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Descubra a história das surfistas de Maui que inspirou o filme Blue Crush

Swell da Vida: confira a história de 1998 das surfistas de Maui que inspirou o filme Blue Crush e toda uma geração de mulheres surfistas no Havaí. 

 

texto Susan Orlean / Go Outside

As surfistas de Maui adoram o cabelo umas das outras. É um cabelo incrível, comprido e descolorido pelo sol, caindo sobre os ombros como água, ou em rabiscos, como algas marinhas, ou em ondas.

Elas estão sempre brincando – fazendo rabos de cavalo, ou torcendo e prendendo com pauzinhos ou lápis, ou dividindo com cuidado e depois tecendo em tranças amarelas. Não faz muito tempo, eu estava na praia de Maui vendo as meninas surfando, e quando elas saíram da água, sentaram-se em fila de frente para o mar, cada uma pegando o cabelo da garota na frente, penteando com os dedos, trançando-os simultaneamente.

As surfistas de Maui curtem o tipo de cabelo que eu temia ter quando tinha 14 anos: um cabelo selvagem, emaranhado e claro, grande e duro como um tapete, o cabelo menos liso, brilhante e normal que se possa imaginar. Uma surfista de Maui chamada Gloria Madden tem esse tipo de cabelo – grossos cachos vermelhos listrados de laranja e prata do sol, daqueles que se você não fosse bonita e destemida consideraria um castigo, e tentaria alisar ou enfiar embaixo de um chapéu.

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Certa tarde, eu estava levando duas garotas para a Blockbuster Video em Kahului. Era um dia antes de uma competição de surf em Maui e as meninas iam passar a noite na casa de praia do treinador, para estarem prontas para a competição ao amanhecer. Nas noites de competição, elas preenchem seu tempo comendo muito e assistindo horas de vídeos de surf, mas nessa ocasião em particular decidiram que precisavam alugar um filme também, caso tivessem 10 ou 20 segundos de tempo ocioso.

No caminho para a locadora, me disseram que admiravam meu carro alugado e que achavam carros alugados o máximo, e que queriam ter um. Meu carro, que até então eu odiava, de repente ganhou um brilho. Perguntei o que mais elas teriam se pudessem ter qualquer coisa no mundo. Pensaram por um momento e então a garota no banco de trás disse: “Uma scooter e milhares de roupas novas. Tipo, milhares de biquínis e milhares de shorts de surf.”

“Eu gostaria de um relógio Baby-G e chinelos novos, e um daqueles tops esportivos legais como o que a Iris acabou de ganhar”, disse a outra. Ela estava no banco do carona, descalça, empanada de areia e enrolando o cabelo num coque. O dia meio nublado, com uma luz estranha que fazia com que as montanhas verdes do Havaí ficassem pretas, e o mar com cor de zinco. Na verdade, também era dia de escola, mas estas eram as garotas mais sortudas do mundo porque estudam em casa e podem surfar quando bem entendem.

A menina parou de mexer no cabelo. “Ah, e também ia querer um cabelo doido como o da Gloria, com certeza”, declarou. A garota do banco de trás inclinou-se para frente e concordou: “Sim, cabelo como o da Gloria”.

Muitas garotas surfistas de Maui vivem em Hana, cidadezinha no final da Hana Highway, trecho desgastado de uma estrada sinuosa que vem de Kahului, principal cidade de Maui, passando por várias ravinas e cachoeiras de queda livre enquanto contorna a cratera de Haleakala. Hana é longe e parece ainda mais longe. Fica a apenas 90 quilômetros de Kahului, mas o motorista mais louco do mundo não conseguiria fazer a viagem em menos de duas horas.

Não há muito o que fazer em Hana, exceto passear pelos bosques de pinheiros e castanheiras ou surfar. Não há shopping, nem Starbucks, nem loja de sapatos, nem loja da Hello Kitty, nem cinema – apenas árvores, arbustos, flores e ondas que quebram na praia de fundo rochoso. Antes das mulheres serem encorajadas a surfar, as garotas em Hana deviam sofrer de um profundo tédio. Para a sorte delas, o surf mudou. Nos anos 60, Joyce Hoffman tornou-se uma das primeiras estrelas femininas do surf, seguida por Rell Sunn e Jericho Poppler nos anos 70, Frieda Zamba nos anos 80, Lisa Andersen nos anos 90 e milhares de meninas e mulheres seguiram o exemplo. Na verdade, esta geração de meninas nunca viveu um período qualquer sem que alguma representante feminina não estivesse surfando e vencendo.

Theresa McGregor foi uma das melhores surfistas de Hana, Maui. Foto: Chris M. Rogers.

As meninas de Hana dominam o surf de Maui nos dias de hoje. A teoria diz que elas crescem surfando essas ondas, então estariam prontas para qualquer coisa. Além disso, estão expostas a poucas distrações e podem praticamente viver na água. A Gloria de cabelo maluco não é uma das garotas Hana. Passou a infância perto da cidade, em Haiku, onde havia distúrbios raciais no ensino médio – samoanos batendo em filipinos, havaianos batendo em anglo-saxões – e a poderosa atração do Shopping Kaahumanu Center. Por outro lado, as locais podem ter uma adolescência de surf quase pura.

Uma tarde fui a Hana conhecer Theresa McGregor, uma das melhores surfistas de Maui.  Perdi a hora do nosso encontro e estava desesperada porque Theresa morava com a mãe, dois irmãos e uma irmã em um barraco de um cômodo sem telefone e não fazia ideia de como iria encontrá-la. Há uma loja em Hana, surpreendentemente chamada General Store [algo como Armazém Geral], onde se pode comprar leite, molho de churrasco e salgadinhos de lula desidratada. Assim que percebi que tinha perdido Theresa, entrei na loja porque não havia outro lugar para ir.

A moça do caixa parecia gentil, então perguntei se por algum acaso ela conhecia uma surfista chamada Theresa McGregor. Eu ainda não tinha me dado conta de quão pequena era a cidade. “Ela estava aqui há um minuto”, disse a caixa. “Geralmente, por volta dessa hora do dia, está a caminho da praia para surfar.” Ela ligou para o vizinho dos McGregors – sabia o número de cor – para descobrir para qual praia Theresa tinha ido. Uma cliente ouviu o caixa falando comigo, se aproximou e acrescentou que tinha acabado de ver Theresa em Koki Beach e que a mãe de Theresa, Angie, estava lá também, e que algumas das outras surfistas de Hana provavelmente estariam lá em breve, mas eles tinham um projeto do Dia de História para entregar no final da semana, então talvez ainda não tivessem terminado a tarefa.

Eu desci para Koki. Angie McGregor realmente estava lá, e apontou Theresa balançando nas ondas de Maui. Havia cerca de uma dúzia de outras pessoas na água, a maioria crianças. Alguns outros pais surfistas estavam no gramado com Angie – pais com peitos peludos e rabos de cavalo e sandálias de couro, e mães usando bermudas e biquínis, fazendo um lanche de cenoura com casca, biscoitos integrais e Pringles – e mesmo enquanto conversavam, os olhos seguiam fixos no oceano, observando seus filhos, que pareciam estar a mil milhas de distância, pegando ondas rápidas e confusas.

Depois de alguns minutos, Theresa apareceu em terra firme. Ela era uma garota grande, de ombros largos, 16 anos, rosto feroz, um pouco felina e muito bonita. A água escorria dela, do shorts, de seus longos cabelos, que estavam grudados nos ombros. A água fazia com que parecesse tinta, mas dava para ver que, a partir de dois centímetros abaixo do couro cabeludo, a cor de seu cabelo tinha sido totalmente lavada pelo sol.

Blue Crush | Trailer do filme inspirado nessa história das surfistas de Maui

 

Em Haiku, onde os McGregors viveram até quatro anos atrás, Theresa tinha sido uma superestrela jogadora de futebol, mas Hana era pequena demais para dar conta de uma liga de futebol, então, depois de se mudarem, Theresa primeiro se dedicou a se tornar uma espécie de delinquente juvenil e depois largou essa vida para surfar. Seu primeiro triunfo veio logo em seguida, em 1996, quando venceu a divisão feminina aberta na competição Maui Hana Mango. Ela era uma das poucas surfistas amadoras que tinham a sorte de ter patrocinadores. Ganhou pranchas grátis de Matt Kinoshita, seu treinador, dono e designer das pranchas Kazuma; roupas da Honolua Surf Company; leashes e cases de prancha da Dakine Hawaii; skates da Flexdex. Os meninos surfistas ganhavam muito mais coisas.

Mesmo sendo pouco, o patrocínio fez a diferença entre surfar e não surfar. Por mais rica que parecesse, entre as buganvílias, as colinas verdes e os maracujás de Hana, quase não havia dinheiro. Nos últimos anos, a economia havaiana tinha despencado terrivelmente, e Hana nunca teve uma economia muito forte. Em certa ocasião, mães surfistas da cidade realizaram uma venda de bolos para arrecadar fundos e enviar Theresa e dois meninos de Hana para a competição nacional de surf na Califórnia.

Theresa disse que terminara de surfar naquele dia. “As ondas estão uma droga agora”, disse ela a Angie. “Um lixo real.” Elas conversaram por um momento e concordaram que Theresa deveria sair pela manhã e passar o próximo dia ou dois com Matt em sua casa em Haiku, para se preparar para o campeonato da Associação de Surf Amador do Havaí naquele fim de semana na praia de Hookipa, perto de Kahului.

A logística virou assunto. Um dos maiores enigmas enfrentados por uma garota surfista, especialmente uma garota surfista na distante Hana, é como ir do ponto A ao ponto B, principalmente quando carrega uma grande prancha de surf. A permissão para dirigir no Havaí é a partir dos 15 anos, mas a idade provável para ter um carro, a menos que você seja rico, é muito mais do que isso e minha impressão era de que quase todos os surfistas que conheci em Maui viviam em uma casa de pais solteiros, com ou sem carro, na qual motoristas e veículos eram raros). Eu estava planejando dar a volta no vulcão de qualquer maneira para ver a competição, então disse que levaria Theresa e outra surfista, Lilia Boerner, comigo, e outra pessoa iria de Hana a Haiku com as pranchas.

Naquela noite, encontrei Theresa, Angie, Lilia e alguns de seus amigos surfistas em um restaurante de comida para viagem na cidade, e depois fui para o quarto que aluguei no Joe’s Rooming House. Fiquei acordada até tarde lendo sobre como os missionários cristãos proibiram o surfe quando chegaram ao Havaí no final de 1800, e de como em 1908 o desejo pelo esporte superou a censura espiritual e o surf voltou. Cochilei com o livro de história no colo e a televisão do hotel sintonizada em um anúncio da Sprint mostrando um havaiano e sua neta correndo de mãos dadas em direção às ondas.

Maui
Monica (esq.) com Lilia (centro), Matt, Elise e amigos em um raro momento de repouso em Maui. Foto: Chris M. Rogers.

NA MANHÃ SEGUINTE conheci Lilia e Theresa em Koki Beach às oito horas, depois de uma curta sessão. Quando cheguei, elas estavam debaixo de uma árvore-da-chuva ao lado de uma pilha de mochilas. As duas estavam encharcadas, e percebi então que um surfista está sempre em uma de duas condições: molhado ou prestes a ficar molhado. Além disso, quase sempre vestem algo que pode ir diretamente para a água: tops, bermudas, biquíni, jeans.

Lilia tinha 12 anos e pouco, com um rosto doce, olhos castanhos redondos e penugem dourada em seus braços e pernas. Ela era mais jovem e muito menor do que Theresa, menos atlética, mas muito forte. Como Theresa, ela era educada em casa, então podia surfar quando quisesse. Até agora Lilia era patrocinada por uma loja de surf e pelas pranchas Kazuma de Matt Kinoshita. Ela tinha um irmão gêmeo que também era um surfista habilidoso, mas havia um ano os dois encontraram o avô logo depois de sofrer um acidente fatal de trator e o menino não competiu desde então. Sua família possuía uma grande e próspera fazenda de frutas orgânicas em Hana. Uma vez perguntei a Lilia se era divertido viver numa fazenda. “Não”, disse imediatamente. “Muita fruta.”

Pegamos uma estrada secundária de Hana a Haiku, como se a estrada principal não fosse ruim o suficiente. Esta contornava a parte de trás do vulcão, através de serras amarelas. As garotas falaram sobre surf e sobre a mãe de uma surfista, que elas descreveram como uma “vaca completa”, e o pai de um surfista, que segundo Theresa “era uma aberração e meia porque tomava muito ácido e era doido”. Fiquei pensando se elas teriam outros hobbies além de surfar. Lilia disse que costumava dançar hula.

“É legal?”

“Não se você tem uma bruxa como professora, como eu tive,” ela disse. “Só gritava e xingava a gente o tempo todo. Eu nunca vou fazer hula novamente. Surfar é mais legal, de qualquer jeito.”

“Você é o cara, Lilia,” Theresa disse sarcasticamente. “Ei, falta muito pro Café da Vovó? Estou morrendo de fome.”

Surfistas estão sempre morrendo de fome. Elas tomaram café da manhã antes de surfar; agora era apenas uma ou duas horas depois, e estavam com fome novamente. Gostam de cereais matinais, frango teriyaki, batatas fritas, arroz, sorvete, doces e uma especialidade havaiana chamada Spam musubi, que é uma bola de arroz coberta com uma fatia de apresuntado, envolto em alga marinha. Se elas sofriam da obsessão típica de uma adolescente com seu peso, não falavam sobre isso e não agiam assim. Eram tão ativas que tudo o que comiam provavelmente derretia rapidamente.

“Adoramos ficar no Matt”, disse Lilia, “porque ele sempre nos leva ao Taco Bell.” Contornamos uma longa colina e paramos no Café da Vovó. Lilia pediu um Garden Burger e Theresa comeu um sanduíche I’m Hungry, com peru, presunto e abacate. Eram 10h30. Enquanto comia, Lilia disse: “Sabe, vai ter surf nas Olimpíadas, seja no ano 2000 ou 2004, com certeza”.

“To muito dentro, cara”, disse Theresa. “Se eu for bem nos nacionais este ano, daí…” Ela engoliu o resto do sanduíche. Ela me disse que eventualmente queria ser motorista de ambulância, e eu podia imaginá-la fazendo isso, andando em terra firme nas mesmas ondas de adrenalina que ela surfa agora em Maui.

Passei muito tempo tentando imaginar onde essas garotas poderiam estar em dez anos. É pouco provável que qualquer uma das duas se torne surfista profissional. Embora as mulheres tenham conquistado um lugar no surf profissional, o número que realmente chega lá ainda é pequeno, e embora as garotas de Hana dominem o surf de Maui, as ondas macias da ilha e as competições descontraídas produziram muito poucos surfistas de nível mundial nos últimos anos.

Não parece importar para elas. Em vários momentos culturais, o surf apareceu como a personificação de tudo que é legal, selvagem e livre; este é um daqueles momentos. Ser uma surfista é ainda mais legal, selvagem e moderno do que ser um surfista: o surf sempre foi um esporte tão masculino que, para um homem, não desafia nenhuma regra da educação que tiveram, enquanto ser uma garota surfista é ser tudo o que o surf representa, mais a cobrança extra de ser uma garota no domínio de caras durões. Ser uma surfista em um lugar legal como o Havaí talvez seja o apogeu de tudo que é legal e selvagem e moderno e sexy e desafiador. As garotas de Hana, Maui,  portanto, têm sua existência nesse ponto mais alto – o ponto em que ser corajosa, bronzeada, capaz e independente, e ter um motivo real para usar todas aquelas roupas inspiradas no surf que outras garotas usam por pura moda, é o que importa realmente.

No entanto, é apenas um momento. Deve ser difícil imaginar um futuro padrão e diferente de um calendário lunar para levar a vida se você cresceu em uma pequena cidade no Havaí, surfando dia e noite, passando metade do tempo na areia, pensando em point breaks e tubos e cutbacks. Ou talvez elas nem pensem nisso. Talvez essas garotas ainda sejam jovens o suficiente e apaixonadas o suficiente pela vida, para não terem nenhuma expectativa especial sobre o futuro, nenhum pensamento desconfortável de que o tipo de vida que estão levando agora pode, um dia, ter que acabar.

 

Maui
As garotas à espera da próxima queda no mar de Hana, Maui. Foto: Chris M. Rogers.

MATT KINOSHITA VIVE EM UMA FAZENDA fresca e ensolarada no topo de uma colina em Haiku. A casa tem uma grande sala de estar com um sofá dobrável e muito espaço. Muitas vezes, uma ou duas ou dez surfistas acampam em sua sala porque estão em uma competição que começa às sete da manhã seguinte, ou porque estão praticando intensamente e é muito longe para ir e voltar de Hana, ou porque querem fuçar as pilhas de revistas de surf de Matt e a biblioteca de vídeos de surf de Matt e as pilhas de catálogos de roupas de esportes aquáticos de Matt. Muitas das surfistas que conheci não moravam com seus pais, ou em alguns casos nem tinham relacionamentos com seus pais. Então às vezes, talvez, ficavam na casa do Matt só porque tinham vontade de estar perto da figura de um homem mais velho.

Matt tinha vinte e tantos anos. Como surfista, ele era talentoso o suficiente para competir no World Tour, mas decidiu ignorar o fato em favor de uma vida real com sua esposa, Annie, e seu filho bebê, Chaz. Agora ele era um dos melhores shapers de Maui, treinador e diretor de uma construtora com seu pai. Ele patrocinava alguns surfistas adultos e ainda competia, mas sua preocupação era com as crianças. A revista Surfing certa vez perguntou a ele o que mais gostava em ser um shaper de pranchas de surf, e ele respondeu: “Sempre estar perto dos grommets empolgados!” . Ele treinou uma equipe de meninos, bem como uma equipe de meninas. O time feminino foi uma inovação. Não havia nenhum time de surf feminino em Maui antes de Matt fundar o dele, há três anos. Ele não ganhava dinheiro com isso – na verdade lhe custava muitos milhares de dólares por ano – mas ele adorava. Achava as meninas incríveis. As meninas também achavam ele incrível.

A atitude de Matt se parecia muito com os homens daquelas velhas estampas de surf havaianas – pequeno, peito largo, corpulento. Ele tinha feições perfeitas e cabelos brilhantes como os de uma lontra. Quando ouvia as garotas, mantinha a cabeça inclinada, as sobrancelhas levemente levantadas, e um sorriso permanente. Não exatamente como um irmão… era mais como o professor mais fofo e legal da escola, que podia dizer coisas sérias e urgentes sem magoar ninguém. Quando entrei na garagem com as meninas, Matt estava no pátio carregando pranchas de surfe em uma picape. “E aí, galera” cumprimentou Lilia e Theresa. “Onde estão suas pranchas?”

“Alguém vai trazer hoje à noite de Hana”, disse Theresa. E, batendo os pés, pediu “Matt, vamos lá, vamos surfar já.”

“Oi, Lilia, como está está campeã?” Disse Matt, apertando os ombros da menina. “Seu pai vai surfar na competição neste fim de semana?”

Lilia deu de ombros e olhou para ele solenemente. “Vamos, Matt”, ela respondeu. “Vamos surfar já.”

Eles desceram para Hookipa, num pico chamado Pavilles, porque fica em frente aos pavilhões de concreto para piquenique na praia. Hookipa não é muito parecida com Hana. Os pavilhões são usados por alcoólatras. Há Windsurfers por toda parte. Os carros estacionam até a beira da areia. Fica logo abaixo da cabeceira da pista do Aeroporto de Kahului. A praia ao lado é mais bonita; a água lá é chamada de Girlie Bowls, porque as ondas são cortadas pelo recife e são mais manejáveis, supostamente melhores para as garotas.

Ser uma surfista em um lugar legal como o Havaí talvez seja o apogeu de tudo que é legal e selvagem e moderno e sexy e desafiador.

Alguns anos atrás, as garotas de Hana conheceram sua heroína Lisa Andersen quando passava por Maui. As meninas me contaram que Lisa era muito tímida e mal falava com elas, exceto para sugerir que fossem surfar em Girlie Bowls. Acharam que soou levemente ofensivo, mas não tinham certeza do que ela estava insinuando e não pensaram nisso. Quase não falavam dela. Ela era como uma força inatingível.

Passamos pelos pavilhões. “Os homens nesta praia são tão sexistas,” disse Lilia, olhando para um cara balançando uma caixa de som. “É bem diferente de Hana. Aqui eles sempre olham e dizem: ‘Oh, lá vêm as meninas,’ e ‘Ah, olá, senhoras,’ e outras coisas. Para nós, garotas brancas haoles, acho que eles querem mesmo ser nojentos. Bem nojentos.”

“Ei, as ondas estão iradas”, disse Theresa. Ela viu um cara dropando e depois virando de volta. Assobiou e disse: “Uau, olha aquele snap irado! Esse foi o snap mais incrível que eu vi em anos! Vocês viram?”

Elas desapareceram instantaneamente. Um momento depois, duas cabeças loiras apareceram nas ondas escuras, subiram nas pranchas e foram embora.

Jantar no Matt’s: toneladas de churrasco de frango, pães de alho, mais pães de alho. Annie Kinoshita tirou quatro potes de sorvete do freezer, alinhou no balcão da cozinha e observou enquanto desapareciam. Annie era loura, esguia e inabalável. Ela era uma surfista “com o cabelo até a bunda”, de acordo com Theresa. Agora ela estava ocupada com o bebê e supervisionando a política de portas abertas que ela e Matt mantinham em sua casa.

Naquela noite, outra surfista, Elise Garrigue, e um menino de 14 anos, Cheyne Magnusson, vieram jantar e também iam dormir. Cheyne era um dos melhores jovens surfistas da ilha. Seu pai, Tony, era skatista profissional. Cheyne era o único garoto que regularmente dormia na casa de Matt e Annie. Ele e as meninas tinham o ideal platônico de um relacionamento. “Cara, essas mocinhas são virgens,” Annie disse para mim, rindo. “Elas não querem nada com esse tipo de maldade.”

“Cala a boca, haole”, disse Theresa. Anne gritou: “Eu ia mostrar a essas virgens uma foto da cabeça de Chaz saindo quando eu estava em trabalho de parto, e elas todas: ‘Não, não, não, não!’ ”. “Sim, ela fica querendo que a gente veja essa nojeira!”, Thereza disse. “Dã”, disse Lilia. “Como se a gente quisesse ver uma foto dessas”.

No dia seguinte foi a rodada preliminar do Quiksilver HASA Competition, a quarta das oito competições HASA em Maui, levando aos campeonatos estaduais e depois aos nacionais. Foi uma competição de dois dias – preliminares no sábado, finais no domingo. Em teoria, as meninas deveriam ter ido para a cama cedo porque tinham que acordar às cinco, mas isso era apenas uma teoria. Elas fizeram guerra de travesseiro por uma hora, assistiram Sabrina, Aprendiz de Feiticeira e O Mundo é dos Jovens e mais um episódio de Sabrina, depois assistiram a alguns vídeos de surf de Kelly Slater, fizeram outra guerra de travesseiros, comeram algumas tigelas de cereal, depois assistiram Fear of a Black Hat, filme que parodia o mundo da música rap que elas tinham visto tantas vezes que sabiam a maior parte dos diálogos de cor. Apenas Elise adormeceu em uma hora decente. Ela é francesa e talvez tivesse tido uma overdose de cultura pop americana antes das outras.

Elise meio que apareceu no Havaí com os ventos alísios: ela e sua mãe haviam deixado a França e estavam planejando se mudar para o Taiti, pararam em Maui no caminho e nunca mais foram embora. Era um conto havaiano clássico. Ninguém vem aqui por motivos comuns de maneiras comuns. As pessoas fogem para Maui de lugares como Maryland ou Nevada ou qualquer lugar onde se imaginem presas à terra, sem litoral. Vivem em vagões ou cabanas recuperadas ou barracos caídos apenas para estarem perto das ondas. Aqui, podem ver a imensidão do mar para qualquer lado que olhem, e todas as coisas são fluidas e impermanentes.

Eu não sei que horas eram quando as crianças finalmente foram dormir, porque eu estava no chão da sala com meu casaco na cabeça, tentando me isolar. Quando acordei algumas horas depois, as garotas estavam vestidas para a água, comendo tigelas de cereais, e assistindo Fear of a Black Hat novamente. Era uma manhã linda e elas definitivamente estavam prontas para mostrar Hana surfando para o mundo. Theresa foi a primeira a sair pela porta. “Ei, otárias”, gritou por cima do ombro, “vamos logo.”

As primeiras baterias da competição tinham ondas para a direita, de um metro de altura, sedosas, suaves nas pontas, do tipo o que viram espuma quando quebravam. Não dá para causar muita impressão surfando algo assim, e uma após a outra as garotas Hana saíram da água carrancudas. “Eu não consegui nenhuma manobra”, disse Theresa a Matt. “Eu estava, tipo, muito ligada, mas parecia uma doida.”

“Minha última onda foi uma fechadeira total”, disse Lilia. Ela estava exasperada. “Ei, alguém me joga uma toalha.” Enxugou o rosto. “Eu estraguei tudo”, gemeu. “Tive sorte de conseguir pegar cinco ondas.”

As garotas estavam na praia embaixo da arquibancada dos jurados, sob a cabana de Matt, junto com o time de garotos do Matt e vários outros que ele não patrocinava, mas que gostavam mais de ficar com ele do que com seus próprios patrocinadores. As crianças giravam como átomos. Corriam para cima e para baixo na praia e enchiam de areia os shorts uns dos outros e brigavam por pedaços do frango da noite anterior que Annie havia trazido para eles em um cooler.

Durante um intervalo entre as baterias, Glória do cabelo maluco se aproximou e de repente o movimento incessante parou. Era como uma visita imperial. Afinal, Gloria era uma jovem de 19 anos de aparência experiente que acabara de passar o ano surfando nas ondas monstruosas do North Shore de Oahu, além de fazer trabalhos ocasionais para Rodney Kilborn, o promotor do concurso, ter uma tartaruga marinha tatuada no tornozelo e, o mais importante, de acordo com as garotas de Hana, era uma bodyboarder absolutamente destemida que remava em ondas do tamanho de uma parede, mais longe do que muitos caras iriam.

“Ei, haoles!” Glória chamou. Ela saltou para a sombra da cabana. Naquele dia, seu famoso cabelo pendia em uma longa trança vermelha sobre o ombro esquerdo. Mesmo com o cabelo domado, era uma pessoa de aparência incrível. Ela tinha uma constituição robusta, pele cor de melão e um rosto largo e redondo salpicado de sardas castanho-claras. Sua voz era leve e tilintante e tinha aquela inflexão arqueada, ascendente e zombeteira que fazia tudo o que ela dizia soar como uma pergunta jocosa e bem-humorada.

“Ei, Thereza?” cumprimentou. “Ei, garota, tá rolando? Você tem uma boa estratégia de ondas? Continue assim, tá? Ah, Elise? Você deve remar com mais força? OK? Você está indo muito bem, viu? E Christie?” Ela procurou uma surfista chamada Christie Wickey, que pegou uma carona às quatro da manhã de Hana. “Hey, Christie?” Gloria disse quando a viu. “Você tem que ir mais longe, sim? Assim você estará em melhor posição para sua onda, ok? Vocês são as maiores, sério? Vocês mandam bem, hein? Vocês mandam bem demais, tá?

Por fim, os resultados preliminares da divisão feminina júnior foram divulgados. Theresa, Elise e duas outras garotas do time de Matt passaram, assim como uma garota que Matt conhecia, mas não treinava. Lilia não tinha conseguido. Assim que ela ouviu, enfiou a cabeça loira na dobra do cotovelo e chorou. Matt sentou-se com ela e conversou baixinho por um tempo, e então, uma a uma, as outras garotas foram até ela e tentaram consolar, mas era inútil. Mal falou pelo resto da tarde, até a hora da categoria masculina open, na qual Matt estava competindo. Quando a bateria dele foi anunciada, ela levantou a cabeça e enxugou os olhos inchados. “Ei, Matt!” ela chamou enquanto ele se dirigia para a água. “Arrebenta pelas meninas!”

Naquela noite um bando delas dormiu na casa de Matt — Theresa, Lilia, Christie, Elise, Monica Cardoza de Lahaina e irmãs de Hana chamadas Iris Moon e Lily Morningstar, que chegaram tarde demais para surfar nas preliminares femininas juniores. Não havia participantes suficientes na divisão feminina open para exigir preliminares, então a competição seria realizada 100% no domingo e Iris poderia entrar. Lily não estava planejando surfar, mas como conseguiu sair de Hana de carona, ela aceitou.

“As meninas de Hana dominam o surf de Maui nos dias de hoje. A teoria diz que se elas crescem surfando essas ondas, estão prontas para qualquer coisa.”

Eram garotas demais no Matt para o gosto de Cheyne, então ele fugiu para para passar a noite na casa de outro garoto. Lilia ainda estava triste. Ela ficou quieta durante o jantar e, assim que terminou, entrou no saco de dormir e puxou-o sobre a cabeça. As outras garotas ficaram acordadas até tarde, assistindo a vídeos, batendo umas nas outras com os travesseiros e conversando sobre o campeonato. Em algum momento alguém perguntou onde estava Lilia. Theresa deu uma olhada para o saco de dormir e disse baixinho: “Vocês viram como ela ficou chateada hoje? Eu disse, ‘Fica de boa, Lilia!’ e ela só disse, ‘Me deixa em paz, vadia.’ E eu… ‘Beleza’. ”

Elas cochicharam por um tempo sobre como Lilia estava sensível, sobre como ela reagia se não ganhasse, sobre como ela achava que uma delas tinha destruído um maiô dela emprestado, como era engraçado que ela nem se importava pois tinha tantos trajes de banho e, aliás, sempre tinha dinheiro para lanches, o que a maioria não tinha.

Quando eu disse que uma garota de Hana poderia ter uma adolescência de surf puro, eu sabia que era em parte um devaneio, porque não importa o quão doce, bela e animada possa ser a percepção de uma adolescente havaiana, os julgamentos do ser humano nunca desaparecem. Sempre haveria algo mais para querer e não ter. Até mesmo mais dinheiro pro lanche. Lilia não estava dormindo. De repente, ela saiu do saco de dormir e gritou: “Fodam-se, eu odeio vocês, suas vacas” e correu em direção ao banheiro, batendo em Theresa no caminho.

As ondas no domingo vinham da esquerda, cavadas, mas pequenas e miadas. As baterias dos homens e dos meninos foram narradas pelo sistema de alto-falantes, mas durante as baterias femininas o locutor ficou em silêncio, e o maior barulho vinha da torcida do time de Natt. Lilia tinha endurecido desde a noite anterior. Agora ela parecia livre de rancor, mas distante. Sua postura a fazia parecer mais velha do que 12. Quando cheguei à praia, ela estava olhando para as ondas, mastigando um pedaço de mamão desidratado e chupando um pirulito em forma de chupeta.

Algumas das garotas estavam bem à direita da arrebentação, onde a praia desaparecia e pedras negras e lustrosas se estendiam para dentro da água. Christie me disse que o que elas mais odiavam era o tédio e, com receio de ficarem cansadas entre as baterias, decidiram se animar brincando nas pedras. Funcionou. Voltaram gritando e ofegantes. “Fizemos coisas perigosas”, disse ela. “Nós pulamos de uma pedra enorme na água. Quase morremos, foi incrível.”

Às vezes, olhando para elas, eu não conseguia acreditar que pudessem sair tão despreocupadamente para o mar – este oceano, que tinha rolos de água branca chegando tão rápido que mal dava para contar, tinha um recife afiado escondido logo abaixo da superfície e era cheio de tubarões. As garotas, por outro lado, não podiam acreditar que eu nunca tinha surfado – nunca peguei uma onda de pé ou deitada, nunca dei um cutback nem produzi uma renda branca de spray, nunca senti um longboard sair debaixo de mim para depois ser lançada para a frente e para baixo naquele instante imaculado, silencioso e negro em que todo o peso do mundo te manda para o fundo do oceano até que o momento passa e você é cuspida na praia.

Expliquei que cresci em Ohio, onde não há surfe, mas isso não as satisfez; o que eu não disse é que não tenho certeza se aos 15 anos eu tinha o desprendimento ou o senso indomável necessários para olhar para esta água selvagem e pensar, vou deslizar por cima dessas ondas. Theresa me fez prometer que um dia tentaria surfar pelo menos uma vez. Eu prometi, mas não seria naquele domingo. Eu queria sentar na areia e assistir o final da competição, para ver as meninas de Hana vencendo em suas categorias, incluindo Lilia, que ficou em terceiro lugar no apen feminino, e Theresa, que venceu o open e o júnior femininos naquele dia. Mesmo que fosse apenas um momento, era perfeito, e quem não escolheria o presente de nunca ter um daqueles momentos novamente?

Quando saí de Maui naquela tarde, meu avião sobrevoou Hookipa, e eu queria acreditar que ainda conseguia vê-las lá embaixo e sempre as veria lá embaixo, indo e vindo pelas ondas.

Susan Orlean é redatora do The New Yorker e autora de 11 obras de não-ficção.

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