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Carta a Dom: Pedro Scooby revela com seu filho o fez superar o trauma de quase ter morrido em Nazaré

Em novembro de 2019, 0 surfista Pedro Scooby sofreu grave acidente ao cair em uma onda em Nazaré, Portugal. 

Scooby foi engolido pela onda e não retornava à superfície. Ficou mais de um minuto embaixo da água até ser encontrado pelo alemão Sebastian Steudtner com o jet ski de resgate.

No vídeo, a partir dos 2min 14seg, Scooby já está na praia e recebe atendimento. Em um momento, ainda deitado, faz um movimento e parece vomitar. Logo depois ele se levanta, caminha e dá a mão para um dos homens que participaram do resgate.

CARTA A DOM

Nesta segunda-feira, 25, o surfista publicou uma carta para a Dom, 8 anos, seu filho mais velho, explicando o que aconteceu no fatídico dia.

Inclusive, Scooby revela uma história com Dom que foi decisiva para ele superar o trauma do que aconteceu em Nazaré.

Confira:

“Pense em uma meia dentro da máquina de lavar, girando, girando, se perdendo numa imensidão de água, espuma e movimento. Foi assim que eu me senti naquela manhã de novembro do ano passado, em Nazaré.

Nazaré, em Portugal, é uma pequena vila de pescadores que sempre temeram as ondas gigantes que se formam no inverno.

Aquele dia parecia mais um dia de trabalho para um surfista de ondas gigantes. Elas estavam grandes, mas não tão grandes quanto no dia anterior.

Vesti apenas um colete inflável, quando poderia ter vestido dois. Quando ela veio, já parecia muito maior que as anteriores. O mar de Nazaré não é lisinho, ele te faz quicar. Quando eu cheguei na base da onda, ela me engoliu.

Você tem oito anos e ainda vai cometer muitos erros, inclusive erros que eu já cometi. Mas espero que você nunca viva isso.

Em um segundo você está deslizando sobre a água, domando a fúria do mar e manipulando as leis da natureza a seu favor. No segundo seguinte, você tem um prédio de oito andares feito de água sobre você.

Você não sabe o que é esquerda ou direita, o que é céu e o que é chão. Você sente a pressão no peito e em cada centímetro da pele. E você não pode respirar, porque se você respirar, o oceano inteiro vai invadir os seus pulmões. E aí você já era.

É essa a punição para quem surfa uma onda gigante e falha. Essa experiência poderia me fazer desistir desse esporte.

Mas se eu desistisse, eu não seria eu. Sempre que entro no mar, eu sei que pode ser a última vez. Então antes de pegar minha prancha, eu conto um segredo para alguém.

E esse segredo deve ser revelado caso eu não esteja mais aqui. Daquela vez eu não morri. Mas aqui vai o meu segredo para você, Dom.

Eu só não desisti porque eu sou seu pai. Porque você me ensinou a não desistir. Vou te contar como.

Mas antes eu vou te falar um pouco do meu pai. Foi ele que me levou pra surfar pela primeira vez quando eu tinha uns cinco ou seis anos. Nós morávamos em Curicica, zona oeste do Rio, e eu estudava no colégio Santo Agostinho na Barra da Tijuca.

Era um colégio de gente rica e a minha família não era rica. A forma como eu chegava ao colégio mostra os altos e baixos que nossa família viveu. Primeiro eu ia de carro. Quando eu tinha dez anos, a empresa do meu pai quebrou e comecei a ir de ônibus. As mensalidades começaram a atrasar, passamos aperto.

Quando eu tinha 15 anos, meu pai resolveu sair de casa, deixando eu, meu irmão mais novo e minha mãe, dona de casa, sozinhos. Cada um tem seus motivos, eu já questionei os dele e hoje tento entender. Eu só voltaria a ver meu pai três anos depois. A ausência dele me trouxe a obrigação de sustentar a casa.

Foi nessa época que o surfe virou a minha vida. Eu comecei a ganhar campeonatos e patrocínios e ver no esporte uma profissão. Com o dinheiro do surfe, eu comprava as nossas roupas e as nossas refeições. Se antes cair no mar era um passatempo, uma brincadeira de criança, de repente virou uma necessidade.

Você já me disse que gostaria de ser esportista. Eu tenho que te explicar uma coisa sobre atletas. Todos eles têm um senso de competitividade aguçado e vivem para ganhar uma medalha, um troféu e poder gritar “É campeão!”, certo?

Nem sempre. Eu participava de competições no começo, mas logo descobri que o esporte poderia ser mais do que apenas competir, ganhar e perder.

As ondas no mar nada mais são do que o último passo da dança entre forças naturais invisíveis.

O sol esquenta o planeta Terra em diferentes pontos, o que gera uma variação de pressão atmosférica, que gera o vento, que gera a onda, que percorre o oceano até quebrar na praia.

O homem olhou essa dança e pensou: “Será que eu posso aprender a dançar também?” E aí criou o surfe.

Eu sou um freesurfer, um surfista livre, um atleta que pratica o esporte não para vencer campeonatos, mas pelo prazer de poder dar o último passo daquela dança. Por sorte, empresas como a Red Bull costumam patrocinar esse tipo de atleta, filmar nossas façanhas e nos levar para todos os cantos do mundo onde haja ondas gigantes, uma variação mais absurda da dança.

Por serem raras e não surgirem em todos os lugares, as ondas gigantes nunca estiveram no meu horizonte antes de um dia no México. Eu estava lá com um pessoal da Nike que gravava um vídeo com freesurfers quando o mar começou a querer dançar. Nós temos um nome para isso: swell, que é quando o mar tem ondas boas para o surfe. E aquele seria o maior swell do ano. Os melhores surfistas de ondas gigantes estavam lá. Eu olhava tudo da areia.

“Só não entro porque estou sem prancha”, eu pensei alto.

“Se teu problema é prancha, eu tenho uma aqui”, disse o Bento, um brasileiro que estava comigo. Botei a bermuda, caí no mar e peguei a maior onda do dia. Concorri a prêmios no mundo inteiro. Minha carreira nunca mais seria a mesma.

Casei com a sua mãe, você nasceu. Minha vida passou a ser cuidar de vocês e manter a busca pelo swell perfeito. Não importa onde eu esteja, o que eu esteja fazendo, se houver previsão de ondas gigantes, eu preciso empacotar meu equipamento, largar tudo e cair no mar.

As pessoas veem minhas fotos nas redes sociais em lugares paradisíacos e acham que a vida de um surfista é só festa e badalação. Elas veem o resultado, mas não veem o custo.

Antes de você nascer, eu precisei deixar sua mãe no meio da nossa lua de mel porque um swell estava se formando e eu precisava trabalhar. Já perdi datas importantes porque eu precisava perseguir a dança do mar. Em um de seus aniversários, eu decidi passar o dia com você, o que me levou a pegar a estrada correndo e perder um dia de descanso antes de um swell em Nazaré. Foi arriscado, mas deu tudo certo.

Voltamos a essa vila de pescadores, em Portugal. É um lugar bonito, de casinhas pequenas na rota de uma peregrinação religiosa tradicional. O mar ali é tão agitado quanto é pacata a vida dos habitantes. A cidade de se tornou um dos principais points do surfe de ondas gigantes no mundo.

No dia 13 de novembro de 2019, no dia que o mar me engoliu, aconteceu uma coisa muito rara: na confusão, eu demorei a puxar o fio que aciona o colete inflável. E mesmo quando ele foi acionado, o colete não inflou tanto quanto deveria. E aconteceu algo mais raro ainda. Quando um surfista de onda gigante cai no mar, ele geralmente espera passar a onda que o derrubou e sobe à superfície em seguida para respirar.

A minha onda passou e eu não consegui subir. E então veio uma segunda onda.

E eu não consegui subir. A visão ficou branca, eu já não enxergava nada.

E então veio uma terceira onda.

Naquele momento, era difícil pensar em qualquer coisa. Eu estava prestes a desmaiar, mas aquele não era um bom dia para morrer. No último segundo possível, eu finalmente cheguei à superfície. E logo voltei a escutar vozes humanas.

“Scooby, Scooby, Scooby”, era Sebastian, um amigo alemão que pilotava um jetsky. Ele me viu, me chamou, mas eu não conseguia responder, era como se eu não estivesse ali. Por instinto, me agarrei a uma prancha acoplada a seu jetsky, e Sebastian me puxou para a praia. Ele fez os primeiros socorros, eu soltei um pouco de água salgada que tinha engolido. Ele me deu oxigênio puro. Só comecei a entender o que tinha acontecido meia hora depois.

Fiquei alguns dias calado, refletindo sobre tudo. Voltei para Cascais, onde você mora com seus irmãos e sua mãe. Eu deixei Nazaré porque queria passar mais tempo com vocês. Esse é o tipo de experiência que te faz repensar toda a sua vida. Haveria um swell em Nazaré na semana seguinte, mas eu senti medo. Depois de ver a morte de perto, eu tive um bloqueio.

Se eu tivesse ficado mais alguns segundos lá embaixo, eu teria apagado e aí hoje eu não estaria aqui. E você seria um filho sem pai.

Pensei se não seria melhor voltar ao Brasil, dar um tempo, esperar o medo passar.

Mas eu tenho a sorte de ter você como filho.

Eu te levei para um parquinho de trampolins, um lugar aonde você sempre adorou ir, cheio de brinquedos para pular e fazer acrobacias. Você tinha sete anos e estava aprendendo a dar saltos mortais para trás. Eu te ajudava, mas em um momento, você caiu errado. Não chegou a machucar, mas te deixou bloqueado. Você teve medo, deve ter pensado se não era melhor deixar esse negócio de salto mortal para lá.

Era um sentimento que nos ligava. Nós paramos e conversamos. Eu nunca vou esquecer daquela conversa. Espero que você também não. Eu disse para você que o medo poderia te bloquear não apenas na hora do salto, como em vários outros momentos da sua vida. Expliquei como o medo podia te impedir de concretizar coisas extraordinárias. E você concluiu do seu jeito.

“Vou tentar de novo”, você disse.

“Se estiver com muito medo, não quero que você faça de novo. Só faça se sentir segurança. E eu vou te apoiar de qualquer forma”, eu respondi.

E você foi. E mandou um mortal perfeito.

E quatro dias depois eu voltei a Nazaré. Foi um swell perfeito. Eu surfei uma onda maior do que aquela que me derrubou. A onda da minha vida. E só existiu porque eu tenho você ao meu lado, me ensinando a viver.

Nunca é um bom dia para morrer. Mas quando esse dia chegar, espero que seja no mar, um desaparecimento tranquilo, sem sofrimento. E que você tenha orgulho do que eu fiz e de quem eu fui. Porque eu tenho muito orgulho de você, Dom, meu filho.”

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