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Guerreiros de São Conrado

 

Por Kevin Damasio | Fotos Giulio Paletta
HC 313, dezembro/15

 

Gabriel Oliveira olha fixamente para o crowdeado outside de São Conrado, na Zona Sul do Rio de Janeiro. O dia mal despertou e o carioca de 19 anos acaba de sair do mar, na primeira das quatro sessões que faria na manhã daquele domingo de outubro. “Se não fosse o surf, sei lá o que seria de mim”, diz, sem desviar o olhar das ondas. Desde os 6 anos, “Popó”, como é conhecido, encontra a paz neste beachbreak tubular, que fica em um dos bairros mais ricos da cidade. Foi uma forma que ele descobriu para se afastar da realidade de onde mora, 1,5 quilômetro daqui, na Rocinha, a maior favela da América Latina, que tem cerca de 200 mil habitantes. “A maioria dos meus amigos entrou para a vida errada”, continua Popó. “Eu nunca tive vontade de seguir esse caminho, mas, mesmo assim, o surf me salvou.”

Popó vive com os pais e três irmãos – que também surfam – em uma casa térrea, na Rua 2. Treze anos atrás, José Ricardo Ramos, o “Bocão” da Rocinha Surfe Escola, batia na porta da casa dele, para chamá-lo para pegar onda. Desde então, o garoto se apaixonou pelo esporte e tornou-se uma das principais revelações do surf dentro da comunidade. Hoje, ele tem apoios da Bergwind, uma surf shop da Gávea, e da Minha Autoria, uma assessoria de direitos musicais, mas Popó almeja mais. “Meu objetivo é ser um surfista profissional de verdade. Quero um patrocínio que me bote em campeonatos grandes fora do país, em praias melhores, porque eu preciso disso.”

Ao surfar em São Conrado, entretanto, Popó tem algo mais a se preocupar além de voltar de aéreos e pegar tubos. Ele está em pé sobre um deck instalado nas areias do canto esquerdo da praia. Dentro dessa estrutura, esgoto in natura corre rápido até alcançar o mar, a cerca de 50 metros do outside do Cantão, através de um buraco na rocha que sustenta a Avenida Niemeyer. “Até agora eu nunca fiquei doente, graças a Deus”, diz Popó, e em seguida aponta para um bodyboarder de meia-idade chamado Anderson Guerreiro, cujo filho pegou hepatite seis meses atrás, mas já está de volta ao lineup.

Quando o assunto é o Mundial no Rio de Janeiro, a onda de São Conrado enche os olhos dos atletas da elite, mas, temporada após temporada, a poluição impede que o pico seja palco alternativo da etapa. Por outro lado, nos últimos anos, os comentários dos surfistas profissionais sobre o Cantão fortaleceram o sonho de Popó se tornar competidor. “Uma galera fala que, se aprender a surfar aqui, você consegue dropar em qualquer lugar, porque é um pico mais difícil, uma onda bem oca e rápida.” Mas há quatro décadas, na época em que as primeiras ondulações eram surfadas em São Conrado, o mar se esculpia ainda melhor.

 

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Quando Carlos Augusto Muniz começou a surfar, nos anos 1970, o bairro de São Conrado era deserto. Não havia calçadão de concreto, apenas areia, barro e pedras. O Hotel Nacional, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, era a única construção que existia, mas não atrapalhava o vento terral que soprava constante. Cardumes navegavam pela água cristalina. “Foi uma época mágica, inesquecível”, define Carlos, que, aos 55 anos, ainda surfa no Cantão e planeja reativar sua confecção de roupas e fábrica de parafina. “Os gringos chegavam aqui e ficavam doidos. Falavam: ‘Caramba, mini-Pipeline!’ Depois da ressaca, a onda quebrava lá fora, grande, perfeita, lisinha.”

Filho de mãe do Maranhão e pai de Niterói, Carlos é da primeira geração de surfistas da Rocinha, ao lado do irmão Betinho Muniz. Ele nasceu e cresceu em uma Rocinha apinhada de barracos de madeira, cercados por estreitas ruas de terra batida. Tinha 10 anos nas primeiras vezes em que carregava um “toco velho” até a praia, onde se deparava com um ídolo nacional: “O Pepê Lopes tirava altos tubos em pé, era o dono do pico.” A constância e a qualidade da onda eram tamanhas que o carioca lapidou seu surf rapidamente, e logo integrava a equipe de Daniel Friedmann, outro personagem importante do surf brasileiro.

Na manhã de uma segunda-feira, Carlos está no amplo andar térreo de sua casa, no final da Rua 3, onde vive com a mulher e o filho bodyboarder. Ele revive, com o pensamento distante, os maiores mares que já pegou no Cantão, um deles em meados dos anos 1980. “O único dia que deu 15 pés”, no qual o fomentador do esporte Roberto Valério, recém-chegado do North Shore de Oahu, virou para ele no outside e exclamou: “Essa onda aqui é a que os brasileiros saem para surfar no Hawaii.” Apesar de considerar, naqueles tempos, a comunidade tranquila, Carlos acredita que o novo estilo de vida trouxe um lado positivo para o cotidiano dos surfistas da Rocinha.

José Ricardo "Bocão" seguido pelos alunos da Rocinha Surfe Escola.
José Ricardo “Bocão” seguido pelos alunos da Rocinha Surfe Escola.

“A gente passava o dia inteiro na praia”, conta Zé Mulher, 60 anos, outro surfista pioneiro. Ele parou de pegar onda aos 45 e hoje administra a rede de “tevê a gato” da comunidade. “A água era limpa, então a gente catava mariscos, cozinhava em uma lata e comia lá na praia mesmo.” Os pais paraibanos de Zé mudaram-se para o Rio de Janeiro e arrumaram seu espaço na Rocinha. Ele aprendeu a pegar onda aos 14 anos. Descolou um pranchão com Rico de Souza, e serrou-o para formar uma espécie de bodyboard – algo inédito ali até então –, com uma quilha de madeira improvisada, para cair “em uma das melhores ondas do Rio de Janeiro, na época”.

São Conrado abandonou os ares pacatos ao longo da década de 1980. Com o túnel construído para interligar o bairro à Barra da Tijuca, mares de prédios começaram a surgir entre a praia e a favela. O crescimento também aconteceu na Rocinha – que, em 1993, virou oficialmente um bairro –, onde as casas térreas ganharam andares conforme a população se expandia, ao mesmo tempo em que aumentava a influência do narcotráfico.

Nesse contexto, cresceu José Ricardo Ramos. Na adolescência, “Bocão” tirava uma grana como baloeiro oficial dos traficantes. Até que, aos 16 anos, resolveu trocar um fliperama que ganhara por duas pranchas. Depois, invadiu um estacionamento de ônibus para pegar duas cordinhas de sinal de parada, para improvisá-las como leash. Certo dia, soube que o mar estava grande. “Vamos lá, a gente é surfista”, falou para o irmão. Quase morreram afogados. “Meu irmão desistiu, mas eu continuei. Me desliguei dos balões e minha vida passou a ser só surf”, conta Bocão, hoje com 44.

Não demorou muito para que ele fundasse, em 1987, a Rocinha Surfe Escola, que sobrevive com doações e ajuda de voluntários. “Ninguém fazia algo pelo surf aqui na Rocinha, então decidi ensinar essa arte às crianças.” Com o tempo, ele percebeu que, após momentos de alegria na praia, os alunos voltavam para uma vida hostil na comunidade. Por isso, decidiu inserir outros cursos, como inglês, teatro e escalada, na escola que, hoje, fica em uma sala espaçosa anexa ao Complexo Esportivo da Rocinha, de frente para o morro.

Desde então, centenas de crianças da comunidade passaram pela Rocinha Surfe Escola. Aumentar o número de surfistas no Cantão de São Conrado ajudou a diminuir o número de jovens de bobeira pelas vielas do bairro. Só que, há duas décadas, os locais passaram a enfrentar outro problema, dessa vez no mar: a poluição.

 

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No canto esquerdo de São Conrado, uma tubulação extensa, presa à rocha, acompanha a Avenida Niemeyer. Os canos conduzem o esgoto in natura do bairro até a Estação do Leblon e segue para o Emissário Submarino de Ipanema. Lá, segundo o governo, os rejeitos são tratados antes de serem despejados em alto-mar. Mas os canos estão enferrujados, degradados pela maresia e claramente no fim da vida útil.

Eis que, em meados dos anos 1990, a tubulação começou a estourar, principalmente após chuvas fortes naquela região. Resultado: sobrecarregados, os canos cedem à pressão da água suja e aparece uma fissura; então, irrompe uma cachoeira de esgoto sem tratamento, que escorre para a água salgada. O cenário só termina quando reparos são feitos pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), do governo do Rio de Janeiro – mas um novo buraco sempre está prestes a surgir.

Neste ano, foi exatamente este problema que tirou de São Conrado a posição de palco alternativo para o WT Rio Pro. Fotos que circularam nas redes sociais mostravam uma cascata de água marrom encontrando-se com o mar. Eram imagens chocantes para quem é de fora, mas, infelizmente, familiares para os surfistas e bodyboarders do Cantão.

Desde setembro de 2013, a Cedae tem instalado uma nova tubulação, um pouco maior que a antiga, com 500 milímetros de diâmetro e 2100 metros de extensão. Essa substituição dos canos é parte do Sena Limpa, um programa do governo com orçamento de R$ 150 milhões para despoluir São Conrado e outras cinco praias do Rio de Janeiro – compromisso assumido com o Comitê Olímpico Internacional. Mas a obra, que deveria ficar pronta no final de 2014, teve o prazo adiado para o primeiro trimestre de 2016. Esse, entretanto, não é o maior problema ambiental que a praia vive.

Em tese, um rio pluvial, mas na verdade um esgoto a céu aberto que corta a Rocinha e São Conrado e é despejado no mar de São Conrado.
Em tese, um rio pluvial, mas na verdade um esgoto a céu aberto que corta a Rocinha e São Conrado e é despejado no mar de São Conrado.

O que tira o sono – e prejudica a saúde – dos locais do Cantão é a água suja que tem origem na Rocinha e é despejada a todo instante no mar. Isso ocorre desde 2001, quando o então governador Anthony Garotinho, no fervor das eleições estaduais, decidiu resolver o problema do esgoto que terminava na praia, entre os hotéis Nacional e o antigo Intercontinental, hoje chamado Royal Tulip. A cena era desagradável, mas, pelo menos, os resíduos sólidos ficavam retidos na areia, ou seja, não paravam no mar.

A ideia milionária do governo Garotinho consistiu em remover a língua-negra da frente dos hotéis de luxo e construir um deck que se estende pelo canto esquerdo, dentro do qual passa uma galeria – teoricamente pluvial, mas cheia de esgoto e lixo. A missão seguinte foi perfurar a rocha que sustenta a Avenida Niemeyer, para escoar a água. A primeira tentativa não deu certo, por isso fizeram outro buraco alguns metros à frente. Desde então, um líquido denso corre pela vala, sem trégua, durante a maré seca. Na cheia, as ondas quebram constantemente e diminuem o fluxo, deixando um cheiro fortemente fétido na região do deck.

O esgoto vem da Rocinha e é parcialmente tratado em uma unidade da Rio-Águas, fundação da prefeitura. Depois, é descarregado no rio da Avenida Aquarela do Brasil, e, ao longo do caminho, é encorpado por várias ligações clandestinas, algumas visíveis, outras ocultas, muitas oriundas de prédios de alto padrão de São Conrado. Funcionários da Cedae ainda recolhem manualmente parte dos resíduos sólidos, mas muito lixo segue o fluxo até as águas do Cantão. Com isso, garis da Companhia de Limpeza Urbana (Comlurb) passam suas manhãs recolhendo pilhas de lixo pela areia da praia – só que nem todo resíduo sai do mar.

O Instituto Estadual do Ambiente (Inea) tem medido, a cada três ou quatro dias, os coliformes fecais nas águas do Cantão, e as amostras sugerem que o sistema de tratamento é ineficaz. Nos últimos nove anos, em somente 10 dias, a água foi considerada própria para banho. De 2003 a 2007, a classificação foi “regular” ou “ruim”. Já de 2008 até hoje, o veredicto é um só: “muito ruim”.

Não bastasse a precária qualidade da água, os dois buracos na rocha prejudicam a formação da onda. Antes, em ondulações de leste, ela batia nas pedras e formava um triângulo, que rodava em uma esquerda extensa. Hoje, as fendas na pedra absorvem consideravelmente a energia do swell. Apesar disso, o beachbreak continua de nível internacional.

 

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“O problema da Rocinha é, em parte, a falta de conscientização do povo”, analisa Marcello Farias, 39 anos, que nasceu e cresceu na comunidade. “Ao mesmo tempo, os governantes são os responsáveis por nosso saneamento básico. Pegar o esgoto e jogar no mar é mole e irresponsável.”

Marcello começou a pegar onda no Cantão em 1986, quando a água ainda era cristalina. Em 30 de agosto de 2012, ele compartilhou no Facebook uma foto que mostra uma poça de esgoto no canto esquerdo da praia. O alcance da publicação e a revolta dos amigos do Cantão foi tão grande que, no final daquele ano, Marcello e outros bodyboarders locais fundaram o Salvemos São Conrado, o principal movimento na luta pela despoluição da praia. Desde então, Marcello acorda bem cedo todos os dias, para fazer reports nas mídias sociais sobre a qualidade da água e das ondas de seu home break.

O músico e surfista Gabriel Contino, “O Pensador”, apadrinhou o grupo, ao qual deu bastante exposição desde sua fundação. O carioca de 41 anos, que desde o início luta para salvar a praia do bairro onde mora, sentiu na pele as consequências da poluição. Ele começou a surfar no Cantão aos 12 anos e, aos 14, no final dos anos 1980, contraiu hepatite naquelas águas.

Enquanto cobram diretamente ações do poder público, o Salvemos organiza mutirões de coleta de lixo em São Conrado. O mais recente aconteceu na manhã de 8 de novembro. Com ajuda dos moradores do bairro e da Rocinha e de funcionários da Comlurb, recolheram 5 toneladas de lixo. O big rider Carlos Burle também estava presente, e compartilhou no Facebook um vídeo assistido por 66 mil pessoas.

Durante o Rio Pro deste ano, o Salvemos circulou com uma petição que recolheu 4 mil assinaturas, entre elas a do havaiano John John Florence e as dos concorrentes ao título mundial de 2015, Filipe Toledo, Adriano de Souza e Gabriel Medina. No final de novembro, o grupo lançou na internet a campanha “Água Limpa é a Onda”, que chama atenção aos problemas ambientais em São Conrado. Com apoio de outras ONGs, eles promovem uma petição online, que visa alcançar mais gente e aumentar a pressão contra o governo.

No Largo do Boiadeiro, um dos pontos comerciais da Rocinha, muitos moradores aproveitam a noite de domingo. Um largo canal, popularmente conhecido como Valão, estende-se pela rua e se perde pela comunidade. “Isso era para ser um rio pluvial, mas, por ser aberto, as pessoas o usam como lixeira”, explica Marcello, que vivia nesta região antes de se mudar para a Travessa Oliveira, na base da Rocinha. “Toda vez que chove, o esgoto transborda, e o lixo segue rápido pelo canal, até a unidade de tratamento.” Segundo ele, o prefeito Eduardo Paes garantiu para o Salvemos que, em tempo seco, São Conrado estará livre do esgoto na praia, porque a água suja pegará a tubulação que passa pelo rio da Avenida Aquarela do Brasil e segue para o Emissário Submarino de Ipanema. No entanto, ele ressaltou também que, em dias chuvosos, não tem o que fazer, já que se trata de um dreno de água pluvial e toda água da chuva vai parar no mar.

Vista do Lajão, uma região aberta no meio da Rocinha envolvida por paredões e casas, algumas perigosamente construídas.
Vista do Lajão, uma região aberta no meio da Rocinha envolvida por paredões e casas, algumas perigosamente construídas.

Enquanto volta para seu apartamento, Marcello encontra um amigo antigo. Claudio “Pamonha” tem 47 anos e surfa em São Conrado desde os 8. O que o esporte significa para ele? “Essa pergunta até me arrepia. O surf é isso. É tudo na minha vida”, responde Pamonha, que atualmente trabalha nas obras da estação de metrô São Conrado, do lado da Rocinha. Em seguida, ele recorda sobre a época em que as tubulações na Avenida Niemeyer começaram a estourar, e conclui: “Olhe à nossa volta e adivinhe o que falta aqui dentro, o principal. Saneamento básico – não precisamos de mais nada.”

Na cinzenta manhã seguinte, Pamonha e Marcello caminham até o Lajão, a parte mais crítica quando o assunto é a poluição do suposto rio pluvial. Para chegar lá, é preciso subir por vielas mal-iluminadas que exalam um odor de umidade, para então descer uma escadaria estreita e escorregadia, formada por degraus miúdos.

Uma grande e vertical rocha se ergue no meio do Lajão. No topo, algumas casas perigosamente instaladas. Uma cachoeira de lixo – de sacolas plásticas a sofá e geladeira – desce até a base da pedra, por onde passa o Valão que corta a Rocinha. Testemunhar essa realidade deixa claro como é insuficiente a coleta de lixo atual na comunidade – pelas vielas, não há cestos de lixo, e os garis, apesar de circularem boa parte do dia, limitam-se às áreas de fácil acesso. “Descaso total do governo, mas penso também que depende muito da ajuda dos moradores para resolver esse problema”, observa Diogo Rodrigues, 28 anos, que mora na Rocinha desde que nasceu. “Se ali tivesse uma quadra ou um praça, isso impediria que jogassem lixo. Mas a gente não pode mais aceitar viver assim. Se os governantes não estão nem aí para nós, cada um daqui de dentro tem que fazer a sua parte, para melhorar a situação.”

 

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O surfista Carlos Belo, mais conhecido como “Mister M”, mora na Rua 2, perto do Lajão. Vive em uma casa de três andares, com o pai, a avó paterna, três tios e cinco sobrinhos. Em 2012, ele fundou a Associação de Surf da Rocinha (ASR), na qual trabalha como coordenador e instrutor de surf. “Nosso objetivo principal é formar cidadãos por meio do esporte”, diz o carioca de 22 anos. “Resgatar o jovem da comunidade, trazê-lo para a praia e incentivá-lo a buscar outros caminhos.”

Carlos sabe bem qual é a importância de haver suporte para os moradores da Rocinha. “A rotina de um garoto na comunidade é ficar lá no morro. Aí vem um cara armado para conversar. Daqui a pouco, se não for mente, está do lado dele, segurando uma arma. Você começa fazendo bondinho, pra comprar uma parada pro cara e ganhar uma merreca. Daqui a pouco tá envolvido. Depois que entra, pra sair fica difícil.” Enquanto crescia, ele viu vários parentes mergulhados no mundo do crime. Em vez de seguir o mesmo caminho, entendeu que essa não era a maneira certa de viver. “Graças a Deus sempre tive opinião própria e nunca quis me envolver com o tráfico de drogas. O surf teve um papel importante nessa decisão.”

Aos 10 anos, Carlos pegou gosto pelas ondas, a princípio incentivado por José Ricardo “Bocão”. Em 2006, foi um dos principais personagens no documentário Surfing Favela. De lá para cá, não parou mais. O garoto estudava de manhã, depois pegava uma prancha na Rocinha Surfe Escola – que, na época, ficava em uma guardaria atrás de um ferro-velho, perto do morro – e passava o dia inteiro na praia. “Só chegava em casa à noite, exausto. Comia e dormia. Então eu não tinha tempo para ficar de bobeira.”

Quando tinha 19, Marcio Pereira, um amigo mais velho, veio com a ideia sobre criar a ASR. De pronto, Carlos percebeu a oportunidade de ensinar para outros jovens da comunidade tudo que aprendeu com o surf. O trabalho na associação lhe deu motivação para retomar os estudos, para terminar os ensinos fundamental e médio e, no futuro, fazer faculdades de Educação Física e Marketing Esportivo.

Entre as ações da ASR, o surf caminha lado a lado com educação e meio ambiente. No projeto chamado Cantão em Ação, eles promovem coletas de lixo pela praia e palestras com gestores ambientais. Carlos diz que praticamente todo garoto da comunidade já veio à praia pelo menos uma vez, para surfar, fazer bodyboard ou pegar onda de peito. “Tentamos educar essas crianças porque elas são nosso futuro e, além do mais, conseguem mudar a cabeça dos adultos”, explica. “Com isso, quando elas virem os pais jogando lixo na rua, vão falar: ‘Olha, o professor da praia falou que, se você fizer isso, o lixo vai parar lá dentro do mar, um animal pode comer e morrer, e também vai poluir nosso próprio ambiente de lazer.”

As crianças da Rocinha também têm outra pessoa para se inspirar dentro da comunidade. David Barbosa é um bodyboarder de 18 anos que já possui respeito internacional, com boas atuações nesta temporada nos circuitos pro junior e profissional, nas etapas de Itacoatiara, Chile e Portugal. Em uma segunda-feira nublada, ele se arrumava para embarcar para Puerto Rico, onde, dias depois, garantiria sua vaga na elite mundial de 2016, com direito ao título de “Revelação do Ano”.

David pega onda no Cantão há uma década, tanto de bodyboard como de pranchinha. Apesar da pouca idade, já entende a responsabilidade que carrega dentro da Rocinha. “Tenho que manter esse ritmo, principalmente pra galera mais nova ver que isso pode ser mais que um esporte”, explica. “Por sermos da favela, somos muito estigmatizados pela violência, pelo tráfico, então poucas oportunidades surgem pra gente. No momento em que apareceu uma para mim, eu agarrei, e estou aí até hoje, tentando ganhar a vida como atleta.”

O jovem bodyboarder vive com os avós em uma casa próxima ao Lajão. Ele pensa que a indiferença dos governantes é a principal responsável pelo lixo jogado o tempo todo no Valão. Mesmo assim, também acredita que a solução pode vir de dentro da comunidade. David ressalta que surfistas e bodyboarders, vira e mexe, se juntam para andar pela praia, distribuindo sacolas de plástico para quem estiver por lá, para que não deixem o lixo para trás. “Mas também depende da população da Rocinha”, observa. “Nós, surfistas, não conseguimos fazer as coisas sozinhos. Todo mundo precisa se unir para melhorar pouco a pouco. Nem sempre dá certo, mas não custa nada tentar.”

 

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