Por Kevin Damasio
21 de novembro de 2015. A lama de rejeitos de mineração da Samarco alcançava a foz do Rio Doce, após 16 dias do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG). Mudaria o cenário esperançoso que os moradores nutriam pelo verão seguinte em Regência, no Espírito Santo. Na vila capixaba, o surf transformava-se no motor da economia local, ao lado da pesca. Atingiria níveis que romperiam fronteiras, a partir do interesse internacional em uma das melhores ondas do Brasil. Nas pousadas, as reservas passaram a ser canceladas. Foram supridas, em parte, pela massa de jornalistas, ambientalistas e funcionários contratados pela empresa responsável – Samarco, joint-venture da brasileira Vale e da anglo-australiana BHP Biliton.
Dois anos se passaram. Nenhum dos 22 réus pelo crime socioambiental foi preso. O julgamento foi retomado em novembro, após ser suspenso em julho, quando a defesa contestou a legalidade das escutas telefônicas utilizadas no processo. Multas não foram pagas, tampouco a maioria das indenizações. As ondulações clássicas que chegam tornam difícil de resistir à queda nos picos da vila. Os surfistas voltaram a pegar onda em Regência e, aos poucos, o clima e o turismo voltam aos trilhos. Mas o medo persiste, já que não há nenhum laudo oficial para informar que substâncias estão presentes naquele mar. Nas próximas páginas, o cenário dos últimos 24 meses de Regência é reconstituído por quatro surfistas nativos, locais e capixabas.
[parallax-scroll id=”33801″]
LUCAS TEIXEIRA
Surfista nativo de Regência, dono de surf shop na vila
Foi bem difícil. Não entrou muita ondulação nesse ano que passou. A galera ficou com receio de cair nesse mar, porque não existe um laudo. Mas está todo mundo unido para para que seja regularizada a Associação de Surf de Regência. Esse ano foi foda pra gente aqui na vila. Até hoje, desde quando aconteceu o desastre, não peguei a Boca do Rio como naquele último dia.
Regência estava num swell de gala, de sul com vento norte. Ondas animais de 2 a 3 metros, quebrando lá de fora. Pegava a bancada e ia embora até lá na frente. A gente ficou sabendo do rompimento da barragem e nossa única vontade de naquele momento era pegar aquelas ondas, aproveitar o máximo, porque não sabíamos o que iria acontecer. Chegamos na praia de manhã cedo e ficamos até de tarde pegando onda. Foi um dos dias que mais surfei na Boca do Rio. E até hoje não teve um mar do mesmo porte. A galera local se pergunta que dia vai quebrar outro mar daquele. A Boca do Rio nunca mais foi a mesma. Mas a gente tem fé que um dia isso tudo vá melhorar e que quebrarão altas ondas.
Após a chegada da lama, os pescadores tiveram que paralisar, alguns comércios foram fechados. Mas a galera está se reunindo para ajudar a melhorar a vila, para ver se isso tudo passa. Foi bem difícil, porque os turistas sumiram; os surfistas que vinham para cá – e geravam uma renda pra gente – desapareceram. Mas, após dois anos, bem devagar, a galera está começando a voltar à Regência, pegando suas ondas. Cada dia que passa, a gente vê a água de uma forma diferente, tem bastante peixe, a água verdinha. E a gente fica feliz de saber que as coisas estão melhorando.
Eu trabalhava com a minha loja de surf e também consertando prancha. O movimento caiu bastante. Tive que fechar a loja para ir trabalhar em Linhares. Minha parte do conserto ficou parada. Só que hoje a gente conseguiu dar uma engrenada. De vez em quando, faço consertos para umas pessoas de fora e até mesmo da vila. Devagarzinho, as coisas vão acontecendo. Ainda não consegui reabrir a loja. Perdi meus materiais, produtos. Mas é um sonho que sempre tive, de ter uma loja e trabalhar com o surf, e estou batalhando para conseguir novamente. Infelizmente, até hoje não fui indenizado, mas estou correndo atrás e, com fé em Deus, vai dar tudo certo e estarei de volta mais forte, com mais inovação e garra, para que volte a trabalhar no ramo que gosto.
A maior necessidade do surf e do turismo é quem não estava vindo pra vila. Então ficamos um bom tempo sem ter essa renda. Mas a galera de fora já participa mais, vem mais pra vila, está mais atenta nas previsões e a concepção da galera que tinha receio de cair no mar está mudando.
Hoje, a gente vê que teve algumas consequências, algumas coisas que mudaram. Mas precisamos esperar o tempo pra dizer se estamos nos prejudicando ou não, porque não temos laudo, nada. E bola pra frente, pegar onda aqui na vila mesmo, onde temos condição de surfar, porque até hoje não fomos reconhecidos como atingidos. Mas será que fomos contaminados?
Já se passaram dois anos e a gente não teve nenhuma resposta do que aconteceu, se realmente está contaminado, ou liberado para o surf. Se os peixes estão bons. Mas a paixão que temos pelo surf é maior que isso tudo. Ficamos com receio, com medo, mas, quando entramos na água, ficamos doidos para pegar onda, surfar, fazer a cabeça, e esquecemos desse desastre que aconteceu. O surf te faz entrar em outro mundo, abrir a mente, pensar em coisas boas, amizade, relacionamento com as pessoas, a convivência. Essa é a essência do surf.
[parallax-scroll id=”33805″]
RAFAEL TEIXEIRA
Surfista de Vila Velha (ES), representante capixaba no QS
Depois que aconteceu o fato, fiquei pouco tempo em casa, sempre competindo o circuito mundial do QS. Mas teve swells incríveis em Regência. No meio do ano passado peguei um swell animal, se não me engano em agosto ou setembro. Deu 6 pés de onda, muito clássico. Foi um dos melhores do ano. Depois do acontecido, fui cinco ou seis vezes para Regência. Surfei só no Point. Na Boca do Rio ainda não tive coragem.
Voltei para Regência pela primeira vez quase um ano depois da tragédia, na virada do ano passado para esse. Era verão, então estava muito ruim de onda. Tinha um swell pequeno, o mar estava horrível, mas entrei na água como se fosse um “bem vindo de volta”. E o negócio da lama é que você não a vê. Não é que nem no mangue, que se vê uma areia movediça. Você consegue perceber que tem alguma coisa diferente no mar, mas não vê. Tem que conhecer muito para perceber o que tem de errado ali.
Receio eu tive de cair no mar, mas estava bem ciente do risco que estava tomando. Eu precisava voltar para Regência, porque para mim é a melhor onda do Brasil e fica perto da minha casa, Vila Velha. Fiquei com receio, sim, porque ouvi várias histórias diferentes, algumas podem ser verdade, de bactérias, bicheira, essas coisas. Mas, graças a Deus, não aconteceu nada comigo.
Quando rolou a tragédia dos rejeitos de minério, eu estava viajando, acompanhei tudo pela internet. Vi o vídeo das famílias humildes esperando a lama chegar. Cenas muito tristes. Tenho amigos que têm comércio, que moram lá, que têm casa. Era a fonte de renda das famílias, dos empresários que estavam ali. E aconteceu… e até hoje não teve nenhuma providência. Mais uma vez, o dinheiro falou mais alto que tudo.
Eu era do Rio, me mudei para o Espírito Santo quando tinha 8 anos de idade. Farei 25 e vou para Regência há bastante tempo. Lembro da primeira vez que cheguei em Regência. Surfei na própria vila, porque o mar estava tão grande que só tinha onda praticamente na frente da vila. Estava incrível. Lembro que entrei no mar com muito medo. É uma vila simples. O grande chamativo do lugar são as ondas, a calma, poder ficar lá tranquilo, com pessoas humildes, do bem. Infelizmente, a principal fonte de renda que tinha para essas famílias, para os pescadores, em tese, se acabou.
Eu acho que Regência me ajudou muito a crescer na carreira. É uma onda forte, diferente, que talvez tenham poucas parecidas no Brasil, principalmente para a esquerda, quando o swell entra de leste. O que sei de tubo para a esquerda foi Regência que me ensinou. E a Boca do Rio é uma esquerda incrível, que me ajudou a ter mais linha, polir algumas manobras. Sem dúvida, Regência faz parte da minha carreira. Um dos meus primeiros campeonatos profissionais foi lá.
O surf capixaba é um pouco esquecido. Estamos no meio de grandes estados, Bahia, Rio, São Paulo. Por ter poucos atletas no circuito mundial, só eu e o Krystian, fica um pouco esquecido. Se falam do Espírito Santo, não vão falar do Rafael e do Krystian, mas sim de Regência. Quando tem swell, vai todo mundo para lá. Sem dúvidas, é o principal point do surf capixaba.
Na minha visão, os surfistas fizeram luto, correm atrás, não querem deixar isso em branco. Mas o dinheiro que está ali por trás é muito grande. São apenas poucos surfistas em torno de milionários, de políticos. Então, infelizmente, por enquanto tudo que a gente tenta fazer acaba em vão, porque eles não estão olhando para nós, e sim para o dinheiro no final do mês. Infelizmente, essa é a realidade do Brasil.
[parallax-scroll id=”33811″]
HAULEY VALIM
Antropólogo, surfista e morador de Regência
A dúvida continua sendo um grande problema. É um dano que sofremos cotidianamente em função da ausência de informação sobre a qualidade da água. Passaram-se dois anos e ainda não temos um laudo de balneabilidade das nossas praias, o que tem justificado a hashtag que a galera do surf criou, #surfsemlaudo. Mas há uma diferença. A Associação dos Surfistas de Regência assumiu a condição de comunidade atingida e está iniciando uma luta para pressionar a empresa a reconhecer os surfistas como atingidos, como aconteceu com pescadores, agricultores, indígenas e comerciantes. É um dado novo que a gente acha importante alimentar para avançar na reivindicação dos direitos dos surfistas.
A gente está lutando politicamente por meio das assessorias técnicas, um processo de luta popular para garantir o controle sobre as pesquisas e para que nós, os próprios atingidos, possamos levantar as demandas de análise da água, coisa que a Samarco não tem nos atendido. Então, estamos lutando para assumir o controle e nós mesmos buscarmos, através de parcerias, esses dados que são necessários para tirar de nós essa dúvida que danifica.
A lama chegou no verão em que a vila se projetava no cenário internacional. Já tínhamos uma presença frequente de surfistas de vários estados brasileiros, e Regência passava pelo despertamento da mídia em relação à qualidade da onda. A lama de rejeitos de mineração da Samarco rompeu esse ciclo ascendente, no qual não só a onda ganhava importância, mas também os próprios surfistas nativos e locais, além dessa dimensão do turismo embalado pelo surf. Esse é um dano profundo que a Samarco provoca na comunidade e que agora precisa ser reparado.
Hoje, classifico o clima geral da comunidade como positivo. A gente está com muita esperança em relação ao verão. As comunidades chegaram a um nível de maturidade para entender melhor o processo e saber que muitas das relações que foram fragmentadas tiveram a empresa como responsável. Essa reorganização das relações afetivas e sociais na comunidade tem avançado.
Já a comunidade do surf tem voltado à vila, apesar dessa dúvida sobre o tipo de exposição a que o surfista está sujeito. A gente não sabe se, a médio e longo prazo, isso pode se traduzir em algum problema de saúde grave. Mas o cenário é positivo. O desafio é receber essa comunidade do surf, conscientizá-la e engajá-la na luta, com informação, projetos de regeneração do espaço, das relações, da água.
Enquanto a lama descia o Rio Doce, em novembro de 2015, houve uma tensão total. A chegada da lama no oceano coincidiu com uma boa ondulação. Nesse dia, cheguei à praia e a galera estava naquele espirito de despedida. Apesar da qualidade, resolvi não cair no mar. Fiquei observando as ondas, sentindo o que tinham para dizer. E sentia que aquele era um momento em que precisava me conectar com ela, enquanto estava limpa, para que tivesse uma consciência muito clara do que ela era e para poder fortalecer a luta, para que pudéssemos, juntos à natureza, promover a regeneração dessa onda, que tem muita importância pra nossa alma, pro nosso espírito. Foi uma relação de tensão, despedida, mas também de escuta. O que me marcou nesse dia foi escutar o mar. Registrar na minha memória, no meu espírito, essa relação de afeto profundo que sempre tive pelo oceano, e mais especificamente por aquela onda. Aquele som, o som da água antes de ser maculada.
Nesses dois anos, o swell que mais me marcou foi o primeiro que quebrou depois de a lama chegar. Uma ondulação média, de um metro e meio, na Boca do Rio. Uma onda muito longa, bem vermelha. Aquele dia foi muito marcante para mim porque, apesar da presença dos rejeitos de mineração, ela continuava com qualidade, perfeita. Aquilo moveu meu espírito. Fiquei pensando no que seria possível fazer para poder retirar da água aquilo que não deveria estar lá. Essa memória da primeira ondulação, que a gente chamou de maré vermelha, foi muito marcante.
Ficar sem surfar não rola. As pessoas criticam os pescadores, os surfistas, mas é tão importante para o surfista surfar quanto é para o pescador comer peixe. Qual é o pior dano? O que a lama provoca ou aquele que o distanciamento da praia, a ausência do surf pode provocar? Eu surfei apenas 14 vezes após a chegada dos rejeitos de mineração. Fiz a opção de reduzir minha presença na água e surfar somente nos dias clássicos. E tenho sido muito abençoado pelo oceano. Apesar de ter reduzido drasticamente a minha prática, nos dias que estão bons eu tenho tido uma performance muito interessante.
Cada um tem que encontrar a medida adequada da sua relação com o mar, já que não temos as informações necessárias para nos dar a segurança que tanto necessitamos. Deixar de surfar, jamais, porque o dano que deixar de surfar provoca é tão grande quanto a acumulação de metais ao longo do tempo que os rejeitos podem provocar. Surfar agora em Regência, de fato, é diferente de antes. No meu caso, surfar promove a regeneração do meu espírito, porque me fortalece para poder lutar pela regeneração do Rio Doce.
[parallax-scroll id=”33814″]
Krystian Kymerson
Surfista de Vila Velha (ES), campeão brasileiro de 2015, representante capixaba no QS
Em 2014, eu peguei um swell na Boca do Rio incrível. Ondas de manobra e tubo. Uns 2 metros de onda. Muito perfeito. Foi uma das primeiras vezes que peguei muito clássico em Regência. Depois do acontecimento da lama, minha primeira vez lá foi para gravar uma matéria com a galera do Canal Off. Já estava com saudades de surfar em Regência. Nesse dia, tinham altas ondas na segunda entrada, um pico tubular, bem diferente da Boca do Rio. Um mês depois, deu um Regência incrível, altos tubos. A galera inteira do Espírito Santo, mesmo quem ainda não ia surfar, crowdeou lá, estava alucinante. E, por sorte, esse swell foi dias antes de eu viajar para a África do Sul.
Quando a barragem se rompeu, a gente estava meio preocupado aqui em Regência, porque, com certeza, a lama viria para cá, onde desemboca o Rio Doce. Foi muito triste. A gente estava lá um mês antes, pegando altas. E ver aquela água ficando barrenta, poluída pelo minério…
Sei que a água ainda não está 100%, mas a gente chutou o balde e está surfando. Estava com muito medo na primeira vez que surfei lá, no dia em que gravei a matéria. Não sabia o que tinha na água. Os locais já haviam surfado e eu já tinha ouvido falar de pessoas que pegaram bactéria… Mas fui e graças a Deus não tive nada. Isso é muito complicado. Muita gente diz que ligou o foda-se, estão indo surfar, mas com medo.
Antes do acidente, Regência sempre lotava com a galera do surf. Muita gente de fora do Espírito Santo ia lá conhecer. Todo mundo gostava. Muita gente do Rio, de São Paulo, comprava terreno, para ter uma base lá. Regência é um lugar de muita cultura, boas ondas, é uma vila de pescadores. Depois que aconteceu esse acidente, Regência ficou meio morta. Mas agora está começando a voltar ao que era antes.
O que Regência representa para mim? Uma onda incrível, que me ensina a surfar de linha e também a entubar. É tudo para mim. Graças a Deus, temos uma onda dessa no Espírito Santo para treino, para aperfeiçoar as manobras e os tubos. Regência, para mim, é minha casa e o lugar onde sempre quero estar. Eu comecei a surfar Regência ainda muito novo. Sou de Vila Velha e sempre vou para lá quando rola swell. É uma base muito boa de surf, para treinamento. Para mim, Regência é uma das melhores ondas do Brasil.
Agora, Regência está voltando a trazer turistas. É uma onda bem divulgada, conhecida, um lugar alucinante para passar o final de semana, pegar altas ondas no swell certo. É um lugar tranquilo, cultural. Então, Regência é tudo para a galera do Espírito Santo. E está voltando a viver.
Eu reparo muito na postura da comunidade do surf capixaba. A galera ficou muito unida depois do que aconteceu. Corre atrás de uma resposta. Fizemos carreata. Fazemos de tudo para saber o que tem na água. A galera do surf quer salvar Regência. Um lugar muito querido por todos, é a capital do surf.
Publicada na HARDCORE #335