Por Steven Allain, de Bali
HC 312, Outubro/15
Começou com o surf, lá em 1971. O filme Morning of the Earth, do fotógrafo australiano Alby Falzon, revelou a descoberta de Uluwatu para o mundo e dalí para frente Bali — e o surf — nunca mais foram os mesmos. As cenas de Steve Cooney deslizando nas paredes lisas e intermináveis de Ulus — as primeiras ondas surfadas no pico — ecoaram por todo o universo do surf e deram início a uma era de exploração que dura até hoje. Em poucos anos, Bali tornou-se o destino mais desejado entre aqueles que sonhavam em viajar e surfar ondas absolutamente perfeitas.
ESPALHE QUE ELES VIRÃO
A partir da década de 80, a “Ilha dos Deuses” já se tornara viagem obrigatória para qualquer surfista com o mínimo senso de aventura e exploração. Além das ondas, Bali tinha uma série de outros atrativos: praias paradisíacas, clima tropical, povo receptivo, comida farta, acomodação barata e cultura exótica. Surfistas de todos os cantos passaram a fazer a peregrinação anual em busca de tubos, noitadas, mulheres e aventuras. Bali era o paraíso na terra: um lugar místico, salpicado de ondas perfeitas e relativamente intocado.
“Aqueles eram os bons e velhos tempos,” recorda Jim Banks, australiano pioneiro na exploração do surf na Indonésia. Banks vive em Bali há 30 anos e foi um dos primeiros a surfar Desert Point, na ilha vizinha de Lombok. “O crowd era quase inexistente naqueles dias, todo mundo se conhecia. Parecia que a cada semana alguém descobria uma onda nova e nosso playground aumentava. Foi uma época de ouro.”
Naturalmente, um paraíso tropical frequentado por jovens de espírito livre e corpos bronzeados atrai muita gente. Nas décadas seguintes, o encanto de Bali transcendeu os surfistas. As tribos mais diversas encontraram na Ilha dos Deuses a combinação perfeita de natureza, vibração, espiritualidade e diversão, e o lugar tornou-se um caldeirão pulsante de gente interessante. Dos hipsters de Canggu aos clubbers de Seminyak, dos naturebas de Ubud aos mergulhadores de Amed, dos “rednecks” de Kuta aos surfistas da Bukit — todos encontraram em Bali sua própria versão do paraíso.
Nas três décadas seguintes ao lançamento de Morning of The Earth, a ilha sofreu grandes mudanças para acomodar a crescente onda de visitantes. Mas o surgimento de centenas de hotéis, restaurantes, lojas e baladas nos anos 90 e 2000 não mudou a vibração do lugar. Claro que, gradativamente, Bali foi deixando de ser uma ilha pacata, recortada por estradas de terra e vilarejos rústicos — mas sua essência permaneceu a mesma. E o progresso trouxe uma série de benefícios para os moradores e visitantes de Bali.
“Claro que com o crescimento surgem problemas,” afirma Rodrigo Mascarenhas, o Digone, brasileiro que vive em Bali há 20 anos e é proprietário da Bali Surf Connection, agência pioneira no turismo de surf na Indonésia. “Trânsito, lixo, poluição — isso aumentou bastante. Mas a verdade é que a qualidade de vida melhorou muito nos últimos anos também, tanto para a população local — que hoje ganha muito mais dinheiro com o turismo — quanto para os estrangeiros que vivem aqui. Hoje existe uma infraestrutura incrível em Bali, com supermercados e shopping centers com tudo o que você precisa: produtos importados, eletrodomésticos etc. Não falta nada.”
Essa combinação entre as ondas perfeitas de sempre, a vibração livre das antigas e a recém-chegada infraestrutura fez de Bali a base ideal para muita gente. Atualmente, 30 mil expats (como são chamados os estrangeiros que vivem na Indonésia) moram em Bali — grande parte deles, surfistas. Muitos profissionais da indústria do surf radicaram-se por lá na última década: o filmmaker Taylor Steele, os jornalistas Nathan Myers e Chris Binns; os fotógrafos Diogo D’Orey, Damea Dorsey, Everton Luis, Pete Frieden; os surfistas Ian Consenza, Brad Gerlach, Leandro Keesse, Harrison Roach, Mikala Jones (Taj Burrow e Marco Giorgi passam boa parte do ano na ilha); o autor deste texto, inclusive, vive em Bali.
“Aqui você vive sem violência, contagiado por essa energia positiva dos locais, cercado por altas ondas, gente feliz, comida boa e custo de vida barato,” explica o californiano Dorsey. “É a combinação perfeita. Se você trabalha com surf, então é ideal — pois todo mundo converge aqui na temporada e a variedade de ondas e de talento humano se iguala apenas ao Hawaii.”
MUDANÇA DE FOCO
Nos últimos cinco anos, porém, o crescimento desordenado atingiu níveis nunca antes vistos. Houve uma mudança de foco por parte da indústria hoteleira, que atualmente visa a atrair turistas de mercados emergentes, como Rússia e China. O que se viu foi a construção de uma série de megahotéis e resorts (alguns com milhares de quartos) e a instituição de operações típicas do turismo de massa para receber as hordas de chineses e russos que desembarcam diariamente em Bali.
Com isso, ônibus de excursão e caminhões de obras passaram a congestionar as estreitas ruas da ilha, tornando o trânsito caótico. “Este trânsito absurdo de caminhões e ônibus não existia,” explica Digone. “Até poucos anos atrás, as ruas estavam sempre vazias, não havia isso.”
O governo local busca soluções para melhorar o trânsito, como a recente construção de duas novas vias expressas (uma inclusive sobre o mar, próxima ao porto de Benoa). Mas a verdade é que tais medidas, mesmo aliviando o trânsito a curto prazo, não conseguem acompanhar o ritmo de crescimento da ilha. O turismo trouxe uma demanda por serviços e pessoal que nos últimos anos atraiu muitos indonesianos de outras ilhas a Bali. Sua população cresceu rapidamente — atualmente são 4,5 milhões de habitantes, o dobro de 20 anos atrás. Além disso, a ilha recebe 3,5 milhões de turistas anualmente. É gente demais para uma ilha que há 30 anos mal tinha ruas asfaltadas.
O governo é criticado por incentivar grandes corporações e empreiteiras a investir fortunas em projetos faraônicos, que certamente irão atrair um número ainda maior de visitantes. Mas o papel do turismo na economia ganha o argumento. Grande parte da população local, apesar de criticar os problemas causados pelo “progresso”, apoia projetos, investimentos e obras que tragam mais empregos.
ECOSSISTEMA EM APUROS
A natureza já dá sinais de que a coisa está feia em Bali. Quase metade dos 400 rios da ilha secaram. Como não existe serviço de abastecimento de água potável, toda água das residências, hotéis e pousadas é proveniente dos lençóis freáticos. Essa demanda é tão grande que os lençóis já não conseguem mais alimentar os rios, e o que se vê são centenas de leitos secos por toda a ilha.
A energia é outro grande problema. Bali utiliza mais eletricidade do que consegue produzir, por isso “importa” energia (cara e altamente poluente) de usinas movidas a diesel da ilha vizinha de Java.
Mas o pior problema enfrentado por Bali atualmente não é o trânsito nem os iminentes racionamentos de água e energia: é o lixo. Diariamente, são produzidas 240 toneladas de lixo na ilha, sendo que 75% disso não é coletado. O que é recolhido acaba em rudimentares lixões. O resto é queimado e jogado nos rios e no mar. Em certas praias de Bali, especialmente na Costa Leste, toneladas de plástico e lixo cobrem a areia e linha da maré.
Para Rizal Tanjung, lenda do surf local e um dos mais vocais críticos do crescimento desordenado da ilha, a falta de educação é a principal razão por trás do problema do lixo. “A população simplesmente não sabe as consequências de se jogar lixo no chão e nos rios. E tudo acaba no oceano.”
A Indonésia é atualmente o 20 maior gerador de lixo plástico do mundo (perde apenas para a China), sendo que 10% de todo o lixo que acaba nos oceanos é proveniente do arquipélago.
REAÇÃO
Se o progresso recente está ligado, até certo ponto, ao surf, ao menos vem de surfistas iniciativas que buscam amenizar os problemas da ilha. O Project Clean Uluwatu, gerenciado pelos australianos residentes em Bali, Curtis Lowe e Tim Philipps, construiu — sem nenhum apoio do governo — uma pequena estação de tratamento de esgoto em Uluwatu. Desde sua criação, cerca de três anos atrás, já tratou mais de 2 milhões de litros de esgoto — que outrora acabariam diretamente no mar. Além disso, o projeto já recolheu 30 toneladas de lixo na área de Uluwatu desde 2011.
Na mesma pegada, a ONG Waves for Water, fundada pelo surfista americano Jon Rose, já arrecadou 25 mil dólares para o The Bali Project, que trabalha pela limpeza dos rios e pela conscientização da população. O projeto Bye Bye Plastic Bags in Bali, também criado por expats surfistas, obteve do governador de Bali, Made Mangku Pastik, a promessa de que se a ONG recolher um milhão de assinaturas, a produção e distribuição de sacolas plásticas na ilha será proibida. O problema é que, até agora, o projeto recolheu apenas 70 mil assinaturas.
FUTURO INCERTO
Para boa parte da galera das antigas, que frequentava a ilha quando ainda era apenas um paraíso pristino e pacato, Bali perdeu seu encanto. “É de partir o coração,” diz Jim Banks. “O lugar cresceu tanto e de maneira tão desordenada, que é simplesmente irreconhecível. E só vai piorar. Aproveite agora, pois em dez anos isso aqui já era.”
Mas nem todo mundo compartilha dessa visão pessimista. “Para mim, mesmo com todas as mudanças, Bali continua sendo o lugar mais incrível do mundo,” afirma Digone, enquanto recebe uma massagem no cliff de Uluwatu, logo após uma sessão com bombas lisas de 8 pés. “Isto aqui não tem preço!” diz, sorridente.
As ondas de Bali permanecem as mesmas. Sua vibração, apesar de diferente do passado, ainda é envolvente e contagiante. E talvez isso seja suficiente para que surfistas de todo o mundo voltem ano após ano. Mas ondas e vibe, sozinhas, não salvam Bali do progresso desordenado.
Se nada for feito, o paraíso na terra pode virar apenas uma memória.
Nosso editor internacional, Steven Allain, frequenta Bali desde 1998 e há dois anos mudou-se permanentemente para a ilha.