Fábrica de pranchas de origem negra, nordestina e comandada por duas mulheres, o Congo Project é uma lição de força, determinação e talento no surf brasileiro
Por Kevin Damasio | Fotos: arquivo pessoal
Publicado originalmente na HC #333
Anne Cavalcanti nasceu em Recife, Pernambuco. Nem pensava em surfar por conta dos tubarões e de os outros picos serem mais distantes. Também morou em Ilhéus e na terra natal dos pais, Paulo Afonso, no interior da Bahia. Aos 19, prestou um concurso público e conseguiu uma vaga na Infraero de Salvador. Lá, teve seu primeiro contato com o surf onde morava, em Stella Maris. Tiala Rocha anda de skate desde os 9 e aprendeu a surfar aos 16, sozinha, junta ao irmão. Não sabia nadar, mas se lançou para o mar instigada pelos amigos da escola. Teve incentivo da mãe, funcionária pública, e do pai, que trabalha com recursos humanos, para seguir uma curta carreira de competições no surf – Brasileiro, Pro Júnior. Quando começou, era a única mulher no outside de Jaguaribe e outros picos próximos. No final de 2015, Anne e Tiala deram início ao Projeto Congo. O nome remete ao país africano cuja população resiste e persiste durante duradouros conflitos internos. Já o logotipo da marca é um mandacaru, uma planta da família cactus, comum no Nordeste e extremamente resistente. Simbolismos que refletem os caminhos e a postura diante de uma indústria predominantemente masculina.
Quando você vislumbrou que seria possível seguir uma carreira como shaper?
Anne: A ideia inicial da Congo era montar uma fábrica e usar mão de obra local. Só que a gente teve muita dificuldade com isso. A gente não conseguiu desenvolver um trabalho com ninguém daqui. Tentamos apontar o que pensávamos, mas as pessoas não aceitam.
Tiala: Não conseguiram absorver a ideia da Congo.
A: A gente foi com essa ideia da marca para um shaper local. Gostamos da prancha dele e queríamos que trabalhasse com a gente. Mas a primeira coisa que falou foi: “Por que vocês não mudam o nome de Congo para Surf House?” Eu falei: “Pô, não dá, velho, não dá.”
T: Não que a ideia dele fosse ruim, mas era muito divergente. As ideais conflitavam muito, então não teve como dar andamento com ninguém daqui. Então, Anne tomou a iniciativa de fazer. Ela já tem facilidade com o trabalho manual, com relação a manuseio de máquinas e essas coisas. E foi em busca disso.
A: Até então a gente não tinha noção nenhuma de fabricação de prancha. Começamos a ir nas fábricas, atrás de shapers. Prestando atenção. Tentando aprender. Mas, principalmente no Brasil, tem essa cultura de que as portas de fábricas são fechadas. Ninguém pode saber o que acontece lá dentro da sala de shape. Foi o que encontramos pela frente aqui. É difícil achar alguém que queira dividir esse conhecimento. Foi aí que vi esse caminho alternativo. Falei: “Que mulher que faz prancha? Tem alguém?” E comecei a bolar a ideia: “Eu mesmo vou fazer”. Me matriculei no curso [profissionalizante de shaper, do Henry Lelot, no Rio de Janeiro]. Voltei e ensinei tudo para ela.
T: A parte de laminação foi a que mais me identifiquei, que consegui absorver melhor.
A: E foi a forma que a gente encontrou de implementar nossas ideias na marca. Só tinha como ser assim, com a gente mesmo fazendo.
Como foi o curso no Rio de Janeiro, Anne?
A: O curso foi de 15 dias. A turma tinha quatro pessoas. Passamos uma semana tendo aula teórica de Shape 3D, hidrodinâmica. E uma semana na prática, fabricando a prancha. Foi legal. O Lelot é um mestre das pranchas, entende muito. Consegui absorver tudo que precisava para começar a fabricar. Enquanto a galera tinha dificuldade, eu percebi que tinha facilidade, porque minha prancha saiu bonitinha, perfeitinha. Tenho ela até hoje. Não vendo de jeito nenhum. É uma prancha mais gordinha, legal para surfar aqui na merreca. Eu surfava bastante com ela, mas deu umas quebradinhas e guardei para não machucar mais. Deixa ela ficar inteirinha.
“O que impulsionou mais a Congo foi estar nesse espaço onde não havia mulheres, representando a nossa cultura, a nossa arte.”
Nesse curso, que tipo de ensinamento você carrega até hoje?
A: Acho que a utilização do Shape 3D, principalmente para projetar as pranchas. E a questão da medição de pontos da prancha que o software proporciona, para quem projeta a prancha. O shaper que projeta na mão vai colocar uma medida de bico, uma de meio e uma de rabeta e já foi, muito padrão. E aí usa as réguas que tem para montar a prancha que o surfista quer. No Shape 3D, não. Você tem 12 medidas na prancha inteira: mede outline, a borda, a curva de fundo, o concave… Tem uma precisão muito maior, que consigo reproduzir nas nossas pranchas. É uma coisa muito importante. Aprender com o tempo, na tora, como a maioria dos shapers aprende por se envolver no processo – fica com essa lacuna, essa necessidade. Não tem noção do volume da prancha, que agora é essencial.
Quão desafiador foi seguir uma carreira como shaper, que é um universo realmente masculino?
A: Para mim, o que chamou mais a atenção não foi nem tanto o desafio. Foi mais a questão do diferencial que queria trazer. A prancha fabricada só por mulheres. É o ponto principal, o que mais contribuiu para que eu fizesse o curso. Lógico que teve desafios, que enfrentamos preconceito. Mas o que chegou para a gente, felizmente, foi a melhor parte da galera. Nosso segundo cliente foi, o Marcelo Magalhães, é nosso amigo até hoje. Só veio fazer a prancha porque eram mulheres fabricando. Ele está morando na Espanha agora, mas levantou a nossa bandeira, virou atleta comprando nossa prancha.
Nos picos em que mais caem, como é o espaço das mulheres?
A: Agora tá cheio de menina. Tem bastante menina agora. Quando comecei, não tinha tanta, mas tinha algumas.
T: Quando comecei, só tinha eu. Às vezes, aparecia uma ou outra. Mas agora tem muito mais mulheres na água. Me sinto até mais confortável.
O maior número de mulheres no outside contribuiu para essa aceitação, essa visibilidade da Congo?
A: Na verdade, não. Por incrível que pareça, a gente só fez prancha para duas meninas. Não quisemos entrar no mercado pela concepção de ver mais mulheres no mar. Na verdade, foi por uma questão mais idealista mesmo.
T: A gente idealizou, tentou sugerir para botar em prática. Não deu certo. E aí foi botar a mão na massa.
A: Foi uma falta de representatividade no mercado de prancha de surf mesmo. Tanto de representação de gênero quanto de representação cultural, artística. A gente não conseguiu encontrar algo com que a gente se identificava, que é a nossa cultura africana, nordestina. E de gênero: ter mulheres trabalhando nessa área. O que motivou, impulsionou mais a Congo foi isso, estar nesse espaço onde não havia mulheres, representando a nossa cultura, a nossa arte. Tudo que carregamos conosco, que achamos mais importante.
“Colocamos imagens que remetem às questões africanas, nordestinas. Ícones negros como Nelson Mandela, Nina Simone, movimentos como os Panteras Negras.”
Vocês já trabalham com algumas atletas da nova geração?
A: A gente fez pra Gilvanilta Ferreira [expoente da novíssima geração brasileira] uma prancha mais gordinha, para onda menor. Aqui em Salvador, não. Demos prancha para as crianças. Mas de competição aqui está muito parado, não tem muito incentivo. Então, as meninas tendem a não competir também. As que competem nos campeonatos aqui são as que moram mais para o sul. Itacaré, Ilhéus. É onde tem mais onda, mais meninas surfando. Daqui, compete mais a Dani Albuquerque, que tem apoio de um fabricante local e ganhou a última etapa do Brasileiro.
Em que ponto vocês observam que estão, em relação aos objetivos que têm? Quais já conquistaram com a Congo e o que ainda vislumbram pela frente?
A: Acho que a gente conseguiu boa parte do que imaginava, que é ver a galera aderir às nossas ideias. Perceberem a forma diferente de trabalho que a gente tem. Assimilaram o conceito da Congo e gostaram dessas ideias, que envolvem a questão da representação do Nordeste, da África. Do povo negro. Do povo nordestino mesmo. E a galera se identifica com isso, porque a maior parte dos nossos clientes é daqui do Nordeste. Então, a galera começou a se identificar e percebeu nossa diferença comparada à outras fábricas. É uma representação de gênero, é uma representação de cultura.
T: É uma forma de expressão. O objetivo maior é que a pessoa compre a prancha não só pelo produto em si. Trazemos questões artísticas e culturais que agregam esses valores à pessoa. Vai comprar a arte, a cultura, e de mulheres. Isso que queremos que as pessoas entendam, para entrarmos nesse segmento. E até mesmo botar em prática esse tipo de coisa.
Em relação ao aspecto cultural, tanto nordestino como africano, como isso reflete no trabalho de vocês na prancha?
T: Na marca, principalmente. É um cacto, o mandacaru, que representa simbolicamente o Nordeste. O nome Congo remete ao país africano. Colocamos imagens que remetem às questões africanas, nordestinas. Imagens relacionadas ao conceito. Geralmente, temos no mercado pranchas muito americanizadas. Não encontramos a nossa cultura. E a gente tenta isso. Colocamos imagens de xilogravura, ícones negros como Nelson Mandela, Nina Simone, movimentos como os Panteras Negras. Um rapaz mesmo que comprou da gente gostou da imagem de Malcolm X. Queria que botasse na prancha dele, só que não sabia quem era Malcolm X. Gostou da ilustração e aí perguntou e passamos esse conhecimento para ele. O objetivo é esse: que as pessoas se interessem por aquilo que não sabem e busquem a informação.
A: Também temos imagens de um pintor africano, Aboudia, que licenciou para a gente, de graça. Mostrei para ele qual é o conceito da Congo, e ele disse que podemos colocar. Parte da arte dele foi feita durante a guerra em sua terra, a Costa do Marfim. Todo mundo vazou do país, com medo da guerra, e ele ficou assistindo e retratando pelas pinturas. Depois disso, fui procurar as imagens dele na internet e vi que algumas pinturas são vendidas a milhões de dólares.
“A gente vem para bater de frente justamente com isso que você falou. Mas ainda é muito forte no surf. No mar, principalmente, há uma falta de respeito com as mulheres. As coisas que a gente escuta são absurdas e não vale à pena nem reproduzir aqui”
No Brasil, em geral, a gente vive uma onda muito conservadora, com muito ódio, preconceito, racismo, violência contra mulher. A impressão que dá é que essa onda voltou a se fortalecer, no mesmo momento em que rolam movimentos de empoderamento feminino e contra o racismo. Duas coisas que crescem juntas. Como vocês veem isso no surf em si? Ainda há muito machismo e racismo no outside, na indústria?
T: Ainda tem muito. Tem uma galera se levantando, como a gente. Que tenta se colocar contra o sistema.
A: A gente vem para bater de frente justamente com isso que você falou. Mas ainda é muito forte no surf. No mar, principalmente, há uma falta de respeito com as mulheres. As coisas que a gente escuta são absurdas e não vale à pena nem reproduzir aqui.
T: Às vezes, é mais indiretamente. Estamos ali do lado e acabamos ouvindo. É uma situação bem desagradável.
A: As coisas que a gente escuta no mercado de prancha também… “Ah, mulher só faz prancha para mulher, né?”
T: Tem essa questão também. Pelo fato de sermos mulheres, provavelmente faremos pranchas só para mulheres. Prancha é o material que nós fazemos, independente de ser mulher ou homem. Com relação ao racismo no mar, eu não vejo mais. Nunca vivenciei nada nem no mercado de prancha.
A: Mas o racismo é bem sutil no surf. Veja o Mundial.
T: É, no Mundial é. Mas aqui na Bahia tem muita gente negra no mar. Em relação ao fato de ser mulher, o preconceito é mais forte, eu acho. Até mesmo na onda. O cara rema em sua onda, não respeita, não quer nem saber se você sabe ou não sabe surfar. Tem que respeitar todo mundo. Isso é bem grave.
A: A Congo existe para impactar e mudar o pensamento de várias pessoas em relação a isso.