Quando assumiu a presidência da International Surfing Association, em 1994, Fernando Aguerre voltou-se ao mundo olímpico cultuado por Duke Kahanamoku. Primeiro, obteve reconhecimento da ISA pelo Comitê Olímpico Internacional.
Em 1995, reuniu-se com o então presidente do COI, o catalão Juan Antonio Samaranch e doou uma prancha histórica de Greg Noll. Em 1996, incorporou tradições olímpicas ao World Surfing Games. Medalhas de ouro, prata e bronze para as equipes. Desfile com as delegações uniformizadas. “Cerimônia das areias”, uma adaptação da tocha olímpica. Vivia uma vida dupla como presidente da ISA e CEO da Reef até vender a empresa, em 2005.
“Foram milhares de horas de trabalho”, revela Aguerre. “Horas em que me privei de surfar, de estar com minha família, de viajar, de fazer nada. Trabalhando de graça, sem salário. Minha motivação é promover o esporte que Duke começou – e cumprir o sonho dele.” Em 4 de agosto, o sonho foi concretizado.
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Na sessão 129, do COI, o surf teve aprovação unânime para Tóquio 2020 – ao lado do skate, escalada, karatê e baseball/softball.
A seguir, Fernando Aguerre fala sobre sua saga de 22 anos, o desenvolvimento do surf e os possíveis legados olímpicos.
No que pensava durante a sessão 129, no Rio de Janeiro, que culminou na votação a favor da entrada do surf na Olimpíada?
Pensei em tantas coisas… No Duke Kahanamoku, que em 1920 pediu a inclusão do surf na Olimpíada pela primeira vez. Em minha vida de menino, surfando nas águas frias da Argentina, um país em que ser surfista era uma coisa estranha. Das lutas dos surfistas argentinos contra o governo militar, que proibira o surf em Mar del Plata. Foram 22 anos de trabalho, desde que fui eleito presidente da ISA, em 1994. Foi a maior onda da minha vida – a onda olímpica, interminável. Agora terminamos a etapa mais difícil. O que vem é decidir o método de qualificação, o formato e fazer uma boa primeira apresentação. O Comitê Olímpico Internacional (COI) quer que organizemos um festival de praia durante as duas semanas dos Jogos de Tóquio. Vai ter música, comida, clínicas de meio ambiente, escolas de surf ao público. O surf tem algo que poucos esportes possuem: uma cultura – que é linda e queremos mostrar para o mundo.
O COI tem dois interesses. Por um lado, quer as melhores estrelas do mundo do surf. Por outro, diversidade geográfica – latino-americanos, africanos, europeus, asiáticos. Precisamos encontrar uma fórmula. Em vários países, há surfistas muito bons que não têm condições econômicas para competir no WQS, no Prime, para chegar ao WCT. No Brasil, só uma dúzia que estão na WSL são reconhecidos. O cara do Recife, que não tem grana para ir nem para o Rio, nunca vai conseguir se classificar. É uma realidade difícil.
O COI divulgou, em nota, que 20 homens e 20 mulheres disputarão o surf nos Jogos de Tóquio. Acredita que seja um número justo, em um mundo com tantos talentos e países com boas ondas?
Primeiro, é preciso saber que o surf não será por equipes nacionais. Será individual, conforme um sistema de classificação. Eu acho que esse é um primeiro número que o COI deu, mas, de repente, será maior. Nosso primeiro passo foi ser aprovado. Depois que entramos, tudo pode ser discutido e negociado.
Uma discussão é o uso de piscinas de onda na Olimpíada. O que acha dessa opção?
Em Tóquio, será disputada em ondas naturais. Foi uma decisão do Comitê Olímpico, porque ainda não há nenhuma onda artificial funcionando que seja aprovada e comercialmente viável. Todo mundo está empolgado com a onda de Kelly Slater, mas ninguém sabe qual é o preço, o custo, o modelo econômico-empresário que sustente sua viabilidade. O COI não permite que um país utilize 30, 40, 50 milhões de dólares em um empreendimento que depois dos Jogos talvez não tenha utilidade.
Em 2024, os Jogos vão acontecer em Los Angeles ou Paris. Dois lugares que têm uma cultura de surf muito grande. Para ter piscina de onda, as ondas da cidade-sede precisam ser ruins. E tudo depende da evolução dessa tecnologia. Para mim, as máquinas de onda são uma estratégia muito boa. Por exemplo, imagina se você tivesse uma máquina de ondas em São Paulo? Estaria todo dia lotada. Logicamente, isso requer que alguém fabrique, que bote para funcionar, que algum empresário invista. Como isso tem sido mais devagar do que todo mundo imaginava, vamos ter que esperar. Mas acredito que o futuro será muito bom. Com uma máquina que produz a mesma onda, será julgada, pontuada a performance do surfista, não o tamanho da onda. Em um campeonato normal, eu sou melhor que você. Você pega uma onda. Falta três minutos, eu não pego nenhuma. Você vence, mas não é melhor – teve sorte que não teve mais onda. Isso não existiria em um mundo com piscina de onda. De toda forma, eles aceitaram o surf olímpico como um esporte subjetivo, assim como muitos outros, a exemplo do futebol.
Como definiram a onda de Shidashita, em Chiba, para sediar a competição?
Obtivemos informações da Surfline, com os últimos dez anos de direções de swell, tamanhos de onda, influência de vento, movimentação da areia. Há grandes chances de termos ondas boas. Lógico, não serão as condições do Hawaii – disso, todo mundo sabe. Será tipo US Open, em Huntington Beach. Uma onda legal, mas regular, boa para campeonato. Por outro lado, em meados de agosto, um tufão proporcionou ondas de 2 a 3 metros. Incríveis! E os tufões acontecem na época marcada para os Jogos de Tóquio, de 24 de julho a 9 de agosto de 2020. Se acontecer algum, será um show, uma apresentação incrível. Mas o COI sabe que o surf é um esporte em que a data e a hora não podem ser confirmadas com antecedência. Ocorrerá como em qualquer campeonato, no dia que tiver onda boa durante os 16 dias de Olimpíada.
“Não serão as condições do Hawaii. Será tipo US Open, em Huntington Beach. Uma onda legal, mas regular, boa para campeonato. Por outro lado, em agosto um tufão proporcionou ondas de 2 a 3 metros. Incríveis!”
Nesses 22 anos, o que mudou para que agora o Comitê Olímpico votasse a favor do surf na Olimpíada?
Há três anos, chegou um novo presidente ao Comitê Olímpico, com uma ideia totalmente diferente. Ele entendia que, com uma mudança na lista de esportes, seria possível chegar aos jovens. O COI não tinha nenhum sistema bom para a adição de novas modalidades. O programa de esportes olímpicos estava estagnado, não evoluía. O alemão Thomas Bach, eleito em 2013, disse que tinha um limite de 28 esportes nos Jogos e que era impossível trazer novas modalidades, porque isso significava jogar fora alguma. Por isso, esse limite foi abolido em 2014, e em Tóquio serão 33.
A realidade é que o mundo está em evolução. Hoje, muitos membros do COI são surfistas. Por exemplo, um deles é o príncipe e herdeiro da Dinamarca, Fredrik, casado com uma australiana. A cultura do surf já não é desconhecida, nem uma novidade. Há 20, 25 anos, o surf para a maioria das pessoas era um passatempo. Não era um esporte. Hoje, isso mudou completamente. Quando cheguei à ISA, em 1994, tínhamos 30 países com federações nacionais. Hoje temos 100.
Ao COI, argumentamos que o surf não é lazer. Para ser um atleta de surf, no ápice da performance, a pessoa tem que ser tão bom e dedicado quanto um atleta de qualquer outro esporte. Na ISA, fazemos os mesmos testes antidoping da WADA. Em 22 anos, de todos os finalistas dos festivais da ISA, somente cem testaram positivo. Nada, se comparado a qualquer escola secundária do mundo que tem 30% positivo. É, realmente, um esporte são. Os surfistas são atletas.
Nas Olimpíadas de Tóquio, o surf será disputado no mar, mas, em olimpíadas futuras, Fernando Aguerre vislumbra as piscinas de onda. O modelo de Kelly Slater (acima), aprovado por campeões mundiais a nível de Stephanie Gilmore (abaixo) e Medina, aponta caminhos interessantes para o universo olímpico. Fotos: Todd Glasser
Há muita gente que não gosta da ideia do surf nas Olimpíadas. Dizem que o crowd vai aumentar, ou que o surf perderá sua essência. Coisas assim. O que pensa sobre esses comentários?
Tenho 58 anos. Surfo desde os 11. Minha experiência não vai mudar pelo fato de o surf ser olímpico. Para o problema do crowd, a solução não é menos promoção. É um esporte atrativo. Todo mundo quer surfar. O problema não é a quantidade de surfistas, mas a falta de respeito. Moro em La Jolla e surfo na Califórnia, o lugar com os picos mais crowdeados no mundo. Ninguém dropa na onda alheia. É o respeito. Você vai em alguns lugares, não sei, do Brasil, da América Central, e ninguém respeita ninguém, tem dez caras na mesma onda. Outra coisa que aconteceu é que, há 20 anos, você surfava só com uma pranchinha thruster. Se não fosse uma onda de performance, não conseguiria surfar. Hoje, tem fish, híbrida, mini simmons, longboard – tem tanta variação que em qualquer tamanho dá para surfar.
O surf olímpico vai promover o esporte em países onde não há incentivo ao surf. A África tem quatro, cinco vezes mais litoral do que no Brasil, mas praticamente não há surfistas, a não ser na África do Sul e um ou outro em alguns países. Milhões de pessoas descobrirão o surf, a felicidade que você, eu e tantas outras pessoas encontramos nas ondas. Para mim, é um objetivo extremamente desejado.
Sobre perder a identidade, a espiritualidade, se tua relação em estar nesse templo que é o oceano mudar porque 20 caras surfaram na Olimpíada, então se trata de um problema pessoal, e não dos Jogos. É um argumento dos puristas… Se surfa porque é cool, porque ninguém faz isso, está surfando por razões equivocadas.
O que representa a entrada do surf na Olimpíada de Tóquio?
Muitas coisas diferentes. Por exemplo, um atleta de 15 anos, que vive no Nordeste do Brasil, sonha em estar no topo do mundo desportivo. Ele teria que praticar vôlei de praia, futebol, corrida, tênis. Hoje, pode ser surfista por toda sua vida e, no futuro, se tornar um atleta olímpico. Essa é a primeira consequência. A gente mostra um caminho em que, ao final, não se chega a um Mundial da ISA ou da WSL, mas sim à medalha de ouro para teu país, nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Isso quem me disse foi o Damien Hobgood. Em uma reunião sobre o surf olímpico, ele falou: “Você está fabricando um caminho para os sonhos de mais pessoas que antes. É uma pena eu já ter 38 anos.”
Em segundo lugar, para as estrelas profissionais e para o resto dos competidores do mundo (África, Europa, América Latina), representa a possibilidade de ser reconhecido a um nível bem mais alto. Ser um atleta olímpico é muito maior.
Por fim, tem consequências econômicas. Da grana que produz os Jogos Olímpicos, o COI distribui metade aos comitês nacionais, através do Fundo de Solidariedade Olímpica. E a quantia é muito grande: são 500 milhões de dólares, a cada quatro anos. Esse fundo serve para atletas que necessitam de recursos e para desenvolver esportes novos, em lugares que não tem apoio oficial ou em países pobres.
Eu, pessoalmente, conheço vários atletas ótimos que não tem patrocínio em países cujo governo não dá grana. E esse menino, essa menina estão condenados. Hoje, o surf olímpico abriu uma nova janela para eles, um novo caminho que antes não existia. Eu vejo isso como uma grande oportunidade para o reconhecimento do surf pelos países e ministérios do esporte. Em muitos, os fundos públicos só vão para esportes olímpicos ou panamericanos.
À frente da ISA, tenho falado com o ministro do Esporte do Peru. Incorporei o surf no Panamericano de 2019, em Lima. É o esporte que traz mais campeões ao país. Em agosto, o presidente recebeu a equipe peruana que ganhou o World Surfing Games deste ano, disputado na Costa Rica. No dia seguinte, foram homenageados pelo congresso. Agora, os ministros de esporte das Américas enxergam um claro caminho. Muitas portas que hoje não existem vão se abrir.
“As federações precisam fazer o que já deve estar em curso: desenvolver os surfistas, o esporte, trabalhar com os ministérios e comitês olímpicos locais, para dar oportunidade aos surfistas de cada país.”
Quais serão os próximos passos até 2020?
Em 2017, o Comitê Olímpico e a ISA, que é a federação internacional, definirão os sistemas de qualificação, avançarão no formato da competição e desenvolverão o festival de olímpico do surf e de praia. Mas, logicamente, como faço sempre, será em colaboração com todo mundo, inclusive a WSL. Já a convidei quando fiz a primeira apresentação em Tóquio, em agosto de 2015. O Paul Speaker deu um discurso muito bom, apoiando a inclusão do surf nos Jogos, e se comprometeu a liberar os surfistas profissionais. A decisão vai ser de cada um dos atletas. Igual no Brasil, que no tênis competiu Djokovic, Murray, Nadal, mas Federer e outros não estavam. Mas se você pergunta a Medina, Mineiro, Filipe… eles estão amarradões com a oportunidade.
Enquanto isso, as federações nacionais precisam fazer o trabalho que já deve estar em curso: desenvolver os surfistas, o esporte, trabalhar com os ministérios de esporte, com os comitês olímpicos nacionais, para dar realmente a oportunidade aos surfistas de cada país. Não há vagas garantidas para ninguém. Tanto pode haver dois brasileiros, como nenhum. Tudo depende deles.
Os Paralímpicos não estão dentro dos Jogos Olímpicos. É uma organização diferente. O COI aceitou cinco esportes novos para Tóquio. Comitê Paralímpico, para 2020, não quer nenhum novo. Estamos trabalhando para 2024. A ISA organizou no ano passado o primeiro Mundial de Surf Adaptado. Davizinho, do Rio, ficou com a medalha de prata. Agora, teremos o segundo, maior.
O que acha das federações e das estruturas nacionais dos países que participam do ISA Games?
A federação do Brasil é uma vergonha por não ter enviado uma equipe mundial para o World Surfing Games. Austrália, América… os 27 melhores países do mundo estavam lá, mas a Confederação Brasileira de Surf não enviou ninguém. Outra coisa é que, no mundo inteiro, não existe mais a diferença entre amador e profissional. Há duas categorias de surfistas: o que surfa campeonato e o que não compete. Quem disputa campeonato não tem nada de amador. No mundo olímpico, a palavra “amador” foi retirada em 1981. A ISA não é a federação amadora, é a federação mundial do esporte. Tem quem surfe por prazer, e quem surfe para ganhar algo de alguém. Se ganha 500 ou 500 mil reais por mês, tanto faz.
Já sabe o que será necessário para que, depois de Tóquio, o surf seja reconhecido definitivamente como um esporte olímpico?
O Comitê Olímpico ainda não informou os requisitos, as condições. Ninguém sabe por enquanto. Meu objetivo é fazer o melhor trabalho possível para Tóquio. Tem uma frase que gosto muito: “Ninguém tem uma segunda oportunidade para dar uma primeira impressão”. Então, quero garantir que a primeira impressão será a melhor que a gente pode dar, para todo mundo, não só para o Comitê Olímpico. HC
Texto Kevin Damasio
Publicado na HARDCORE #321, setembro/2016