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Muito Além do Tour

 


Dane Reynolds, em algum lugar do Caribe. Foto: Ryan Miller

Por Fernando Maluf

“Competir é irado se você consegue se manter inspirado, mas rankings e troféus significam muito pouco para mim.”

Assim, Dane Reynolds, um dos surfistas mais empolgantes de toda uma geração, frustrou metade do mundo do surf e despediu-se oficialmente das competições. A explicação curta e simples do atleta na verdade esconde toda uma crescente cena no surf profissional.

Atrás da bandeira carregada por Reynolds vem um grupo de surfistas que, ao construir suas carreiras longe dos palanques, alcançou e mostrou ao mundo novos patamares de performance no surf. Jamie O’Brien ganhou o PipeMasters aos 21 anos e em seguida queimou publicamente o livro de regras da ASP. Bruce Irons foi um dos maiores ícones do final dos anos 1990 e começo de 2000, frequentemente colocado acima de seu irmão Andy, antes mesmo de entrar no WCT. Marcelo Trekinho abandonou precocemente os campeonatos e manteve seu lugar e sua imagem de um dos mais modernos e criativos surfistas de sua geração, sempre distante de notas, pontos e juízes.

Esses são só alguns dos exemplos que fizeram as marcas envolvidas com o surf enxergarem, cada vez mais, um bom negócio no freesurf. “Um freesurfer tem tempo para ficar mais próximo e manter um relacionamento melhor com a mídia. Isso pode ser mais importante para um patrocinador do que um bom resultado em um campeonato”, afirma Sávio Carneiro, ex-surfista profissional e team manager da Rusty Brasil. Nomes como Craig Anderson, Marco Giorgi, Chippa Wilson, Jay Davies e Ricardo dos Santos são só alguns dos que fazem o time internacional de freesurfers tão ou mais admirado que os tops do WCT. E esse time não deve parar de crescer tão cedo. Mas a cena também levanta alguns questionamentos. Até onde vão as ambições de um surfista que abandonou as competições? Qual sua posição no mercado? Quão influentes são suas performances?

PRIMEIROS PASSOS 

Os esboços do que hoje chamamos de freesurfer profissional começaram a aparecer na década de 1980. Quando os melhores e mais exóticos picos ao redor do globo eram distantes do circo competitivo e as tecnologias mais recentes de previsão de ondas simplesmente inexistiam, qualquer surftrip mais elaborada exigia um planejamento que fugia à rotina de um surfista que disputava, etapa a etapa, o título do Circuito Mundial.

Aos poucos, começou a parecer interessante para algumas marcas bancar um surfista para levar seu logotipo aos rincões perdidos e cheios de ondas perfeitas de lugares como Mentawaii, Filipinas e Fiji. Considerando a importância das acirradas brigas por um valiosíssimo título mundial, produzir esses vídeos e imagens virou tarefa de um suposto “time B” das marcas – surfistas que não corriam mais o Tour. Surgiram então os chamados phototrip surfers, voltados somente para a produção de materiais para propagandas, revistas e filmes. Mas o negócio era arriscado, e o cálculo do que valia mais, um tubão em Desert Point ainda isolado ou um terceiro lugar numas merrecas japonesas, era muito difícil de ser feito.


Dave "Rasta" Rastovich. Foto: Childs/A-Frame

Em 1990, Tom Curren venceu seu terceiro título mundial, competindo na maioria dos eventos desde as triagens, vencendo sete deles e estabelecendo o novo record de etapas conquistadas em uma temporada. Então, aos 26 anos, o californiano abandonou de vez as competições e passou a dedicar a maior parte de seu tempo a viagens com o projeto The Search, da Rip Curl. Alimentados por uma saudável competição pelos melhores filmes entre as três gigantes do surfwear mundial, Curren e companheiros de equipe, como o sul-africano Frankie Oberholzer, passaram a compor um dos primeiros grupos de surfistas profissionais não competidores pagos exclusivamente para produzir material para revistas em nome de seus patrocinadores.

Em 1996, Brenden Margienson chegou a vencer de maneira espetacular o Nias Indonesian Pro, então uma etapa 3 estrelas do WQS, em direitas ultratubulares de 6 a 8 pés. Mas, por vontade própria – e com o consentimento de seu patrocinador –, Margo, como é conhecido, preferiu construir sua carreira longe dos palanques, produzindo imagens com seu surf polido em picos paradisíacos e transformando seu talento em anúncios, vendas e dinheiro para os cofres da Billabong. Pouco depois, nomes como Dave Rastovich, o Rasta, e Donavon Frankenreiter engrossaram o time de freesurfers desta marca e ajudaram a galgar o espaço dos não competidores no início do novo milênio. A partir daí, diversas outras marcas de surfwear passaram a dar atenção ao emergente universo do freesurf, e em poucos anos a modalidade se moldou a logísticas e infraestrutura para a realização das expedições fora do circuito.

FREESURF OU BIG SURF? 

No Brasil, um dos primeiros atletas a ganhar a vida como freesurfer foi Carlos Burle. O pernambucano competia no circuito nacional e em eventos no exterior, mas, sem grandes resultados, começou a dedicar-se ao surf de ondas grandes. Isso foi no início dos anos 1990. O caminho de Burle foi o mesmo do californiano Brad Gerlach, que chegou a ser vice-campeão mundial da ASP em 1991. Burle e Gerlach juntaram-se a nomes como Laird Hamilton e Mark Foo, pioneiros não só em ondas grandes mas também na construção de nomes respeitados longe do surf de competição. Assim, no começo de ambas as histórias, big surf e freesurf se misturavam. Ao mesmo tempo que escapar dos circuitos da ASP era o único jeito de dedicar-se plenamente à busca por ondas gigantes, a busca pelo freesurf acabava em swells gigantescos ao redor do globo, mas em pouco tempo as modalidades seguiram caminhos distintos.

“Hoje em dia já há uma diferença entre big surf e freesurf. Não são exatamente a mesma coisa”, diz Felipe Cesarano, freesurfer e big rider carioca. “Um dos meus objetivos hoje, por exemplo, é ganhar o Big Wave World Tour (campeonato mundial de ondas grandes)”, continua. Antes do surgimento desse circuito, os campeonatos do tipo eram eventos isolados, sem um ranking organizado e com participação permitida somente via lista de convidados da organização – como no Quiksilver in Memory of Eddie Aikau ou o Mavericks Surf Contest.

Ainda assim, mesmo as competições de ondas grandes como o BWWT dependem de algo inerente ao freesurf: muito tempo disponível. A chance de alguma etapa não rolar devido à ausência de ondulações gigantescas sempre existe. E, apesar do recém-criado circuito, a maior competição de ondas grandes do mundo, o Billabong XXL, é quase inteiramente baseada em sessões de freesurf.

QUEBRA CABEÇA

O freesurf profissional no Brasil cresce acompanhando o ritmo do esporte como um todo. Se por um lado a etapa nacional do WCT é a mais bem-paga e os nomes brazucas parecem estar mais próximos do que nunca do inédito título mundial, a turma que leva o melhor do surf verde-amarelo para longe dos palanques e para perto da mídia do mundo inteiro não para de aumentar.

No final do ano passado, Ricardo dos Santos, hoje com 22 anos, uma das grandes promessas tupiniquins dos últimos anos, optou pela carreira de freesurfer. Parece uma decisão difícil para um atleta que tinha 21 anos, no auge de sua forma física, sonhando em entrar para o Tour e disputar o título mundial. “Eu já vinha pensando bastante nisso, mas na verdade a iniciativa mesmo foi da própria Billabong”, conta o jovem catarinense. O freesurfer australiano Dion Agius tem história parecida. “Eu corri o WQS por um ano inteiro, mas não tive resultados muito bons. Foi quando eu comecei a surfar pela Globe e eles logo me disseram que eu não precisaria mais disputar o circuito”, falou o atleta à revista Surfer, no final de 2011. A posição das marcas mostra que o freesurf, de fato, tornou-se uma vertente lucrativa do esporte e atrai alguns atletas com performances que podem extrapolar o Circuito Mundial.


Clay Marzo, Hawaii. Foto: Epes/A-Frame

Para Sávio Carneiro, o business extra Tour pode ser mesmo mais interessante para uma marca, ao contrário do que pensam muitos. E investir num freesurfer, atualmente, possibilita maiores chances de retorno do que em um competidor. “A maioria das marcas tem pelo menos um freesurfer em sua equipe”, explica o team manager. “Acompanhar o circuito bancando todas as passagens, estadias e inscrições é muito caro, e o retorno ainda vai depender do resultado conquistado pelo atleta”, continua o pernambucano. Para Ricardinho, é mais fácil conquistar espaço nos meios de comunicação sendo freesurfer. “Além de poder dedicar-se com mais tranquilidade às ondas certas, você não precisa disputar e superar outros 300 surfistas por campeonato”, analisa o catarinense.

São muitas variáveis, mas a equação não tem mistério: as condições no campeonato nem sempre são as melhores, as atenções da mídia serão concentradas em dois ou três surfistas e o próprio tempo dentro d’água, ao todo é muito menor. Num campeonato de 4 dias, o surfista que chegar à final surfa, no máximo, 7 baterias, ou seja, três horas e meia. Uma só tarde de surf em ondas boas já é suficiente para conseguir mais e melhores imagens para divulgação e campanhas. A liberdade experimentalista do surf longe do palanque também permite performances de outro nível, com equipamentos alternativos e propostas diferentes da alta performance “mecânica” de campeonatos, como sessões de alaias, com pranchas alternativas e ondas de diversos tipos. Tubos fechando, drops arriscadíssimos e aéreos mais altos e estranhos, mesmo que se tenha perdido a onda inteira pela decolagem, são atitudes normais no freesurf e pouco comuns na frente dos juízes.

Apesar da suposta facilidade para conseguir um maior destaque na mídia, estar afastado das competições não significa que o surfista não tenha obrigações enquanto profissional. “Não há uma regra selada quanto ao objetivo ou às metas dos nossos freesurfers”, explica Sávio. Mas existem alguns deveres mais básicos. Segundo ele, todo freesurfer tem que fazer pelo menos quatro viagens a cada temporada: Hawaii, Indo, México e Tahiti. Além disso, é necessária atenção constante às movimentações oceânicas de todo o planeta e à logística das viagens. Estar presente nas chamadas “ondulações do ano”, como a de Teahupoo em agosto do ano passado, é uma obrigação. E nesses lugares, a suposta camaradagem do freesurf some para dar lugar a um ambiente nem tão “free” assim. As maiores e melhores séries são disputadas pelo crowd mais qualificado e preparado do planeta, e não conseguir destacar-se nesse momento equivale ao último lugar em qualquer campeonato. Em sessões de freesurf como em Noronha, nos dias do Hang Loose Pro, a disputa pelo melhor drop na praia do Bode, vizinha à área do campeonato, na Cacimba, chega a ser selvagem, tudo em nome da melhor foto para o patrocinador.

Outro ponto que aproxima o dia a dia de um freesurfer do ambiente competitivo é a necessidade de uma rotina diária de treinos. Gordo explica: “Eu posso fazer o que eu quiser, mas tenho que pegar onda todo dia”. Já Ricardinho diz que o buraco é mais embaixo, e que ser freesurfer, antes de tudo, é ser atleta: “Treino todo dia, independente se dá onda ou não. Pra surfar onda grande, tem que ter preparo. Não dá pra pensar em ser atleta profissional sem treinar todo dia”, conta o local da Guarda do Embaú.


Marco Giorgi, Cloudbreak. Foto: Rafaski

QUEM É O MELHOR?

Considerando-se a competição silenciosa nos line ups mundo afora, o nível de performance atingido em sessões de freesurf, a repercussão de cada novo vídeo ou manobra batizada em blogs e a disposição exclusiva para a busca das melhores condições, permanece uma dúvida: o melhor surfista do mundo pode ser um nome que não está nos rankings? Quem é esse surfista atualmente?

Kelly Slater é uma resposta quase unânime. E fora ele? “Shane Dorian”, responde Felipe Cesarano, sem hesitar. O havaiano teve boa trajetória no WCT e chegou a destacar-se em algumas competições, mas não é a esse momento de sua carreira que se deve o título concedido por Gordo. “A atitude dele em mares sinistros e ondas de consequência é uma coisa que nenhum outro surfista no mundo tem.”

“A questão do melhor do mundo sempre vai ser complicada”, diz nosso colunista Julio Adler. “A competição pode ter suas falhas, mas sempre será uma medida. Assim como o big surf: pra saber quem surfou a maior onda, é só medir. Já performance é algo subjetivo, vai ser sempre muito difícil falar que um cara é o melhor sem ter resultados”, continua ele. “O próprio Dane Reynolds, se não tivesse humilhado caras como Joel Parkinson e Taj Burrow nos anos em que correu o Circuito Mundial, não teria a exposição que tem”.

Ricardo dos Santos tem opinião diferente: “O título de melhor do mundo deve ir para o cara que faz coisas fenomenais, que cria coisas novas. O Dane Reynolds não pode deixar de ser considerado o melhor do mundo só porque parou de competir”, afirma. Para Ricardinho, o melhor do mundo pode ser alguém com mais variáveis, estilos e ousadia em diversas condições de mar ou cultura. “As competições nunca vão medir quem é o melhor surfista. Olha o último Nike Lowers Pro, por exemplo. O vice-campeão (o irlandês Glen Hall) não era nem de longe o segundo melhor surfista daquele evento.”

É pouco provável que algum atleta negue ou recuse o título de melhor do mundo caso este alguma vez lhe seja concedido. Mas, ao abrir mão da vida entre baterias e rankings, o estado de desprendimento do atleta já o ajuda a conquistar o título de surfista de alma, que vê o surf como algo sem horário, sem bater cartão, sem autógrafos na frente do palanque. Para quem atinge esse patamar, qualquer espécie de título parece sem valor.

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