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Lembranças de um irmão

PARABÉNS RICARDO DOS SANTOS

– TRIBUTO A RICARDINHO: Homenagem a Ricardo dos Santos, com palavras de Miguel Pupo, Marcelo Trekinho, Thiago Camarão, Alemão de Maresias e Donavon Frankenreiter

– UNIDOS POR JUSTIÇA: Homenagens, protestos e a primeira audiência na Justiça Comum marcam os quatro meses sem Ricardinho


Guarda do Embaú, 2010. Foto: Rafaski

Por Steven Allain

Conheci Ricardo dos Santos em 2006 durante o ISA Games que aconteceu em Maresias. O técnico da Seleção Brasileira na época, Otoney Xavier, me puxou de canto e disse: “Este moleque vai longe, fica de olho nele”. Não sei se Ricardo competiu no evento ou se foi apenas pela experiência,  mas lembro de saber, já naqueles tempos, que Otoney sabia o que dizia. Com isso, passei a observar o moleque da Guarda, que na época tinha 15 anos, com mais atenção. Recordo-me bem de um tubo de backside que ele completou no freesurf – justamente a foto que acabei publicando na revista para a qual trabalhava na época, acompanhada de uma pequena entrevista. Foi a primeira aparição de Ricardo na mídia – algo que ele nunca esqueceu. Só nos tornamos amigos, no entanto, no ano seguinte – durante uma longa estada em Asu, na Indonésia, onde dividimos um bangalô no extinto surf camp Gangsta’s Paradise, do nosso lendário camarada Enrique Pena.

A cena do drop de base trocada descrita aconteceu no maior dia da temporada, num mar pesado, torto e perigoso. Puxei o bico numa craca que certamente iria me esfolar vivo, e Ricardinho não perdoou. Ficou me sacaneando a queda toda até que eu retruquei com a pérola que abre este texto. Não demorou para que eu percebesse que teria de engolir minhas palavras, tendo em vista o que ele fez apenas alguns meses depois em Teahupoo – e continuou fazendo durante toda sua carreira. Como bom amigo que era, Ricardo nunca trouxe à tona minha infeliz afirmação.

Na época, porém, o “Bicuíra” (seu apelido naquela temporada) era apenas um garoto com muito potencial. Ninguém ligava que ele era o melhor surfista da ilha (aos 16 anos de idade). Ele era o mais novo e por isso era nosso dever fazer do grommet um homem – sacaneando-o a cada oportunidade existente. Só que Ricardinho levava tudo na brincadeira. Não importava quanta louça tinha que lavar ou quantas vezes por dia eu o mandava varrer o chão. Ele fazia tudo com um sorriso estampado no rosto, feliz por passar pelo ritual de aceitação dos surfistas mais velhos. 

Mal sabia ele que já éramos seus fãs. Bastava o moleque dropar uma onda que começavam os sussurros – “O grommet quebra!”; “Esse vai dar trabalho”; “Surfa muito!” Era difícil não gostar do Bicuíra. Ele era alegre, confiante, esperto – e ao mesmo tempo humilde.

De cara, nos demos muito bem. Sou 12 anos mais velho que Ricardo, e nossa amizade se tornou rapidamente uma relação fraternal. Ele me bombardeava com perguntas sobre trips, mulherada, surf, baladas e a vida em geral. Eu ficava surpreso que um garoto que surfava tão melhor que eu estivesse realmente interessado nas minhas histórias, mas o moleque passava horas escutando minhas aventuras, roubadas e conselhos. Nunca me esqueço das suas gargalhadas quando as histórias ficavam apimentadas. Na água, os papéis se invertiam – era eu que aprendia com ele.

 
Guarda do
 Embaú, 2010. Foto: Rafaski

Nos anos seguintes, fizemos inúmeras surf trips juntos e tivemos várias sessões de sonho em lugares como Teahupoo, Fiji e Indonésia. Devo a Ricardo algumas das melhores e mais amedrontadoras ondas da minha vida – pois se não fosse ele berrando “Vai, porra!”, eu provavelmente teria puxado o bico em algumas delas. Mais que isso, foi com muito orgulho que vi Ricardo tornar-se um homem digno, correto e leal. Ele superou uma história de vida difícil – nunca conheceu o pai –, sofreu uma lesão séria nas costas e tornou-se mais forte por isso.

Cansado de ver sua amada Guarda do Embaú destruída pelo crescimento desorganizado, escreveu a políticos e autoridades numa tentativa de solucionar o problema. Inadvertidamente, tornou-se um dos líderes de sua comunidade.

No surf, virou um monstro. Foi com um orgulho de irmão mais velho que acompanhei suas maiores conquistas: a Wave of the Winter da Surfline; o prêmio A.I. – Andy Irons de melhor performance durante o campeonato de Teahupoo do WCT; e sua vitória nas triagens do mesmo evento. Nem parecia que há apenas alguns anos eu estava ordenando que ele varresse o chão lá em Asu. 

Acima de tudo, Ricardo havia encontrado felicidade e a sentido em sua vida. Aos 24 anos, era um dos melhores freesurfers do mundo, ajudava a família, lutava por sua comunidade e já fazia planos de casar e ter filhos com a namorada de longa data, Karoline.

Tragicamente, tudo isso foi destruído por um policial bêbado – e pela corporação que permitiu que um indivíduo tão agressivo e instável continuasse a praticar barbáries impunemente.

Minha relação com Ricardo não era uma exceção. Outros grandes amigos seus, como Bruno Zanin, Andrei Malhado, Yago e Leandro Dora, Marco Giorgi, Alejo Muniz, Ari Góes, Mark Daniel, Nelson Pinto, Lucas Silveira, Adriano Mineirinho, Dado Guimarães e tantos outros certamente têm histórias de amizade semelhantes que atestam o mesmo: Ricardo era um amigo verdadeiro e um cara genuíno. Sua morte prematura deixa uma cicatriz profunda no coração de todos que o conheceram.

A última vez que vi Ricardinho foi no Hawaii, um mês antes de sua morte. Ele havia quebrado a clavícula em Pipe poucos dias antes, quando bateu violentamente no reef. A lesão o tirou das triagens do Pipe Masters – e eu estava lhe sacaneando por causa disso.

“Brother, é o Pipe Masters! Se fosse eu, caía na água mesmo com as costas quebradas…”, dizia em tom de brincadeira.

Ele respondeu que não seria justo tirar a vaga de outro atleta, sendo que não conseguia nem remar. “Vou deixar alguém que está 100% competir no meu lugar. Fica tranquilo”, disse ele com um sorriso maroto. “Ano que vem estou de volta.”

É assim que vou me lembrar de Ricardinho – generoso, confiante e alegre.

Descanse em paz, meu irmão.


Guarda do Embaú, 2009 – com a mãe Luciane Dalcemar Santos e o irmão caçula Martin Bianche. Foto: Jeff Dias




Tavarua, Fiji, 2011 – Braços ao alto, Marco Giorgi. Foto:
 Rafaski




Hawaii, 2012 – Com Pedro Scooby e Peterson Crisanto. Foto:
 Rafaski




Tavarua, Fiji, 2011 – Com Lucas Silveira, Marco Giorgi e Willian Cardoso. Foto:
 Rafaski




Off-The-Wall, 2012. Foto
: Henrique Pinguim




Ushuaia, 2013. Foto:
 William Zimmermann




Guarda do Embaú, 2010 – com Yago Dora. Foto:
 Henrique Pinguim




Homenagem a Ricardo, Pipeline, 2014. Foto:
 Henrique Pinguim


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