca na região da foz, exceto em casos de pesquisa científica. Além de preservar a saúde da população, a medida visa facilitar a recuperação do Rio Doce.
Filha de pais caboclos, Hilda Lourenço vivia entre Regência e Comboios desde meados do século 20, até mudar-se de vez para a vila, aos 12 anos. Na época, apenas duas ruas de casas interrompiam o matagal. Aos 17, ela casou e mudou para o Areal, uma região mais afastada na vila. A diversão dos nove filhos era sair da escola e ir direto para o rio, para pegar peixe, camarão, siri. Enquanto isso, a mãe trabalhava na roça de cacau.
Dona Hilda é uma cabocla miúda de 73 anos, de cabelos grisalhos e íris azuis. Ao longo das décadas, tornou-se líder e porta-voz da comunidade, mesmo sem se vincular às associações. Há quatro anos, tem se alfabetizado nas aulas noturnas da igreja católica.
Naquela tarde, Dona Hilda ganhara um galão de água de cinco litros. Na véspera, recebera a primeira doação de cesta básica – arroz, feijão, açúcar, óleo, farinha, fubá, leite. Mas agora vive na incerteza de quando terá outra dessas. Se há desunião na vila desde que a lama chegou? “Tem, tem, tem… porque um quer ser mais que o outro, quer receber mais.”
A mudança dos ares de Regência, na visão do cientista social Hauley Valim, é uma questão antropológica. Na formação acadêmica, o capixaba de Linhares mergulhou no passado da comunidade. Fincou raízes na vila onde aprendeu a surfar em meados dos anos 1990, e hoje, aos 40, quer se aposentar da docência, para construir uma pousada ecológica.
“A vila possui uma história de dramas sociais”, explica. “Uma comunidade de pescadores invadida em diversas ocasiões, por pessoas com costumes totalmente diferentes, da sociedade de consumo.” Primeiro foi a coroa portuguesa, após Caboclo Bernardo salvar, numa tempestade de 1887, 128 tripulantes do navio imperial português, inclusive a Princesa Isabel. Depois, os ciclos do ouro e da madeira, a exploração de petróleo e gás, a chegada de autoridades estatais ambientalistas e, por fim, o crime socioambiental da Samarco. Nesse meio tempo, aconteceu a economia pastoril intensiva, a febre do cacau, a agricultura de subsistência e a pesca abundante. Até que tais modelos perderam força diante do assoreamento do Rio Doce e do potencial para o turismo em Regência. É nessa época que o surf nasce na vila.
Se há desunião na vila desde que a lama chegou?
“Tem, tem, tem… porque um quer
ser mais que o outro, quer receber mais”,
diz Dona Hilda Lourenço, nativa de 73 anos.
Criado por pescadores, o nativo Julio Cordeiro começou a pegar onda de 1991 para 1992. “Foi um lance natural. Os veraneios tinham casa na praia e vinham brincar de bodyboard. Foi quando me envolvi e não parei mais.” Hoje, com 38 anos, “Cadeado” recorda a época em que matava aula para surfar, de um dia clássico de 10 pés na Boca do Rio e da dificuldade que tinha de arrumar companhia para a queda – isso até que o amigo Fabrício Fiorot, de Linhares, virou seu vizinho.
Depois veio Robson Barros, mineiro de Resplendor que morava na capixaba Vila Velha, para criar a primeira pousada do pico, em 2003. A Pontinha Surf House fica a uma caminhada da Boca do Rio, onda de extensas seções manobráveis e tubulares, segura 12 pés e é apelidada de “Primas de Bali”. “A gente sabia do potencial, mas não da constância”, lembra Robson. Desde 2007, ele tem montado um banco de dados com boletins diários, que mostram que a temporada de onda dura de março a novembro.
Robson, Cadeado e Fiorot divulgavam Regência por onde quer que viajassem. O pico já era apreciado por capixabas nos finais de semana, feriados e em bate-volta em dias úteis, mas a fama se alastrava para além do Espírito Santo. Nos últimos anos, cada vez mais gente largava tudo para construir uma nova vida na vila. Pousadas pipocaram e impulsionaram o potencial turístico do surf.
O ano inteiro dando onda. Verão com promessa de swell constante. Real desvalorizado, dólar nas alturas. Pousadas lotadas. Tudo indicava que a virada de 2015 para 2016 seria a mais movimentada de Regência. E então o Rio Doce é tomado por lama tóxica. O caos socioeconômico se agravou uma semana antes da enxurrada chegar à foz.
“Quando falaram que ia dar em Regência, a coisa começou a desandar – todo mundo cancelou o réveillon, ninguém ligou mais”, conta Robson. “Agora a gente receberia os depósitos, eu pagava minhas dívidas do ano e me preparava até março. Me sustentava o ano inteiro em cima disso. Com essa paulada, não tem renda, as contas estão chegando e a Samarco não dá posição para o comércio.”
É manhã de dezembro e Robson olha para uma lycra pendurada no varal, ainda salgada da última queda que fez na Boca do Rio, no domingo anterior à lama. “Tá aí do mesmo jeito, nem mexi mais. Não dá nem vontade de lavar.” Aos 46 anos, ele mora na pousada com a mulher e o filho pequeno e é presidente da Associação de Surf de Regência. Tem medo do futuro incerto, mas assumiu a responsabilidade de defender a comunidade. “Por tudo que a vila me proporcionou, eu me sinto na obrigação de retribuir com conhecimento às pessoas que ainda não sabem direito o que está acontecendo, para que não sejam usadas e colocadas em uma situação que condene as próximas gerações.” Robson não está sozinho nessa luta.
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Quando soube que a lama chegaria ao mar, Eric Freitas poderia simplesmente arrumar suas malas e abandonar Regência, mas decidiu ficar em nome das relações que desenvolveu ao longo dos três anos em que vive na vila. “Tenho a oportunidade de sair fora, só que as pessoas daqui, não. E tudo que tinham que valia alguma coisa já não tem mais valor”, diz o capixaba de Vitória. “Então, como posso ajudar? Nesse approach técnico, de articulações, oferecendo, às pessoas, informação e conexões certas.”
Aos 29 anos, Eric abriu uma pousada em Regência, em sociedade com dois amigos. Investiu toda a grana no Bocana Surf Camp, inaugurado em setembro de 2015, na espera do retorno financeiro no promissor verão. A tragédia ambiental sem precedentes trouxe uma realidade confusa onde, antes, era um refúgio de paz no litoral do Espírito Santo.
Oceanógrafo especializado em biodiversidade, Eric se deparou com um panorama de poucos dados e muita especulação. “O que vejo é um processo de aliciamento da empresa, que gera uma guerra interna”, observa. “Parece que o trabalho deles agora é abafar. ‘Calma, ninguém vai ser contaminado, daqui cinco meses tudo vai acabar.’” Mas ele sabe que as consequências mais graves se desenrolarão a médio e longo prazo.
Por isso, Eric utiliza seu espírito ativista no papel de unir a comunidade. Não é uma missão fácil, mas ele se apoia em uma experiência recente. De 2011 a 2015, a luta envolvia um porto da mineradora Manabi, e a mobilização dos moradores da vila contra o projeto contribuiu para embargá-lo e evitar uma tragédia ambiental em Regência.
Este seria o verão mais movimentado de Regência, até que o Rio Doce foi tomado por lama tóxica. O caos se agravou uma semana antes da enxurrada chegar à foz.
Eric é representante do Fórum Capixaba de Entidades em Defesa da Bacia Rio Doce, que reúne ativistas e organizações ambientais. Além da articulação política, busca apoio internacional para expôr a realidade. Em dezembro, passou noites em claro para escrever um relatório a respeito da biodiversidade e dos possíveis impactos da lama tóxica em Regência, que entregou para representantes das Nações Unidas.
Ele acredita em duas medidas urgentes para evitar prejuízos maiores. Primeiro, fechar as comportas de uma das usinas no curso do Doce (como a Hidrelétrica Eliezer Batista, da Vale), para conter os rejeitos que estão em Minas Gerais. A segunda é retirar o material que está na região do estuário. Uma forma seria lançar os sedimentos para além da plataforma continental, a cerca de 20 quilômetros da foz. “Tem que agir rápido. Não pode esperar o tempo passar, deixar aumentar a dissipação dos contaminantes; dragar ou lançar isso offshore”, observa. “De toda a bacia, a foz é um lugar muito mais sensível e difícil de ser recuperado.”
Apesar da necessária preocupação ambiental, não se pode esquecer do grande impacto social que o lamaçal causou. De repente, os moradores da vila perderam suas principais formas de sustento: o rio e o mar. Por isso ele deu início ao movimento Regência Viva. “A gente quer recuperar não só a energia das pessoas, mas também a atratividade de Regência, por meio de outras fontes de renda: turismo sustentável, trilhas ecológicas, bird watching”, explica. “Ensinar as ferramentas para que a própria população consiga se desenvolver e renovar a vila.”
No Regência Viva, Eric conta com a parceria da nativa Thalena Pereira. Quando a tragédia atingiu a vila, a surfista e estudante de pedagogia, aos 24 anos, passou semanas absorta em tristeza, mas percebeu que, para revitalizar Regência, é preciso fortalecer a cultura local, com o Congo e a Fubica, que embalam o peculiar Carnaval.
Durante um protesto em Linhares, em dezembro, Thalena ficou cara a cara com a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira. Não soube como reagir quando escutou as seguintes palavras: “Todo mundo vai receber, vai ter trabalho em torno do rio e vocês vão receber recursos para fazer projetos. Querem mais o quê?” A ministra, até então, apenas sobrevoara Regência, porém, no fim, se comprometeu e visitou a vila em meados daquele mês, para escutar as demandas do povo. Até hoje, entretanto, essa ajuda não chegou.
Thalena prefere não esperar pela ajuda do governo e das empresas responsáveis. “Precisamos dessa organização comunitária e usar a sustentabilidade para gerar trabalho aqui. Dinheiro vem? Vem, mas às vezes para na mão errada.” Problemas semelhantes acontecem na distribuição de doações e no abastecimento de água, ainda mais para quem mora nas regiões afastadas.
Nilton José dos Santos mora no primeiro terreno de Entre Rios, a comunidade ribeirinha de Regência, em uma pequena casa de alvenaria, com a mulher, três filhos, quatro netos e uma nora. Em uma manhã ensolarada, ele busca uma alternativa para irrigar sua roça e sua horta. Acompanhado do caçula, ele tenta puxar água de um novo poço artesiano, a cem metros das margens do Rio Doce, mas o barro entope a tubulação. “Desde que aconteceu o negócio lá, disseram pra tirar as bombas do rio. Aí a gente não irrigou mais”, conta. “Desde essa época você pode assuntar que os trem tão morrendo devagarzinho.”
Em dezembro, a Samarco se comprometeu a pagar, a ribeirinhos e pescadores, um salário mínimo e mais 20% do valor por dependente. “É suficiente?”, pergunto a Seu Nilton. “Rapaz, esse total aí eu tirava pescando de vez em quando. E a plantação? Falo a verdade, não vai refrescar nada pra mim.”
Até o momento, a família de Seu Nilton recebera apenas uma caixa d’água de 15 mil litros, abastecida vez ou outra por caminhões-pipa bancados pela Samarco. Na volta à casa, ele se deparou com um grupo de jovens munidos de doações. Entre eles, estava Eric Freitas. Deram parte dos mantimentos e galões de água mineral para Seu Nilton. Depois, nos embrenhamos comunidade abaixo.
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Antonio Honorato da Silva é um senhor de 73 anos que mora em uma casa de madeira no meio de Entre Rios. Já foi pescador, mas hoje vive da agricultura de subsistência. Planta cana, cacau, feijão de corda e pimenta. Mal chegamos e ele se apressa para o poço artesiano do outro lado da rua de terra. Bombeia uma água amarelada, que tem bebido após ferver, desde que a mineradora deixou de lhe fornecer água tratada. “Pura ferrugem, mas quando boto uma rodela de limão, fica boa”, diz. “Sem energia, sem água e sem comida – essa é a realidade nossa agora.”
Estrada abaixo fica a palafita de Edvaldo Gomes Lima, de 43 anos. Sua bisavó era da tribo dos botocudos, que viveu às margens do rio que chamavam Watu (Rio Grande). Edvaldo armazenou, em garrafas de plástico, águas de diferentes fontes: a de um valão próximo, que, antes da lama, era potável, mas hoje está amarelada; a fornecida pela empresa, cheia de sedimentos; e outra mais limpa, de um poço distante. Sobre a água que recebe da empresa a cada dois dias, diz que não bebe por conta dos resíduos. Em seguida, desabafa: “Aquela caixa d’água tá fazendo mal, cara. Colocam para umas pessoas e para outras, não. Se fosse para todo mundo, com justiça… isso tá gerando briga, discórdia na comunidade.”
Um nativo se aproxima a cavalo. Edvaldo o apresenta como descendente de Caboclo Bernardo. José Antônio Siqueira conta que tem “43 anos de vida e de pesca”. Mora no último terreno de Entre Rios, com acesso apenas por uma trilha complicada. Chegou a surfar na Boca do Rio, mas, quando tinha 17 anos, seu pai faleceu e ele teve que cuidar da mãe e dos 12 irmãos. “Eu vivia do peixe e da roça. E hoje? Viver de quê? Nada, só tragédia. Ninguém tá me ajudando, só Deus mesmo, e ele aqui”, diz, apontando para Edvaldo.
Em um domingo, Eric Freitas acorda cedo para encontrar marisqueiros surfistas na Praça do Rio Preto. Como não tinham registro profissional, os jovens pescadores temiam ficar de fora das indenizações que a Samarco deveria pagar. No final, a alternativa seria cadastrá-los como membros da Associação de Surf de Regência, que cobra direto da mineradora alternativas aos surfistas locais.
A conversa logo toma outro rumo. Eric se disse preocupado porque muita gente caía no mar, ignorando o risco de contaminação. Desde 14 de dezembro, os relatórios oficiais sobre a qualidade da água do mar baseavam-se em sobrevoos feitos no litoral capixaba. O primeiro laudo a respeito das substâncias presentes no mar foi publicado, sem alarde, em 30 de dezembro. Na análise encomendada pela Samarco, não foram encontrados metais pesados, nem coliformes fecais, embora o governo mantenha, até hoje, a interdição nas praias de Regência, Povoação e Comboios.
Não foi isso que pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo constataram na análise de 2.785 amostras de água e sedimentos, coletadas desde 13 novembro. Alex Bastos, oceanógrafo que integra o grupo de cientistas, chamou atenção ao alto teor de metais, como ferro, alumínio, manganês e cromo. Os estudos continuam a fim de identificar as consequências sociais, econômicas e ambientais. “Tudo isso vai impactar de forma geral no ecossistema”, observa Bastos, “mas o efeito disso para o homem talvez só comecemos a entender em até quatro meses.”
Na Praça do Rio Preto, os marisqueiros escutam, em silêncio, sobre os riscos de pegar onda. “A característica desses metais é interessante porque não causa morte instantânea. É um processo gradativo, que se acumula no organismo e não é excretado”, explica Eric. “Aquela água clara está só enganando. ‘Ah, não, já passou, vamos cair como se nada tivesse acontecido.’ É isso que eles querem que vocês pensem. A lama ou já foi encoberta pelos sedimentos pesados que tem na praia, ou foi para a superfície, para a areia. Conforme o tempo passa, a concentração de metais tende a aumentar, o que é pior.”
Logo, os olhares concentrados dos nativos dão lugar à empolgação, quando Eric finaliza: “Para que Regência não caia no esquecimento e vire uma vila-fantasma, precisa haver uma mudança de paradigmas. Vamos tomar essa vírgula na nossa história como oportunidade de mudança e transformar a vila em um exemplo de resistência.” HC
Esta reportagem foi originalmente publicada na HARDCORE 315, de março de 2016.