Difícil acreditar em uma ilha de lixo tão próxima do luxo.
Nas Maldivas, a alguns quilômetros distante dos reefbreaks paradisíacos e resorts de luxo, a ilha de Thilafushi é um verdadeiro lixão a céu aberto, que permanece praticamente oculto aos olhos do mundo, além de ser extremamente nocivo aos moradores do arquipélago.
Texto e fotos: Giulio Paletta
HC 305, Abril/2015
A fumaça tóxica penetra pela pele e pelas roupas; o nariz arde, os olhos lacrimejam, o estômago se embrulha, a sensação de enjoo torna-se insuportável. O ar é irrespirável. O fôlego falta, mal consigo manter os olhos abertos. O avermelhado do céu ao pôr do sol mistura-se com as nuvens densas e escuras de vapor de dioxina: um cenário apocalíptico.
É a exata visão do inferno que havia sempre imaginado, porém nunca vira com meus próprios olhos antes de chegar aqui. Emanações de gás carregadas e sombrias se elevam ao céu enquanto, ao redor, resplandece a incrível transparência de uma água turquesa de sonhos. Estou no paraíso e, no entanto, diante de mim vejo apenas chamas e fumaça, montanhas de dejetos mal cheirosos e tóxicos.
São as trevas de Thilafushi, a faixa de terra mais desconhecida, controversa e poluída do paraíso tropical das Ilhas Maldivas. Há apenas 8 quilômetros ao oeste da capital Malé, cerca de meia hora de balsa, surge um gigantesco lixão flutuante a céu aberto, a maior ilha de lixo do Oceano Índico. Uma mancha negra e ignorada no meio deste arquipélago de 1.200 ilhas de corais, águas cristalinas e turismo de massa.
Antes de 1992, quando foi construída a ilha artificial de Thilafushi, neste mesmo lugar encontrava-se uma deserta lagoa azul, daquelas que só se veem em filmes, chamada Thifalhu. No início de suas operações, Thilafushi deveria servir como descarga para resolver apenas o problema do lixo dos 100 mil habitantes da capital Malé.
Hoje, 20 anos depois, o cenário mudou. Thilafushi é uma tira estreita de areia que se estende por 7 quilômetros de comprimento em meio ao oceano límpido e recebe, via mar, 400 toneladas de lixo por dia, provindas de todas as ilhas do país, especialmente de Malé e dos resorts turísticos espalhados pelos vários atóis maldivanos. Ou seja, dos mais de 850 mil turistas que a cada ano desembarcam nestas praias paradisíacas e um tanto cobiçadas.
Segundo os perturbadores dados fornecidos pela ONG ambiental local Blue Peace, que desde 1989 batalha para manter as maravilhas do paraíso das Maldivas, a superfície atual de Thilafushi compreende aproximadamente 50 hectares (o equivalente a cerca de setenta campos de futebol) e calcula-se que cada turista produza todos os dias três quilos e meio de lixo, o dobro daquilo que produz um habitante da capital e cinco vezes mais em relação a um maldivano dos outros atóis: certamente uma quantidade de dejetos difícil de administrar que, ao invés de diminuir, continua a crescer, trazendo como consequência o aumento constante das dimensões da ilha. Estatísticas oficiais alarmantes indicam que Thilafushi cresce em média um metro quadrado por dia.
O asiático Arman tem 27 anos e veio de Dhaka, capital de Bangladesh. Do bolso de sua calça jeans, enegrecida pela fulígem, retira uma foto: “Estes são minha mulher e meu filho”, me diz, orgulhoso. Pergunto há quanto tempo não os vê: “Dois anos”, responde com a voz triste enquanto somos engolidos por uma espessa nuvem de fumaça que deixa o ar intragável.
Enquanto Arman continua dirigindo impassível o caminhão que transporta o lixo até a área onde depois será queimado a céu aberto, a cabine interna do veículo enche-se de uma neblina intoxicante. Não consigo ver mais nada, nem à minha frente, nem ao meu redor. Arman, por sua vez, não parece se importar: “Estou acostumado”, diz, sorrindo, “vivo e trabalho aqui há dez anos”. Continuo a tossir cada vez mais forte e sinto ânsia de vômito enquanto a névoa nociva emana um odor de lixo fortíssimo, insuportável. Visto uma máscara de proteção que me ajuda a respirar e óculos para cobrir os olhos das cinzas e do gás, mas não adianta muito.
Arman, como todos os outros trabalhadores da ilha, não usa nenhum tipo de proteção; nem máscara, nem óculos. Sorri. Tem um ar sereno. Deve estar habituado. Como será possível habituar-se a uma vida assim, me pergunto, enquanto chegamos ao lugar de descarga, o topo de uma montanha de lixo com mais de 50 metros de altura; um ‘palácio’ de resíduos em chamas, exatamente de frente para o mar. Este é o lugar mais alto de todo o arquipélago das Maldivas, considerando que todo o país encontra-se a menos de um metro acima do nível do mar. Os dejetos são despejados aqui e queimados continuamente, 24 horas por dia, sete dias por semana, 365 dias por ano.
Da janela do meu apartamento em Malé, todas as noites pude ver a tal nuvem alta de fumaça tóxica levantar-se do mar e iluminar o céu dos maldivanos que vivem a poucos quilômetros de Thilafushi. O fumo e seu odor fétido viajam velozes, transportados pelo vento, e as noites de Malé são, muitas vezes, marcadas pelo forte e nauseante fedor de lixo. Arman é um dos mais de 150 imigrantes bengaleses que vivem e trabalham a Thilafushi. Vivem juntos na parte norte da ilha, distante apenas algumas centenas de metros da descarga, em galpões decadentes fornecidos pela Thilafushi Corporation Limited, a companhia que administra o lixão e toda a ilha.
Trabalham seis dias por semana, mais de doze horas por dia, em condições muito difíceis, desprotegidos, respirando o fumo nocivo do lixo queimando, separando à mão todo tipo de lixo – desde os mais simples resíduos domésticos aos mais prejudiciais, contendo substâncias muito perigosas como amianto, chumbo e cádmio. Sim, porque aqui em Thilafushi chega de tudo, qualquer tipo de lixo, sem distinção alguma.
Não existe separação do lixo ou reciclagem nas Maldivas, nem em Thilafushi.
Sunil tem 55 anos e vive em Thilafushi há 16. Proveniente de uma região rural de Bangladesh, jamais vira coisa semelhante antes de chegar até aqui. Nunca tinha se perguntado sobre a questão do lixo até então. Ele é casado e tem três filhos, mas precisa sustentar toda a família, pois nem seus irmãos nem suas irmãs trabalham: “Trabalho para manter nove pessoas”, me diz enquanto, deitado em uma cama sem colchão, assiste na televisão à uma novela bengalesa.
Assim como seus companheiros, Sunil manda todo o salário para casa, em Bangladesh: em média 250 dólares americanos por mês, pouco dinheiro para os maldivanos, mas muito para quem vive em Bangladesh. Thilafushi é um pequeno submundo bengalês.
A impressão que se tem aqui é de estar em um subúrbio de Dhaka, ao invés de um lugar nas Maldivas. Ao longo da única e barrenta estrada da ilha, que liga as casas à descarga, há um barbeiro, um minúsculo restaurante e uma farmácia – todos os estabelecimentos de donos maldivanos, mas com a mão de obra barata dos funcionários bengaleses. Encontro Narayan diante da única mesquita de Thilafushi, naquela que poderia ser definida como uma espécie de “pracinha” do vilarejo, na frente de uma das casas onde vivem alguns trabalhadores.
Já está escuro e a oração do pôr do sol acaba de terminar. Narayan está concentrado digitando uma mensagem em um celular antigo: “Estou escrevendo à minha noiva para avisar-lhe que em breve estarei com ela”, me diz, eufórico, com um grande sorriso no rosto.
Narayan tem 30 anos e mora há quase dez em Thilafushi. Em poucos dias, ele finalmente voltará a Bangladesh. A cada dois anos seguidos de trabalho, os empregados bengaleses têm direito a dois meses de férias pagas no país natal.
De sábado à quinta-feira – seguindo o calendário muçulmano das Maldivas –, das 6 da manhã às 5 da tarde, dezenas de embarcações fazem a ponte entre Malé e Thilafushi e entre Thilafushi e os resorts turísticos, transportando todo tipo de lixo, dos orgânicos restos de comida às embalagens de protetores solares, das garrafas de cerveja às de champanhe, que abastados turistas consomem em seus oásis de tranquilidade, enquanto aqui em baixo, nas profundezas deste inferno de Dante maldivano, entre as chamas e a fumaça tóxica, 150 bengaleses simples e corajosos tentam não morrer para mandar 250 dólares por mês às suas famílias.
“Infelizmente existem efeitos nocivos evidentes nos trabalhadores de Thilafushi”, confessa Ahmed Murthaza, um dos diretores da Thilafushi Corporation Limited, no conforto do ar condicionado de seu escritório em Malé: “Registramos um número crescente de doenças pulmonares, seja entre os trabalhadores em Thilafushi, seja entre os habitantes de Malé.”
A questão das condições de trabalho e saúde dos imigrantes bengaleses em Thilafushi é mais um grande problema da ilha. Ali Rilwan, um ambientalista da capital, fala de Thilafushi como uma seríssima e perigosa ameaça para o ambiente e para saúde da população local. A ONG Blue Peace descreve a ilha como uma verdadeira “bomba tóxica em meio ao oceano”. Como consequência da globalização e do desenvolvimento tecnológico, o percentual de resíduos altamente prejudiciais, como baterias usadas de celular e computador, também aumentou.
Por conta das condições de trabalho precárias, muitas vezes as operações de descarga do lixo não são executadas de maneira segura, e assim caem no mar muitos resíduos, tanto orgânicos quanto químicos – como o cádmio – que, assim, se dispersam pela água salgada.
Outra preocupação por parte dos ambientalistas é o iminente risco de dispersão das substâncias tóxicas no mar devido a elevação do nível das águas, como resultado do aquecimento global. Diferentemente de um lixão em terra firme, em Thilafushi os resíduos encontram-se a apenas um fino estrato de areia de distância do oceano.
As substâncias nocivas poderiam, então, entrar no nível inferior da cadeia alimentar através das algas, plânctons e peixes, para depois chegar, sob a forma de deliciosas receitas de peixe ou lagosta, diretamente aos pratos dos maldivanos e dos turistas desavisados nos resorts – os mesmos turistas que haviam produzido aqueles resíduos anteriormente. Um ciclo maligno que se completa.
A falta de espaço em Thilafushi e a grave situação ambiental obrigaram o governo maldivano a exportar uma parte do lixo a outros países, em especial à Índia, Malásia e China, fazendo com que o lixo se tornasse a segunda principal matéria exportada pelas Maldivas, depois do peixe.
Enquanto caminho pelas ruas infernais de Thilafushi, entre lixo e barro, cercado pela sempre presente neblina espessa, penso que grandes heróis são os tantos Arman, Sunil e Narayan espalhados pelo mundo, que lutam constantemente para dar uma vida melhor aos seus queridos, a qualquer custo.
Imagino a jovem esposa de Arman, a futura mulher de Narayan, os filhos, as irmãs e irmãos de Sunil, que estão há milhares de quilômetros de distância, esperando o dia em que poderão ver tornar à pátria o próprio marido, o próprio irmão, o próprio pai; e de poder abraçá-lo, beijá-lo e recomeçar uma vida juntos, felizes, em casa.