Foto: Aleko Stergiou
Por Alexandre Versiani
Aos 46 anos, Paulo Mendes possui uma vitoriosa carreira como competidor, principalmente no longboard, em que foi campeão europeu e brasileiro no início dos anos 2000. Após pendurar a lycra, Kid, como é conhecido, tornou-se chefe da equipe Hang Loose e um dos treinadores mais requisitados da atualidade, graças ao profissionalismo e à maneira como trabalha com atletas da nova geração. Para muitos, além de professor, Kid é visto como um paizão, já que passa a maior parte do ano acompanhando os surfistas no Circuito Mundial. Quando está em casa, no Guarujá, Kid surfa na praia do Tombo e sempre procura novos meios de se atualizar em uma profissão cada vez mais valorizada no surf
Quando surgiu a oportunidade de começar a carreira de treinador?
Em 1995 estava sem patrocínio, então comecei um trabalho de escolinha de surf aqui na praia do Tombo. Minha ideia não era a competição e sim ensinar o esporte a quem tinha vontade de aprender. Com o tempo, alguns meninos que estavam começando a competir vieram me pedir para fazer um treinamento voltado à competição. Foi aí que tudo começou. O que me atraiu nesse trabalho foi ver que poderia ajudar na evolução dos moleques, além de revelar novos talentos para o surf brasileiro.
Como você conduz os treinamentos atualmente?
Minha base é no Guarujá, mas, além dos treinos por aqui, viajo muito com os atletas. No ano passado, por exemplo, passei um mês na Indonésia com a equipe da Hang Loose. Agora em abril vamos realizar um treinamento no Peru, onde teremos uma equipe multidisciplinar com médico esportivo, biomédico, preparador e fisioterapeuta. Tudo para fazer um trabalho diferenciado. Minha função é desenvolver a parte técnica dos atletas, corrigindo a postura corporal e outros vícios normais em qualquer surfista. O vídeo é a minha principal ferramenta. Também procuro ler bastante sobre treinamentos e a parte psicológica em outros esportes, tudo para aprender e aproveitar o que pode ser usado no surf.
Kid regista Ian Gouveia na Indonésia para corrigir erros do surfista. Foto: Ricardo Borghi
Quais são os atletas com quem você trabalha atualmente e o que você destacaria em cada um deles?
Os atletas com quem trabalho, Ian Gouveia, Jessé Mendes, Thiago Camarão, Victor Bernardo e Willian Cardoso, estão focados no WQS atualmente. O objetivo comum é a classificação para o WCT e o que chegou mais perto disso foi o Willian, que tem o power surf como destaque. O Victor Bernardo vai começar a disputar o WQS agora, e acho que seu ponto forte é a habilidade natural e a maneira descontraída de encarar as competições, mas com muito profissionalismo. O Ian Gouveia é muito habilidoso também, e nas sessões de vídeo isso fica bem claro. É um moleque com alma de surfista e ganhando mais experiência tem tudo para conseguir atingir seus objetivos. O Jessé, apesar de ter apenas 21 anos, tem muita experiência, e acho que o ponto forte dele é estar preparado para competir em qualquer condição. Superando o desafio do WQS, acredito que ele possa trilhar uma carreira sólida no WCT.
Por trabalhar com atletas tão jovens, ainda em formação, além de treinador você também precisa usar um lado mais de pai e conselheiro?
Com certeza. Trabalhar com a molecada que vive essa expectativa de resultados exige uma convivência na qual não entra só o treinamento e a parte técnica. É preciso conhecer a personalidade de cada um, saber dos problemas e estar ali para ajudar, seja com um puxão de orelha ou apoiando em uma hora de dificuldade como, por exemplo, no caso de uma lesão. Como são jovens, estão em formação e viajando pelo mundo desde cedo, acabam recebendo muitas informações, boas e ruins. Como passo muito tempo com eles, várias vezes acabo trocando ideias sobre assuntos polêmicos e que são inerentes ao momento da vida que estão vivendo.
O Brasil é o país com o maior número de títulos do mundial Pro Junior da ASP, mas, ao mesmo tempo, ainda não temos um campeão mundial entre os profissionais. Você pensa que falta algo nessa passagem de júnior para profissional nos atletas do país?
Sim, falta o treino em ondas de verdade, power e de linha. Nossos jovens crescem surfando ondas de beachbreak e, por mais talentosos que sejam, quando vão surfar e competir nesse tipo de onda acabam encontrando dificuldade na leitura dessas ondas. Surfam até bem por terem muito talento e habilidade, mas não conseguem atingir aquele nível de excelência que é exigido no WCT. Veja o exemplo do John John Florence. No ano passado, entre as competições, ele foi três vezes para o Tahiti em busca de swell. Em outra oportunidade, foi para a África do Sul surfar uma laje que é apenas encarada por bodyboarders. Então, o moleque já nasceu no Hawaii, aprendeu a surfar em Pipe e ainda assim continua viajando para pegar este tipo de onda.
Victor Bernardo é uma das principais apostas do treinador para os próximos anos. Foto: Tiago Navas
Como podemos melhorar isso, ir atrás das melhores ondas do mundo?
Claro que temos o problema financeiro também, mas acho que hoje já há alguns poucos atletas no Brasil com condições de investir para ir atrás das previsões de bons swells em picos como Tahiti, Fiji e J-Bay. Ondas que irão fazê-los atingir outro nível, uma vez que treinarem e gastarem mais tempo nesses picos. Já com relação à garotada mais nova, o problema é grana mesmo, mas temos picos como o norte do Peru e o sul do Chile, além da região de Arica, também no Chile, que são mais acessíveis e podem dar uma base muito boa de linha e tubos para a molecada. Veja outro exemplo: Jack Robinson, o moleque está com 16 anos, nasceu em Margaret River – onde existem picos como The Box e o lugar em que rolam os campeonatos – aprendeu a surfar nessas ondas e desde os 10 anos vai para Indonésia e Hawaii. Difícil ter outro moleque nessa idade que entuba tanto quanto ele atualmente. Então acho que o desafio para os surfistas brasileiros de base é ter acesso e treinar em ondas deste calibre. Acho que isso ainda faz a diferença, pois garotos com talento temos muitos.
Além dessas ondas de calibre, também podemos evoluir na questão preparação e treinamento?
Até agora o maior diferencial era mesmo no que dizia respeito às oportunidades que nossos jovens tinham de começar a surfar em ondas de linha, tubulares e com fundo de coral, pois não temos muitos picos com essas características em nosso litoral. Mas, nos últimos dois anos, estou vendo um movimento de Centros de Treinamento especializados na Austrália e na Califórnia. O C.T. australiano, por exemplo, fica na Gold Coast e é financiado pelo governo e patrocinado por uma empresa de surfwear. As instalações são de sonho, com equipamentos e profissionais para trabalhar exclusivamente a parte de manobras aéreas, só para citar um exemplo. Além disso, possui um estoque de pranchas dos melhores shapers do mundo para a molecada testar equipamentos diferentes. Preparadores físicos também desenvolvem um trabalho específico para o surf, tudo isso em conjunto com técnicos de surf experientes que acompanharam atletas no Circuito Mundial, como é o caso do Andy King, que viajou por muitos anos acompanhando o WCT e agora é o treinador-chefe do C.T. da Austrália. Acredito que este tipo de preparação vai fazer diferença para os australianos daqui a cinco anos e, se eles já são uma potência dominadora no Circuito Mundial, com este centro de treinamento eu penso que vão se fortalecer ainda mais.
Você acredita que, assim como nos esportes coletivos, cursos especializados podem ajudar a formar novos treinadores de surf?
Na Austrália existe um programa para a formação de técnicos que em um primeiro momento prepara o profissional para ensinar novas pessoas a surfar. Em um segundo momento, este curso certifica novos treinadores. O Marcos Conde costumava trazer estes cursos para o Brasil, eu mesmo fiz os níveis 1 e 2, e acrescentou muito ao meu trabalho.
Mesmo quando Kid não está presente, os surfistas sempre estão em contato com o treinador. Foto: Felipe Fernandes
O que ex-surfistas do WCT como Renan Rocha e Peterson Rosa, que estão começando a carreira de técnico, podem acrescentar aos brasileiros do Circuito Mundial?
Podem acrescentar muito no desenvolvimento de atletas de ponta, pois têm a experiência de muitos anos no WCT. São profissionais que tiveram sucesso na carreira e por isso têm propriedade e conhecimento técnico para desenvolverem um ótimo trabalho. Acredito que o surf brasileiro irá ganhar muito com profissionais assim.
Qual é a principal mensagem ou recomendação que você passa para um surfista no dia a dia, tanto dentro como fora d’água?
Dedicação, determinação para vencer, humildade e reunir pessoas capacitadas à sua volta, pois sozinho ninguém chega ao topo! Além disso, cuidar do corpo, da mente e do espírito, pois essas três partes andam juntas e precisam sempre estar harmonizadas para se ter sucesso na vida.
*Entrevista originalmente publicada na edição 293 da Revista HARDCORE; seção "10 Perguntas".