Por Taylor Paul | Fotos Corey Wilson
HC #320, agosto/2016
Snap-crackle-crackle-pop.
O barulho da fogueira ecoa nos pedaços de gelo enquanto Mick Fanning e Mason Ho – ainda de wetsuit e botas – aquecem as mãos nas chamas. Um novo swell está a caminho, eles estão quase certos de que ondas virão. E esperam.
Pop-crackle-snap.
“Precisamos que aquele pedaço vá embora para que a gente pegue um grande swell”, exclama Mason apontando para frente. “Quero muito essas esquerdas.”
“Lembra daqueles últimos swells de leste, que trouxeram muito gelo?”, pergunta Mick. A água lá fora é simplesmente um campo minado de pequenos cubos de gelo.
“Talvez”, diz Mason. “Mas precisamos fazer isso, não importa. Quando você terá uma chance dessas de novo?”
Quase um quilometro à frente, uma geleira de 150 metros de altura surge ao fundo de uma calma baía, da mesma maneira que o “The Wall” do Game Of Thrones. Mick e Mason vieram aqui ontem quando o mar ficou flat, um desvio de rota; a região parece não ter mudado desde a Era Glacial. Mas quando um pedaço de gelo do tamanho de um quarteirão de uma cidade caiu e gerou um swell de 10 pés, que se metamorfoseou em três esquerdas perfeitas, não havia escolha a não ser voltar naquele dia para surfar essas ondas.
Mick atira fluido de isqueiro nas chamas. O fogo chia.
Crackle-crackle-crackle. Crackle-snap-snap. Snap-pop… BOOOOM.
Em um solavanco, eles viram-se para a geleira. Um pedaço de gelo do tamanho de um freezer cai na água. Depois, um Ford F-350. Na sequência, um apartamento.
“Lá vamos nós!”, grita Mick enquanto vários armários desprendem-se da geleira. No tempo em que o estrondo da colisão alcança seus tímpanos, eles já estão em disparada na água, em ziguezagues pelas pedras e deslizando pelos icebergs como policiais em escolta no gueto. Os fotógrafos apressam-se em montar tripés e colocar lentes.
Mick e Mason tateiam o banco de areia com os pés, pisada por pisada, tentando descobrir para onde ir. Todos gritam. Eles pulam na água e remam em direção à geleira; a água na beira é sugada como se fosse puxada por um canudo. Pedaços de gelo vão e vêm sobre as pranchas. Eles não estavam atrás de uma onda glacial – aliás, nenhum deles sabia que algo assim sequer existia – mas aqui estão eles prontos para a aventura.
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Essa viagem apareceu em ótima hora para Mick
Depois de uma montanha-russa de emoções em 2015, que incluiu vitórias no World Tour, um ataque de tubarão, a separação da esposa e a morte do irmão no curso da corrida pelo título, ele descobriu que havia chegado ao limite de dramas da sua vida por uma década, e optou por um 2016 sabático. Para viajar pelo prazer. Para descobrir se a competição ainda é sua paixão, se viagens como essa trazem o equilíbrio ideal para sua carreira. Então, após competir em Snapper Rocks e Bells Beach – e enquanto seus companheiros do Tour voavam de Melbourne a Perth para perseguir picos em Margaret River – Mick foi para o norte, em busca de perspectivas.
“Estamos tentando explorar 34 mil milhas de costa a 8 mph”, explica o Capitão Mike no momento em que adentramos em sua embarcação, um barco pesqueiro de 60 pés (18 metros), totalmente reformado para expedições de surf.
“Não sei dos números, mas acho que seria preciso mais de uma vida para uma varredura completa nesse local”, explanou o Capitão.
Uma vida? Temos uma semana. Veremos o que conseguimos fazer. Scott – fotógrafo e piloto de drones – nos dá uma amostra de nossa nova casa. Malas e corpos nos beliches. Pranchas e cervejas no andar de cima. Os wetsuits de sobrevivência estão aqui. Protetores de ouvidos também. Apenas não caia na água.
Por toda a parte: beleza.
Em lugar nenhum: sinal de celular, Wi-Fi, besteiras.
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Tão logo saímos da baía, Mick assume expressão pensativa enquanto contempla a grandiosidade do entorno. As montanhas surgem a 1.500 metros de altura do nível do mar. Uma tonelada de leões-marinhos nadam ao redor do barco. As águias-de-cabeça-branca, também conhecidas como águias-carecas, circulam nos termais, próximas dos cumes, com suas envergaduras que superam a de Mason Ho.
“É como passear pela galeria de arte da natureza”, diz Mick, curtindo cada pedaço da paisagem.
Mason é mais eloquente ao manifestar aprovação.
“O quão absurdo é tudo isso?!”, ele diz enquanto aponta o celular para a cadeia de montanhas, “CHEEEEE-HOOOOO!”.
Golpeia a tela alguma vezes e segura o telefone para gravar suas palavras novamente, com uma voz única – se um esquilo falasse, seria mais ou menos parecido. Ele ri, e depois todo mundo ri, porque a risada de Mason é tão contagiante quanto qualquer resfriado.
Tudo é maior aqui – as montanhas, as praias, as árvores – e as ondas parecem insurfáveis. Estão na altura do calcanhar e tem a costa de pedras. Ainda assim, Mick e Mason viajaram muito para chegar até aqui, e estão ansiosos para o primeiro banho.
Mike e Scott disseram que a água tem a temperatura na casa dos 40ºC negativos, mas não há referências, o quão gelado isso é de fato.
Ambos colocaram toda borracha que podiam – um wetsuit Flashbomb 5/5mm Zip Free com capuz, luvas de 5 mm e botas – e pularam do deque para a água. Considerando que Mason vem do Havaí e está propenso a reações teatrais com relação à maioria das coisas na vida, esperamos por um pouco de comédia após seu primeiro mergulho. Mas quando ele ressurge na superfície, seu semblante é de puro alívio.
“Não é nem um pouco desconfortável”, diz Mason. “Apenas o frio no rosto.”
Mick está na mesma, e a dupla rema decidida para o lineup.
O surf não está na altura do calcanhar. Está na altura da cabeça e as condições são as melhores possíveis. Assim que eles acertarem o pé na parafina, muito mais dura que o normal, eles estarão surfando ondas “playground” no estilo D-Bah ou Rockies australianas. Enquanto atravessam as ondas, eles mapeiam as vias perfeitas de snowboard no alto das montanhas; procuram por águias nas árvores e aproximam-se um do outro quando um leão marinho curioso chega mais perto com seus olhos negros e salientes. Tudo é maior aqui – exceto eles. Sua presença nesse lugar imponente é absolutamente trivial, a escala da paisagem os faz sentirem-se pequenos, vulneráveis e muito vivos.
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A vida no barco é vida vagarosa
Come-se porque está entediado. Duas sonecas por dia – d-e-v-a-g-a-r. Café depois das 11h e antes das 16h – devagar também. Oito milhas por hora – devagar. Daí reduz-se a velocidade pela metade e você percebe em dobro o quão lento está.
Algumas de nossas observações:
• Qualquer história oferecida por Mason é uma oferta que você deveria aceitar;
• Bolachas doces fazem passar enjoos a bordo;
• Quando você faz xixi no mar de noite, o oceano ilumina-se com as bioluminescências;
• Os locais – Mike e Scott, nesse caso – são mais durões que você. Com 60 anos, Mike é sempre o primeiro a sair e o último a entrar. Homem de meia-idade, Scott escorregou e quebrou a perna em uma pedra. Não se abalou. Tomou alguns anti-inflamatórios e continuou filmando Mason e Mick. No dia seguinte, o levamos para a cidade e ele foi operado naquela mesma tarde;
• Os pontinhos brancos abaixo da linha da neve são cabras. Ou neve;
• Os pontos brancos nas árvores são águias-carecas;
• A águia-careca que você acha que está vendo pode ser uma gaivota ou uma águia negra;
• Quando o cardápio do barco inclui pratos como “Urso pardo assado”, “Leão-marinho ensopado” e “Churrasco de baleia”, você não pergunta o que há para o jantar, apenas come;
• Quando as condições permitem, você surfa, porque elas podem mudar a qualquer instante.
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Uma conversa entre Mick e Mason antes da melhor sessão da trip
Mick: Olhe aquilo! Aquela seção!
Mason: Brother, não está nem perto comparada com a que vi mais cedo.
Mick: Sério?
Mason: Juro que vi uma que parecia ter uns 8 pés, tubo de 10 segundos! Tão espaçoso quanto Backdoor.
Mick: Vamos nessa.
Mason: Brother, o que eu faço? Pego a 6’3”?
Mick [passa parafina]: É como esfregar cubos de gelo na prancha [pula na água]
Mason [pergunta para ele mesmo]: Será que preciso da 6’3”?
Mick [saindo do leme]: Você vai ficar falando sobre isso ou vai surfar?
Mason: Ah, cara, eu sabia que gostava de você. Você me lembra meu pai.
Ao se aproximar do terreno montanhoso com sua 6’3”, Mason percebe que as ondas pareciam mais manobráveis do barco. A maré está cheia, o período curto e as ondas quebram perigosamente próximo das pedras. Mas como Mason se aproxima das pedras com a maleabilidade de um ginasta que cai sobre blocos de espuma, ele senta no outside e espera por sua onda “a la Backdoor”.
Mason vê uma cabra no topo da montanha: “Como será que ela chegou até lá?!”.
Ele espera.
Em círculos, uma águia sobrevoa a dupla. Ele espera. Depois de uns 20 minutos, sua onda finalmente aparece. Ele está muito para dentro, mas abaixa a cabeça, rema e se joga. Completa o drop, faz o bottom e bota para dentro de um tubo quadrado a menos de 10 metros das pedras. A onda fecha e ele é amassado em algum lugar no meio do caminho. Instantes depois, levanta ileso.
“Brother,” diz o havaiano com os olhos quase arregalados enquanto rema de volta. “Se você pudesse ver o que vi naquele tubo! Só pedras no meio do caminho enquanto eu estava lá dentro! Juro que pareceu ter a mesma densidade que Backdoor.”
Depois de mais algumas tentativas e uma quilha perdida em uma pedra que “apareceu do nada”, ele decide acompanhar Mick em uma seção mais surfável, mais abaixo do pico. Na medida em que Mason se aproxima do lineup, Mick pega uma onda da série – altura acima da cabeça – e manda sprays d’água perfeitamente intervalados – se a onda respirasse, seria desse jeito.
Nenhum problema com a borracha.
Pelas próximas horas, Mick deixa claro para todos que seu surf está afiado como nunca. Sim, foram esses turns afiados que moldaram sua carreira, mas seu surf também está mais solto. Alley-oops, aéreos gigantes e sorrisos maiores. E, enquanto ele surfa sem juízes, martela “notas” 8 e 9, como se estivesse em uma decisão de título mundial. Mas, obviamente, não há nada disso.
“O surf não é minha prioridade aqui”, diz Mick mais tarde, vestindo um chapéu no estilo “Mad Bomber” que o faz parecer mais um caçador da floresta do que surfista. “Minha prioridade é explorar uma terra da qual não sei muito a respeito.”
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Snap-pop-pop.…BOOOOOM
O swell glacial se aproxima em ritmo não glacial e Mick e Mason escolhem seu lineup quase com um “uni-duni-tê”.
Eles não fazem ideia.
Eles nunca surfaram nesse lugar antes, ninguém nunca o fez, então eles abrem espaço para palpites. As pranchas estão sobre os stand ups, eles esperam que o poder de remada do SUP contorne qualquer erro de cálculo com relação ao lineup escolhido.
Só que não.
Sentados muito para baixo do banco de areia, eles miram as esquerdas – distantes e na altura do peito – desmancharem uma por vez no pico.
“Não, não, não!” – grita Mason enquanto acelera a remada em direção à onda.
Mick aceita a derrota e observa a onda, boquiaberto. Mason perdeu a maior e melhor, mas persiste e consegue chegar no rabo da última onda da série. Ele sai do SUP, pega a prancha e pula em direção à onda. Sobra tempo para uma passada e uma rápida visita ao lip antes que a onda perca força.
“É a onda de 1 pé mais legal que já peguei em vida”, diz ele, em êxtase e insatisfeito. Sabe do potencial dessa onda. E para um cara que adora descobrir novos picos, esse é o Santo Graal. “Precisamos nos preparar para a próxima.”
Snap-crackle-crackle-pop.
Eis que chega a próxima chance, um swell combinado por simultâneos desprendimentos das várias faces da geleira. Mick persegue uma direita, mas o gelo está muito denso para que ele alcance o pico. Mason rema e sobe em um pequeno iceberg. Quando a onda chega, ele salta, dropa atrasado e aterrisa sobre um cubo de gelo, decepando a quilha do meio. “Próxima!”
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Crackle-crackle-pop.
Há alarmes falsos. Rolaram alguns grandes desprendimentos e a dupla vai ao encontro da costa, só que a onda não está lá.
Das duas uma: ou o grande pedaço de gelo não caiu diretamente na água ou uma pequena península bloqueou o swell. Eis a incerteza viciante que o surf agrega em nosso cotidiano, e eles aprendem na jornada, cercados por geleiras e icebergs, rindo e festejando todo aquele grande absurdo. Do outro lado do mundo, algum campeonato entra em espera – on hold.
Crackle-crackle-crackle.
Um swell de leste e período generoso proporciona a última tentativa na onda glacial. Mick perdeu a esperança de surfar com a pranchinha e rema sobre um stand up sem quilhas disputando espaço com os pedaços de gelo. Mason escala até o topo de um iceberg. A primeira onda se aproxima e ele salta para o stand up e depois para a prancha, antes de dar um ollie sobre um bloco de gelo. Ele retorna à praia em uma pilha de gelo e risadas. “A emoção está de volta!” – ele diz a tempo de virar e ver Mick pegar a onda seguinte. Mason recebe o amigo com um abraço.
“É isso” – diz Mick exultante, mas exausto. “Conseguimos. Chega.”
O swell de leste trouxe ainda mais gelo, e já deu pra eles. A remada de volta para o barco é uma batalha contra os icebergs. Ainda assim, Mason, se torturando, quer mais.
“Sinto que essa é a nova The Search”, diz Mason.
“Foi apenas um gostinho. Quero voltar e só surfar a onda da geleira.”
À medida que a âncora é içada e eles retornam à civilização, Mick assiste à massa de gelo desaparecer por entre as montanhas. Daqui a milhares de anos, o último pedaço de gelo visível à distância cairá na água e irá gerar uma onda e ele e Mason já terão ido embora faz tempo.
Campeonatos?
Eles parecem uma tolice agora. “Esse lugar te faz se sentir tão insignificante,” diz entre uma golada e outra de cerveja. “É bom… Você fica em paz.”
[Epílogo]
Na tarde que antecede a volta para casa, eles tomam uísque em um
bar chamado The Pit. O tipo do lugar que fica aberto até seis da tarde, permite fumantes e vende camisetas com a frase “Fiquei doidão no Pit Bar”. Um pouco da atmosfera local para celebrar uma trip que acontece uma vez na vida.
“Isso foi tão bom pra mim”, diz Mick refletindo daquele jeito que você faz após alguns drinks com velhos e novos amigos. “Estar em comunhão com a natureza e não ter horário, sinal de celular ou internet… É tudo que eu precisava – sair da rotina e desaparecer.”
E, embora tecnicamente eles estejam de volta à civilização, a identidade do tricampeão mundial se mantém praticamente secreta.
“Então, o que você faz?” – pergunta Brendan, o afável gari sentado ao lado de Mick.
“Eu surfo” – responde Mick.
“Sim, mas qual sua profissão?”, ele insiste. “Por que alguém te pagaria para surfar?”
Mick ri.
“Cara, é o que tenho me perguntado nos últimos 20 anos.” HC
Agradecimento: Rip Curl Brasil (@ripcurl_brasil) / a série #thesearch no Brasil é exclusividade HARDCORE.