Por Kevin Damasio
HC #329, junho/17
Ali Kassem estava decidido. Já havia meses que o sírio, então com 14 anos, observava alguns locais surfarem em Jiyeh. Até chegar àquela cidade litorânea do Líbano, 28 km ao sul da capital Beirute, Kassem nunca vira o mar, apesar de haver praia em seu país. Nem imaginava o que era o surf. Mas ficou encantado.
Quando encontrou um pedaço de isopor no lixo, Kassem o recolheu e cortou com uma faca. Em um dia frio de abril de 2015, ele entrava no gelado Mar Mediterrâneo, com aquele bloco em forma de prancha. Ali Elamine, libanês-americano de 34 anos, e um amigo saíam da água quando viram o garoto se aventurar no desconhecido, sem leash nem wetsuit. Eles chamaram Kassem de volta à areia, mas o garoto se recusava.
“As ondas estavam grandes enquanto eu entrava”, lembra Kassem, no minidoc The Refugee Surfer, da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR). “Ali e Ahmad falavam para eu sair, perguntavam se não tinha medo de me afogar, mas eu disse que não, que queria tentar.”
Elamine convenceu Kassem a sair do mar. Deu-lhe dicas de segurança e, mais tarde, uma prancha de verdade, roupa de borracha e aulas de surf. “Na primeira onda que peguei”, conta Kassem, o sírio de 16 anos, “eu consegui ficar em pé. Eu amei isso. Volto todos os dias. É um sentimento incrível.”
Kassem precisa se sair bem nos estudos para acompanhar a galera da Surf Lebanon, escola e loja de surf fundada por Elamine. E tem tido resultado. Em pouco tempo, já arrisca uns aéreos e pega uns tubos no beachbreak do Oriente Médio. No outside, Kassem finalmente se desconecta do mundo exterior. No mar, o sírio deixa de lado o status de “refugiado” e se torna um surfista.
Ao descobrir o surf no Líbano, Ali Kassem voltou a sorrir após a fuga da guerra que assola a Síria. Quando a paz retornar, ele quer reconstruir sua cidade, Aleppo, e seu país, por meio das ondas.
Kassem nasceu em Aleppo, no norte da Síria. Sete anos atrás, a cidade era a mais populosa do país. Mas uma complexa guerra a transformou em escombros e provocou o êxodo de quem sobreviveu entre os 2 milhões de habitantes.
No calor da Primavera Árabe, em 2011, o povo da Tunísia conseguiu derrubar o presidente Ben Ali. Países vizinhos seguiram o mesmo exemplo. No Egito, o ditador Hosni Mubarak foi destituído e preso. Na Líbia, Muammar Gaddafi foi deposto e morto. No Iêmen, Abdullah Saleh deixou o poder.
Os cidadãos sírios foram às ruas contra um governo que controla o país há 46 anos, mas as primeiras manifestações pacíficas foram duramente reprimidas pelo ditador Bashar Al Assad, sucessor do pai e no poder desde 2000.
A violência imposta pelo governo intensificou a revolta. O povo continuou nas ruas. Os insurgentes mais radicais contaram com as armas e táticas de guerra fornecidas pelos Estados Unidos. No meio dos rebeldes, havia membros do grupo extremista então autodenominado Estado Islâmico do Iraque e do Levante, de acordo com o jornalista irlandês e correspondente do The Independent no Oriente Médio, Patrick Cockburn, que acompanha o conflito em campo desde o início e publicou o livro A Origem do Estado Islâmico.
De olho nos lucrativos campos de petróleo, entraram em cena os protagonistas da Guerra Fria e de boa parte dos conflitos civis que se seguiram, principalmente no Oriente Médio e na África. De um lado, os Estados Unidos e aliados apoiam os rebeldes. Do outro, a ditadura de Assad conta com o amplo apoio da Rússia – por barrar sanções e resoluções contra os crimes de guerra cometidos pelo governo sírio, o país perdeu sua cadeira no Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas.
No meio deste caos político e bélico, os civis são os maiores prejudicados. Na Síria, mais da metade dos 22,5 milhões de habitantes foram afetados. Conforme o Relatório Mundial 2017, da Human Rights Watch, até fevereiro de 2016 houve 470 mil mortos e 117 mil detidos ou desaparecidos na mão de forças governamentais. Já 4,8 milhões fugiram para outros países, 6,1 milhões são deslocados internos e 1 milhão permanecem em áreas de risco, sitiadas pelos vários atores da guerra.
Em 2012, um irmão de Ali Kassem entrou para a lista das vítimas do conflito. Saiu de casa para comprar pão e ainda estava na padaria quando o estabelecimento foi bombardeado. Logo depois, a família fugiu para o Líbano. Kassem tinha 11 anos e da sua terra natal só lhe restou uma memória confusa do pesadelo que viveu.
O Líbano é um pequeno país no centro do Oriente Médio, cujos 10 mil km2 de área equivalem, por exemplo, a metade do território do estado de Sergipe. A oeste está o Mar Mediterrâneo. Ao Sul, Israel e Palestina. Ao Norte e Leste, é envolvido pela Síria. Mais a Leste fica o Iraque.
Constantes guerras nos países vizinhos impulsionaram o fluxo migratório para o Líbano, apesar dos conflitos internos. O país de 4,1 milhões de habitantes acolhe 1 milhão pessoas em situação de refúgio, de acordo com dados da Acnur. Kassem vive em um apartamento com os pais e quatro irmãos.
Nos anos 1980, o Líbano estava no meio de uma guerra civil que durou 21 anos, de 1975 a 1991, entre milícias cristãs e muçulmanas. Um grupo de no máximo 10 pessoas, entre elas Mustafa el-Hajj, buscava a paz nos beachbreaks libaneses. Eram os pioneiros do surf no país.
“Eu comecei a surfar quando tinha uns 16 anos. Estava sozinho, com meu primo”, contou Hajj ao site Al Monitor. “Era difícil conseguir o equipamento para surfar, como pranchas e quilhas. Nós parávamos as pessoas e dizíamos: ‘Ei, espera, vem surfar com a gente’. Tinha cinco ou 10 pessoas, mas o esporte não se desenvolvia.”
O cenário tomou corpo em 2011, quando Ali Elamine mudou-se da Califórnia para suas raízes, no Líbano. Em setembro de 2012, Elamine fundou o Surf Lebanon. Atualmente, uma centena de locais encaram as ondas daquela faixa do Mediterrâneo. Entre eles, o “Pequeno Ali”, como Elamine se refere ao sírio Kassem. “Ele é um ser humano, no final das contas. Respira e sangra. Não olho para ele como se fosse de país ou religião diferentes. Ele simplesmente tem fome de surfar. E essa é a única coisa que importa”, diz Elamine.
Em dois anos no surf, Kassem já almeja viajar pelo mundo para surfar e competir. Também quer voltar para a Síria, logo que a guerra terminar, para reconstruir seu país e construir uma escola de surf. “Quando estou na água, eu esqueço de tudo”, revela Kassem. “Mesmo se tiver algo na mente, uma vez que entro na água eu esqueço. O surf mudou tudo na minha vida.”
Esta reportagem foi originalmente publicada na HARDCORE #329, de junho de 2017