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São Conrado no esgoto

Por Kevin Damasio
Fotos Chico Cerchiaro
De São Conrado, Junho/2015

Uma das melhores ondas do Rio de Janeiro sofre com a poluição crônica há mais de 10 anos. Agora, as comunidades do bairro e da Rocinha se uniram para lutar por águas mais limpas – e esperam pela solução do poder público.

Mancha marrom interrompe a paradisíaca vista da Pedra Bonita. É o esgoto sem tratamento da Rocinha (maior favela do Brasil, com quase 70 mil habitantes) que é despejado diariamente no canto esquerdo de São Conrado. 

 

Do topo da Pedra Bonita, a 700 metros de altitude, São Conrado descansa a meia dúzia de quilômetros distante. Em uma quinta-feira de maio, os raios de sol dão o tom do mar azul-turquesa, interrompidos apenas por algumas nuvens que cortam o céu e espalham manchas negras pela água. A distância, São Conrado, na Zona Sul do Rio de Janeiro, transpira tranquilidade, mas uma espuma ao longe, quase imperceptível, revela o esgoto que desemboca pela base da rocha no extremo esquerdo, uma faixa de água marrom que se instala o dia inteiro, todos os dias, horas, minutos, segundos. Trata-se de um problema ambiental crônico que a praia enfrenta desde 2001 e que até pouco tempo estava à mercê do descaso público.

Basta caminhar pela orla de São Conrado para entender a gravidade da situação. Sigo em direção ao canto esquerdo, ao encontro de integrantes do Salvemos São Conrado, movimento que luta por águas limpas naquela praia. Sinto um odor forte, fétido, que envolve, a cada passo mais intensamente, o restante do trajeto até o quiosque Bendita Onda.

São quase 11 horas da manhã e oito surfistas alinham-se no gelado outside do Cantão. “Aquele marrom da pedra é de onde sai o esgoto”, me mostra Fabrini Tapajós, membro da Salvemos São Conrado, voltando-se à rocha que sustenta a Avenida Niemeyer. “Como a ondulação de leste vem para cá”, diz ele e aponta para a esquerda, “para lá vai estar sempre limpo. Aí o swell vem até aqui, sujando tudo.”

Fabrini é um bodyboarder de 38 anos que sempre pegou onda em São Conrado, um beachbreak tubular que quebra melhor em mares consistentes de sudeste. Diz que já surfa há tanto tempo no pico que criou anticorpos contra a poluição da região e, em seguida, lembra-se dos surfistas da elite que passaram mal durante a etapa do Circuito Mundial na Barra da Tijuca. O campeão Filipe Toledo foi um deles. Surfou no Postinho na véspera e na estreia do evento. No dia seguinte, o ubatubense de 20 anos acordou com uma dor de cabeça insuportável. Sentia também muita náusea e dores de barriga, então tomou uma injeção de Dipirona. Ao longo do dia, o mal-estar diminuiu. “Isso que onde foi o campeonato o esgoto já chega bem disperso”, reflete Fabrini, com traços de indignação na voz. “Aqui, não. O esgoto sai ali, há 50, 100 metros.”


Esgoto in natura que vem da Rocinha e desemboca em São Conrado, o principal problema que o pico vive.

A maré está secando, então é um bom momento para ver de perto o que acontece. Seguimos por uma estrutura paralela à Avenida Niemeyer, criada para a realização de obras no costão. À direita, uma ciclovia em construção. Abaixo, a tubulação que conduz o esgoto do bairro de São Conrado até o Emissário Submarino de Ipanema, onde em tese é tratado antes de ser despejado em alto-mar.

Enferrujados, os canos antigos se revelam no fim da vida útil. A Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae) está instalando uma nova tubulação — com 500 milímetros de diâmetro e 2.100 metros de extensão, levemente maiores que os canos antigos. A princípio, o conjunto de obras estaria pronto no final de 2014, mas o prazo foi adiado para o primeiro trimestre de 2016.

Respiro um cheiro forte logo no início da ponte paralela à Niemeyer. “Está sentindo?”, pergunta Fabrini. “Deve ter algum vazamento aqui por baixo, mas é pequeno. Não é o que costuma ter quando estoura e fica uma cachoeira enorme”. Essa é uma cena que ele alega ocorrer constantemente, toda semana. Neste momento, lembro-me das fotos que vi às vésperas do Rio Pro: cascatas amarronzadas se encontravam com o mar azul-esverdeado. Tais imagens foram cruciais para o cancelamento de São Conrado como pico alternativo da etapa carioca, e já não é a primeira vez. Para conter os vazamentos, remendos são feitos pela Cedae, porém um novo buraco sempre está prestes a surgir.

O problema mais crítico de São Conrado, entretanto, apresenta-se adiante, 300 metros à nossa frente. Um turbilhão de líquido barrento flui por um buraco na altura em que a rocha encontra a água: é o esgoto produzido diariamente na favela da Rocinha, que desemboca no rio da Avenida Aquarela do Brasil e é encorpado por ligações clandestinas no trajeto, sem nenhum tratamento, nem mesmo separação de resíduos sólidos.

O fedor é intenso, mas será pior mais tarde, durante a maré cheia, quando o mar cobre a vala e diminui o fluxo dos dejetos para o mar. “Cara, nunca pensei em sentir um cheiro deste tipo. Fiquei bem enjoado”, comentou o fotógrafo Chico Cerchiaro, que se arriscou ao descer a escorregadia rocha para registrar a saída da água suja para o mar.


Tubulação antiga que conduz o esgoto de São Conrado a Ipanema, e estoura com frequência.

O despejo de esgoto no Cantão de São Conrado existe desde o final de 2001. Naquela época, a língua negra ficava no meio da praia de São Conrado, entre o Hotel Nacional e o antigo Intercontinental, hoje chamado Royal Tulip. O cenário — uma faixa marrom, acompanhada por pilhas de lixo — não era nada agradável, mas pelo menos a areia servia como filtro: os resíduos sólidos eram retidos, e o líquido, absorvido, parava no mar.

Às vésperas de eleições estaduais, o então governador Anthony Garotinho se dispôs a resolver o problema. A ideia consistia em tirar a língua negra da frente dos hotéis e canalizá-la até o mar. Para isso, construíram um deck integrado à orla da praia e, por baixo, criaram uma galeria que alcança a rocha no canto esquerdo. A pedra, então, foi perfurada para a construção do canal que termina naquela vala no cotovelo da Avenida Niemeyer. Em uma das extremidades do deck, há uma abertura. Lá dentro, o ambiente fechado concentra o cheiro do córrego. Permanecer no lugar beira o insuportável. O esgoto corre veloz em direção ao Cantão, carregado de pilhas de lixo — cena que se repete durante todo o canal.

Durante a obra milionária, o músico Gabriel Contino, “O Pensador”, percebeu que o projeto não solucionaria o problema, apenas o maquiaria. Ele morou em São Conrado dos 12 aos 15 anos, época em que começou a surfar. Aos 14, no final dos anos 1980, contraiu hepatite enquanto pegava onda no pico. Depois de morar na Barra da Tijuca e em Ipanema, retornou ao bairro aos 21, a alguns metros de seu pico preferido no Rio de Janeiro. Vive lá até hoje, nos intervalos das turnês, mas, devido à poluição que envolve aquelas águas, já não cai tanto na onda que moldou seu surf.

O esgoto produzido diariamente na favela da Rocinha desemboca no rio da Avenida Aquarela do Brasil, encorpado por ligações clandestinas no trajeto, e chega a São Conrado, sem tratamento nem separação de resíduos sólidos.

“A gente tentou impedir, tentou reclamar, tentou explicar… Chamamos pessoas que tinham conhecimento no assunto para mostrar que a obra não valia a pena, era mentirosa”, lembra Gabriel, hoje com 41 anos. O governo, segundo ele, argumentou que haveria estação de tratamento e, com respaldo da Associação dos Moradores de São Conrado (Amasco), a obra foi concluída. “Ficamos com a sensação de impotência, porque não tínhamos o apoio da associação”, reflete. “Mas depois eles (Amasco) viram que a obra não resolveu, e hoje estamos juntos na mesma luta, com a mesma finalidade: ver a condição da água melhorar.”

De fato existe uma unidade de tratamento (UTR) da Rio Águas, que passa pelo rio da Avenida Aquarela do Brasil. Fica na esquina com a Niemeyer, próxima à Rocinha, e foi desativada em 2012. Antes, as comportas do início do canal eram fechadas para conter os lixos sólidos, retirados pelos funcionários da empresa. A água parcialmente tratada continuava o trajeto até desembocar em São Conrado.

Entretanto, de acordo com Gabriel, o sistema não dava conta de tratar totalmente a água. As medições de balneabilidade feitas a cada 3 ou 4 dias pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea) sustentam essa afirmação. Para classificar a qualidade da água, o instituto leva em conta a concentração de coliformes fecais no mar. De 2003 a 2007, a água em São Conrado foi avaliada como “má” ou “regular”. A partir de 2008, é considerada “péssima”, inclusive em todas as medições feitas neste ano.

São Conrado integra o Sena Limpa, ao lado do Leblon, Ipanema, Leme, Urca e Bica. Com orçamento de R$ 150 milhões, o projeto do Governo do Estado — por meio da Cedae e da Secretaria do Ambiente — e da Prefeitura propõe despoluir as seis praias, com “o objetivo de garantir a preservação do ecossistema prevendo o crescimento dos próximos 30 anos”, conforme escreve a assessora de imprensa da Cedae, Karen Russo.


Rio da Av. Aquarela do Brasil que recebe esgoto da Rocinha e acaba no oceano.

A obra em São Conrado, informa Karen, consiste em implantar 615 metros de coletores auxiliares com 250 milímetros de diâmetro, “ampliando dessa forma o esgotamento sanitário da comunidade do Vidigal”. Além disso, a Cedae “substituirá e ampliará duas linhas no costão da Avenida Niemeyer, que bombeiam esgotos da Estação Elevatória de São Conrado para a Estação do Leblon”. Ainda segundo a companhia, a elevatória, com capacidade para 200 litros por segundo, será “ampliada e modernizada dentro das mais avançadas técnicas de automatização, redução do consumo de energia elétrica, baixo nível de ruído e sistema de desodorização próprio”. Os esgotos seguem para a estação do Leblon e acabam no Emissário Submarino de Ipanema.

As obras devem terminar antes das Olimpíadas de 2016, e a Cedae se compromete em “elevar as condições de balneabilidade das águas da praia”, conforme acordado com o Comitê Olímpico Internacional (COI).

Enquanto isso, a situação em São Conrado continua grave com o despejo de esgoto in natura que, de acordo com Fabrini, “não deveria ir para o rio (da Avenida Aquarela do Brasil), mas vai, pois a Cedae (do Governo) não faz a coleta e, por sua vez, a Rio Águas (da Prefeitura), que era a responsável pela estação, a desativou”. O Cedae afirma que “há estações de tratamento em grande parte da Rocinha, mas não dão conta de implementar o sistema em toda a comunidade, dada a expansão constante.”

Em meio a esse cenário caótico, surgiu o Salvemos São Conrado, um grupo de surfistas locais, grande parte moradores da Rocinha. O movimento atua desde 2012 e neste ano ganhou ainda mais visibilidade após outra temporada com São Conrado — preferência de boa parte dos Tops do World Tour — descartado como pico alternativo do Rio Pro.

Bastou visitar a Rocinha para notar o que me disse o surfista Anderson de Oliveira, 27 anos, que mora lá desde que nasceu: não há nem cestos de lixo pela comunidade.

Marcello Farias, de 39 anos, é um dos fundadores do “Salvemos”. Morador da Rocinha, ele concilia as ações do grupo com a administração de sua surf shop na comunidade. Ele pega onda em São Conrado desde 1986. “Isso aqui”, diz ele olhando para o mar, “era cristalino, cara. Na época, esse canto era a parte mais limpa da praia, porque o esgoto ficava na frente dos hotéis.”

Converso com Marcello no deck do quiosque Bendita Onda, no canto esquerdo. Bruno Rodrigues, o proprietário, também é membro do Salvemos. Ex-morador da Rocinha, o carioca de 34 anos se diz duplamente prejudicado: pelo odor de esgoto que espanta os clientes e pela sujeira no pico em que surfa desde os 10 anos. Sobre as soluções para o problema ambiental, ele pondera: “Na Rocinha, tinha que começar pela educação. Conscientizar que as pessoas têm que selecionar seu lixo, entendeu? Pô, eu vejo neguinho jogando lixo pela janela, no valão.”

Em paralelo à educação, Bruno insiste no saneamento básico dentro da comunidade, e é para cobrar isso que o Salvemos circula um abaixo-assinado, que durante o Rio Pro acumulou 4 mil assinaturas — inclusive de surfistas da elite, como Adriano de Souza, Gabriel Medina, Filipe Toledo e o havaiano John Florence. O próximo passo, segundo Fabrini Tapajós, é criar a petição online para alcançar as necessárias um milhão de assinaturas.

Implantar coleta de lixo e saneamento na Rocinha é prioridade da segunda fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2). Em nota, o Governo Federal anunciou, em junho de 2013, investimento de R$ 2,66 bilhões para comunidades cariocas, recursos destinados principalmente a obras de infraestrutura na Rocinha e nos complexos do Lins e do Jacarezinho. A prioridade, como informou a Secretaria de Estado de Obras do Rio de Janeiro em julho de 2014, consistia em implantar redes de drenagem, esgoto, abastecimento de água e coleta de lixo na maior favela do Brasil, com quase 70 mil habitantes e pouco mais de 25 mil moradias, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010.


À esquerda: Membros do Salvemos São Contado com a petição que clama por saneamento básico. À direita: São Contado convive com a poluição desde 2001.

A assessoria de imprensa do PAC 2 não retornou aos contatos da reportagem, que questiona o andamento das obras. Entretanto, bastou visitar a Rocinha para notar o que me disse o surfista Anderson de Oliveira, 27 anos, que mora lá desde que nasceu: não há nem cestos de lixo pela comunidade. “Sempre foi assim. Agora que querem conscientizar a parada”, afirmou Anderson enquanto se preparava para cair na água gelada em São Conrado. “Gente que passa e deixa o lixo na rua e nas valas, né”, continua. “Mas não vou mentir, não. Até eu às vezes mesmo jogo, mas, assim, por uma parada que… não tem coleta de lixo!”

Anderson surfa em São Conrado desde criança, e sobre o esgoto que cai no mar e é carregado de volta para a areia, disse que já viu de tudo — “rato, fralda descartável, seringa, tudo o que você possa imaginar. Já vi gente morta várias vezes”. Ele reforça que os dias com mais lixo acontecem quando chove forte na véspera. Depois, mostra as manchas na pele, decorrentes da água suja, mas diz não ter tido outros problemas de saúde. “É difícil a rapaziada do morro pegar alguma coisa. Já tem imunidade.”

Praticamente todo dia, por volta das seis da manhã, funcionários da Companhia Ambiental de Limpeza Urbana (Comlurb) recolhem o lixo que chega à areia, mas nem todo dejeto deixa o mar. Ao lado de Anderson, estava outro morador da Rocinha: Gutierres Isaias, de 16 anos. Ele recorda a vez em que entubava em uma esquerda. Primeiro, viu rodar com a parede uma fralda descartável. Na sequência, um pedaço de madeira. Decidiu morrer dentro do tubo: “Se eu continuasse, a tábua ia bater em mim.”

Já Deise Campos, de 25 anos, passou por um perrengue no começo de maio. Chovera no dia anterior e, de tão sujo, o mar estava totalmente escuro. “Cheiro de esgoto puro!” Há um ano e meio ela encontrou no surf uma forma de esquecer a “vida que normalmente leva na comunidade, de tráfico de drogas, confusão, brigas e contendas”. Tomou uma vaca e engoliu bastante água. Adoeceu por uma semana, com muita dor de barriga, ficou mal. “Quando você gosta da parada, não quer saber se a água está boa ou ruim. Tu quer sentir a onda e acabou, não pensa nas consequências.”

Por sempre lutar pela causa e cobrar respostas do poder público, Gabriel “O Pensador” é considerado o “padrinho” do Salvemos São Conrado. Uma das razões para a persistência de problemas socioambientais, diz ele, é a população achar normal, não cobrar nem se revoltar. “Cada vez mais precisa martelar campanhas educativas, porque — isso é óbvio, mas não custa falar de novo — o lixo que o cara joga na rua, no meio fio, dentro da favela ou de seu carro importado, contribui para a poluição do mar e para outros problemas, como enchente e erosão de terra, até onde não tem praia. Tudo vai parar nos rios ou nos mares”. Consciência ambiental e saneamento básico, eis as formas mais evidentes para despoluir São Conrado, ao menos na visão de quem vive diariamente a triste, fedida e suja realidade de uma das melhores ondas do Rio de Janeiro.

*Esta reportagem foi publicada originalmente na HARDCORE 307, de junho de 2015

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