Enquanto o mundo via as primeiras remadas em Jaws, Márcio Freire, baiano então com 36 anos, era um pioneiro no assunto. Ele não foi incluído no time titular da primeira competição na remada a ser realizada no pico, o “Red Bull Jaws Paddle at Peahi”, e viu locais como Matt Meola e Albee Layer protestarem a seu favor.


Nas próximas linhas, você confere uma entrevista com Marcio Freire, este cara sangue bom que redefiniu o surf de ondas grandes. A conversa foi publicada na revista HARDCORE, em abril de 2013, na seção “10 Perguntas”.

Decidimos resgatar o papo com intenção de reverberar as palavras deste surfista de alma de coração enorme, que nos deixou na quinta-feira, 5 de janeiro de 2023, surfando ondas grandes, fazendo o que mais amava, no canhão de Nazaré.

Conosco, além das saudades profundas, permanece a aura desse incansável Mad Dog que nos inspira para sempre a ir atrás dos nossos sonhos. 

Descanse em paz, camarada.

Texto Matias Lovro / Fotos: Bruno Lemos | Publicado na HARDCORE de abril de 2013

Quando você foi surfar Jaws pela primeira vez?

Eu nunca dei atenção ao tow surfing. Quando o pessoal brasileiro começou a investir nisso, eu tinha acabado de chegar no Hawaii e pensei: “Primeiro eu quero desenvolver meu surf na remada, depois vou pensar em fazer tow in. Não quero dar um passo muito à frente”. Eu queria mostrar para mim mesmo que podia evoluir na remada sem perder o foco para fazer tow in. Eu não tinha nem vontade de assistir do penhasco ao pessoal surfando puxado por jet skis, ia pegar onda em outro pico – algum Outer Reef, ou Honolua Bay. Em meus quatro primeiros anos, me dediquei ali ao North Shore, em Waimea, Sunset. Mesmo morando em Maui, quando Waimea quebrava, eu sempre pegava um voo para surfar lá.


+ Comunidade do surf lamenta morte de Marcio Freire

 

Quando vocês pegaram Jaws na remada pela primeira vez?

O Danilo e o Yuri pegavam de tow in direto lá, mas o Danilo sabia que o lugar tinha um potencial para remada. Em março de 2007, quando viu que chegaria um swell grande e com boas condições de vento, a gente fez a nossa primeira investida em Peahi na remada. Nesse dia, pensei assim: “Não acredito, estou aqui em Maui há vários anos e eu, que sou goofy, só fui surfar essa esquerdona de Jaws agora”. Dali em diante abracei a causa. Decidi surfar todo swell que desse lá. Mas não é como se nós, brasileiros, tivéssemos sido os primeiros a surfar Jaws remando, porque o próprio Eraldo Gueiros surfou lá na remada em 2005, o Yuri e o Rodrigo Resende no mesmo ano e o Matt Kinoshita, um sul-africano, surfou em 2002. Só que não eram dias tão grandes. Teve uma ondulação em um Natal que eu entrei remando. O Danilo viu que seria suicídio e me buscou na hora, me levou para o canal e falou: “Porra, olha essas ondas aí primeiro. Você tem certeza que vai fazer isso? Esse mar não está para remar”. Esse dia eu desisti. Fui meio inconsequente, porque tinha me machucado em Jaws no dia de ação de graças, um mês antes. Depois desse período todo sem fazer nada, só esperando o joelho melhorar, fui para a água no primeiro dia achando que ia pegar uma bomba. Entrei no mar branco, fora de forma. O que valeu a pena na atitude daquele dia foi que meus amigos aqui de Maui falaram que iriam me puxar na onda de tow in. Peguei uma onda maneira, mas percebi que não estava pronto para aquilo mesmo.

“Jaws já havia sido surfada na remada antes [dos Mad Dogs]. Mas não daquele jeito [como fizeram os Mad Dogs]”, diz Shane Dorian no trailer acima, do filme Mad Dogs. 

O que você achou do tow in?

Já tinha feito umas poucas vezes com o Yuri. Nunca gostei muito, mas com o tow in você pega muito mais ondas que não daria na remada, o que é maneiro. Mas, para mim, o maior valor mesmo é pegar remando. Até hoje eu sinto que tenho que treinar tow in, solidificar o aprendizado. Ser puxado eu sei, mas dirigir o jet ski, fazer o resgate, botar meu parceiro na onda… Tenho que aprender e praticar isso. Depois de um workshop de segurança no mar, vi o quanto é importante saber dirigir um jet ski e fazer um resgate. Andei pensando muito nisso ultimamente.

Em que momento houve essa mudança de atitude, na qual as pessoas começaram realmente a enxergar a remada lá em Jaws?

Teve todo um processo. Eu acho que um dos momentos mais importantes foi de um vídeo meu que saiu no YouTube e que passou na noite da premiação do Billabong XXL. Naquele ano, 2008, muitas imagens minhas saíram no “Review of the Year”. Todos os big riders estavam ali e viram a minha sessão. Eu nem sabia que ia passar, meu amigo ligou e chamou para assistir na casa dele. Eu respondi que não, porque estava meio bolado, com uma pequena expectativa de que seria nomeado para a final, mas não tinha foto nenhuma, então não fui.

Marcio Freire não se sente injustiçado por não estar no time principal da competição: “Eu acho que poderia, sim, estar numa situação melhor do que alternate, mas esse é o primeiro ano do evento e ainda não demonstrei muito indo para a direita (…) Acho que deveria estar no evento,mas de repente não chegou o momento”.

Meu amigo me ligou de volta e disse: “Meu irmão, você apareceu aqui… Suas ondas todas passaram no ‘Review of the Year’ ”. Depois disso, pensei que as pessoas viriam, só que não apareceu ninguém. Isso de 2008 para 2009. No inverno seguinte, eu e o Danilo fizemos uma sessão em janeiro, que estourou no Surfline, com 80 mil visualizações em uma semana. Aquilo ali chamou mais atenção ainda. Depois, em fevereiro de 2011, chegaram Mark Healey, Greg Long, Sion Milosky, Nathan Fletcher, Ian Walsh etc. Os caras entraram com jet ski de segurança e patrulha de resgate. Em março de 2011, Shane Dorian veio pela primeira vez usando aquele colete inflável e pegou um tubo monstruoso – mas não saiu – que quase tirou o prêmio XXL da mão do Danilo.

“Acho que ninguém ainda pegou um tubo grande e perfeito em Jaws de backside. Eu espero que seja um de nós, brasileiros, que pegue pela primeira vez.”

Você se sente, de certa forma, pioneiro da remada em Jaws?

Cara, sem dúvida. Não que eu seja o pioneiro número um, mas eu fui uma pessoa importante na história da remada em Jaws. Não fui aquele pioneiro que surfou uma vez e não voltou mais. Na primeira vez em que entrei lá, pensei: “Eu moro aqui em Maui, não tenho dinheiro para viajar o mundo e pegar onda o ano todo”, então eu decidi focar em Jaws. Em diversos swells, entrei sem Yuri, sem Danilo.

 

Você acha que a sessão de outubro do ano passado levou o surf em Jaws para outro nível?

Sim, principalmente no primeiro dia. Foi clássico – liso, sem vento, as condições estavam perfeitas. Tinha umas séries de 20 pés, com ondas grossas. No finalzinho de tarde, que era a hora que o mar iria bombar mesmo, começaram a vir as ondas maiores. Foi, sem dúvida, o melhor swell para remada de todos estes tempos. Todo mundo pegou onda. Greg Long e Shane Dorian deram show, pegaram as melhores. Acho que ninguém tinha pegado tubos daqueles. Foi uma sessão histórica, pelas condições. Foram dois dias de muito, muito surf.


Faz muita diferença estar de backside na hora de pegar Jaws mais tubular?

É bem mais difícil, com certeza. Surfar de backside em onda grande é bem mais sinistro. Mas há uma condição. Acho que ninguém ainda pegou um tubo grande e perfeito em Jaws de backside. Eu espero que seja um de nós, brasileiros, que pegue pela primeira vez. Analisando as ondas do Greg Long e do Shane Dorian, vi que dá para pegar aqueles tubos de backside, mesmo sendo mais difícil. É sinistro, porque você bota sua vida num jogo, pode se machucar mesmo, ou tomar o pior caldo da vida. Eu vejo todo mundo no Facebook, a galera do Brasil, de Maui, e eu fico pensando se há uma pressão para pegar uma bomba quando entrar lá. Porque mesmo tendo feito parte desse pioneirismo, como uma das principais cabeças lá em Jaws, sei que ainda não demonstrei indo para a direita. Ainda não peguei uma bomba realmente cascuda, de ficar na boca do tubo. O maior mole que eu dei foi que, quando os caras começaram a chegar aqui e ir para a direita, eu ia só para a esquerda.

 

Marcio em ação para esquerda, no que sabe fazer melhor em Jaws.

Você se sente injustiçado de ser alternate do Red Bull Jaws?

Se fizer uma análise honesta, sei que era para eu estar ali naquela lista principal, pela minha história de vários anos. Toda a galera de Maui ficou indignada. Mas não me sinto injustiçado. Eu acho que poderia, sim, estar numa situação melhor do que alternate, mas esse é o primeiro ano do evento e ainda não demonstrei muito indo para a direita, ainda não deu para pegar uma onda como a do Danilo, que levou o “Ride of The Year” do XXL. Então acho que estou numa posição até que boa. Acho que deveria estar no evento, mas de repente não chegou o momento.

Você já sente segurança na direita?

Estou pegando segurança, acho que estou no caminho certo. Uma hora virá aquela onda em que eu vou mostrar meu valor, porque sei que tenho talento, que pego bem de backside, que tenho uma linha boa – até porque aprendi a pegar onda grande de backside. Mas tenho que lembrar que, quando os caras chegaram aqui indo para a direita, eu não fui. Agora é que comecei a focar nas direitas. E outra coisa, nunca viajei, eu não faço nada que nem os caras profissionais que passam o ano todo em busca das ondas grandes pelo globo. E não tenho patrocínio. Então talvez eu esteja até bem sendo alternate. Estou quase lá, estou perto. Só tenho que continuar pegando onda em Jaws para mostrar meu valor. Continuar me atirando, mas me atirando para a direita.

Você quer ficar em Maui focando em Jaws, ou realmente quer ir atrás de pegar mais ondas grandes, ir em busca de um patrocínio para começar a viajar?

Sem dúvidas quero começar a viajar e ser pago para surfar, fazer pelo menos umas quatro viagens por ano para pegar os principais swells. Ter condição de sair de Maui e ir para o norte da Califórnia sem tirar grana do meu bolso. Eu acho que também não tenho patrocínio porque nunca corri atrás. Eu vi tudo acontecer. Vi gente começar a botar meu nome na mídia. Vi que tinha chance, principalmente quando comecei a pegar Jaws sozinho, com o Danilo e com o Yuri, mas nunca corri atrás. Tenho uma vida maravilhosa em Maui. Mesmo tendo uma vida humilde, estou amarradão, não tenho do que reclamar. Mas por que não ganhar uma ajuda de custo?

 

Adeus, legend. Descanse em paz, Macio Freire.