No dia em que o Brasil celebra a consciência negra, a Hardcore abre espaço para que André Tavares, surfista preto e doutorando em Comunicação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), possa dar sua visão de o que deveria ser feito para a consagração de um surfista negro brasileiro campeão ou campeã mundial.
Em um país onde a maioria da população é negra, é impossível não se questionar por que que essa proporção não está representada na elite de alguns esportes, e dentre eles, o surfe. E para responder a esta pergunta é necessário nos aprofundarmos minimamente em alguns aspectos que passam pela desigualdade social no país.
Por exemplo, segundo o último censo demográfico de 2022, os brancos têm uma renda média 75,7% maior que a dos negros, e isso, em um esporte onde o equipamento básico para a prática pode representar 1/3 do salário mínimo, pode ser determinante para o ingresso de novos praticantes, especialmente das classes mais baixas. Mas podemos ir além. Surfar pressupõe que o praticante saiba nadar: privilégio de quem tem acesso ao litoral ou a uma piscina, equipamento que não é comum em moradias ou espaços de lazer periféricos. Aliás, tempo para o lazer e para a prática esportiva é por si só outro privilégio. A trabalhadora ou o trabalhador que geralmente moram afastados do local de trabalho, dependem de mais de uma condução e normalmente saem muito cedo e voltam muito tarde para casa.
Mas foquemos apenas em atletas de alto rendimento. Em profissionais que precisam de uma estrutura razoável de treinamento, de investimentos em viagens, inclusive internacionais, de acompanhamento profissional para manter o físico e o psicológico preparados paras as competições. Neste caso, ter um apoio financeiro é fundamental para que de fato eles vivam do esporte e se dediquem integralmente a ele. O tão sonhado patrocínio de “bico” pode proporcionar uma paridade mínima de condições para que o atleta possa focar no principal: o seu surfe dentro d’água. E como estamos falando deste contexto esportivo, é preciso ter cuidado com o discurso da meritocracia, pois ele encobre desigualdades sociais e naturaliza as exceções. Isto é, a superação da precarização e das dificuldades seria uma questão de mérito individual.
+ O surf e o futuro ancestral
Da mesma forma, precisamos analisar outra nuance que tem a ver com a própria história do esporte, que é a representação do surfista na mídia. Produtos midiáticos como a série Gidget (1959), o filme The Endless Summer (1964), as primeiras revistas especializadas e outros, criaram e reforçaram ao longo do tempo uma imagem modelo de surfista: sexo masculino, branco, jovem, geralmente loiro e de classe social privilegiada. Um padrão bem diferente do surfista havaiano e tricampeão olímpico de natação Duke Kahanamoku, que tinha o tom de pele escura e era relegado a papeis menores em Hollywood por conta do preconceito. Para o autor e pesquisador Rafael Fortes, a caracterização do surfe como algo nato apaga diferenças quanto a fatores de classe, lugar e oportunidades para surfar (tempo livre, acesso ao mar, posse de prancha e acessórios). “Embora a representação elimine estes elementos, na prática eles são decisivos e constituem as condições estruturais que determinam se um indivíduo poderá ou não ser surfista” (FORTES, 2011, p. 267).
O padrão de “surfista californiano” é replicado até hoje por grandes marcas, que priorizam determinados perfis de surfista. Nuala Costa, ex-surfista profissional negra e fundadora da organização TPM (Todas para o Mar), certa vez ouviu de uma marca que o “seu perfil não vendia”. Já o surfista negro Wiggolly Dantas relatou que em um determinado momento da carreira foi patrocinado por uma grande marca que não o colocava em suas campanhas publicitárias. É importante lembrar que há no Brasil o mito da democracia racial que traz consigo a ideia de que aqui não existe racismo. Porém, o que difere o racismo nacional, segundo Muniz Sodré, seria a sua forma, que acontece de forma subliminar e traiçoeira. E nesse sentido, mesmo voltando à lógica meritocrática, que deveria valorizar os resultados alcançados pelos atletas, perfis de atletas pretas e pretos continuam sendo preteridos no Brasil.
Por conta de ter vivenciado na época de atleta e testemunhar ainda hoje a falta de apoio a surfistas “fora do perfil”, mesmo a despeito de seus bons resultados, que a jornalista Érica Prado criou o Movimento Surfistas Negras. A partir do perfil do movimento em uma rede social e de encontros presenciais, ela consegue dar visibilidade e ajudar outras surfistas negras e nordestinas a se manterem no circuito nacional de surfe. Segundo ela, seu maior sonho é ver uma atleta brasileira, negra, campeão mundial.
Por conta dos ótimos resultados obtidos nos últimos anos, o Brasil, que é um país grande e diverso, tem uma relevância importante para o surfe mundial. Em uma rápida pesquisa entre os 50 atletas do masculino e do feminino no ranking do Qualifying Series South America, conseguimos elencar nomes de surfistas negros e negras como José Francisco “Fininho”, Cauã Costa, Yanca Costa e Monik Santos entre inúmeros outros talentos que têm surfe suficiente para chegar aonde quiserem. Que o discurso da inclusão, hoje tão falado também no mundo privado, especialmente no mês da consciência negra, se transforme em ações diretas que proporcionem mais equidade para quem sabe, em breve, possamos ter também um campeão ou uma campeã mundial negra de surfe.
André Tavares é Doutorando em Comunicação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Desenvolve pesquisas sobre mídia e esporte com ênfase em midiatização e mercantilização, discursos, representação, raça, gênero, espaços urbanos, surfe e piscinas de ondas. E-mail: andretavares@gmail.com