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Alma Hardcore: Renan Rocha

Por Renan Rocha

Como surfista da capital, eu tive que me ajustar. Minha mãe arrumou um carro e meu avô, aposentado, me levava terça, quarta, quinta, dependendo do dia de ondas e de escola. O bate-volta com meu avô era sensacional. Eu estudava e estava quase bombando por falta. Meu avô me pegava na saída, minha avó fazia um lanche, para o caminho até o Guarujá. Chegando lá, ele armava a cadeirinha de praia e ficava ali, à tarde, na maior vibe, enquanto eu surfava. Nos finais de semana, eu ia para o Rio de Janeiro, onde meu pai ia ver a família. Com uns 15 anos, conheci o pessoal de Itamambuca e comecei a ir para Ubatuba, com os amigos mais velhos que desciam.

Quando as coisas começaram a evoluir, eu pedi para minha mãe para morar no litoral. Ela disse para pelo menos acabar os estudos aqui em São Paulo. Eu acabava surfando quatro dias na semana, no limite do que dava para evoluir. Perdia na parte de treino na água, claro, mas ganhava de outro jeito: estava próximo da mídia, dos aeroportos, da embaixada e de situações diferentes de treinamento e preparo psicológico que São Paulo proporciona. Era complicado. Criança, sem patrocínio forte nem dinheiro. Mas, em contrapartida, consegui balancear.

O maior desafio era ficar fora da água. Moleque tem que surfar, em situações de onda diferentes, para ganhar informação. Em São Paulo, eu treinava, fazia polo aquático, depois treinos específicos. Foi bom. Por um lado, fortaleceu minha mente. Montei uma estrutura boa, mas hoje em dia seria bem mais fácil.

“Em 2000, tive o Pipeline da minha vida. Mas não foi sorte. Eu me preparava há anos”

Logo no início, eu sabia que o surf chegaria aonde está. As maiores cidades do país estão no litoral ou próximas. A cultura de praia do brasileiro. O surf é um esporte cool, alternativo. Tudo que é diferente uma hora fica famoso. Sabíamos que as marcas iriam crescer e o Brasil seria desbravado. A nova geração tinha que mostra o surf profissional, lúdico, de viagens, estilo de vida, respeito com a natureza.

Nos meus 15 anos de elite, o principal era desbravar um mundo novo, de ondas novas, lugares inóspitos, sem estrutura, só pelo prazer de surfar. O mais legal acontecia fora da competição. Os momentos da galera – Peterson Rosa, Guilherme Herdy, Neco e Teco Padaratz, Vitinho Ribas, Tinguinha Lima, Jojó de Olivença. Crescemos juntos não só no profissional, mas no pessoal, emocional. Outra coisa é o lado cultural. As amizades que fizemos no mundo – Tahiti, Hawaii, Austrália, Indonésia… E, claro, uma vitória ou outra. São muitas histórias inéditas. Ainda vou escrever um livro sobre esses bastidores que fizeram a história do surf profissional.

“O surf está perdendo a essência. E como manter isso? Tentando se desligar do que é moderno, pop, ser um pouco contracultura. Procurar. Sair com um amigo ou sozinho. Sem se preocupar em posts”

Em 2000, tive o Pipeline da minha vida. Mas não foi sorte. Eu me preparava há anos. Em um ano, tinha prancha boa, mas não estava com cabeça. Em outro, a cabeça estava boa, mas meu físico não. No seguinte, estava mais Backdoor, e eu não ia muito bem. Até que encaixou. Um mar perfeito por quatro dias seguidos. Prancha mágica. Bem fisicamente, com o trabalho no Instituto Marazul, do Marcelo Baboghlian. Um suporte muito forte dos brasileiros. A onda nota 10, contra o Shane Beschen, em uma bateria super disputada. Ele achou que eu não fosse virar. Veio a onda, faltando 40 segundos. Na bateria seguinte, “tirei” outra nota 10, contra o Pancho Sullivan – mas me deram 9,80. Mas não foi só o 10 que me marcou, foi a performance inteira. Perdi na semifinal para o Rob Machado. Tinha o deixado em uma situação muito complicada na bateria, e ele achou e fez a onda no final. Mérito do Rob, vencedor do campeonato.

Hoje, criei uma rotina muito legal. Na ESPN, com os campeonatos. No tempo livre, cuido da minha pousada na Guarda do Embaú, que fiz pensando em continuar meu estilo de vida, para recepcionar as pessoas, compartilhar histórias. Nessas, eu e o Piu Pereira criamos a Surf Clinic, para passar a parte da competição e das primeiras aulas, passos de como entender o universo do surf na natureza. Em meio a tudo isso acontecendo, apareceu o Série ao Fundo, com uma equipe de profissionais que sabem o que fazem no streaming que criamos no YouTube, aliado às redes sociais.

Surf nas Olimpíadas. Na nossa geração, tentamos desde a época da Olimpíada de Sydney. Era um sonho que o Fernando Aguirre colocava para a gente. E hoje está acontecendo. E aí vem essa piscina de onda do Kelly Slater. A tecnologia evolui. As pessoas querem se envolver nesse esporte mais profissional, correto, mais ligado à imagem, negócios, internet. Hoje, você só perde o lado da busca, de chegar em uma praia sem ninguém e desbravar.

O surf está perdendo a essência. E como manter isso? Tentando se desligar do que é moderno, pop, ser um pouco contracultura. Procurar. Sair com um amigo ou sozinho. Sem se preocupar em posts. Conhecer os povos locais. Eliminar a tecnologia e a necessidade de fazer parte das redes sociais para ser considerado um cara maneiro. Ainda tem alguns lugares para viver momentos do feeling da busca, do prazer de correr uma onda sem se preocupar com o que vão julgar. Desconectar é viver mais no presente. Observar mais o que está à sua volta. Um pássaro. Um golfinho. Uma situação de amizade. É disso que a essência precisa para sobreviver.

 

Publicado originalmente na HC #336 // Alma HARDCORE. Fotos: Alexandre Gennari #HCollab

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