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tasmânia além de shipsterns

Por Fernando Maluf

Água quente e cristalina, céu azul e sol brilhando. No fundo, alguns coqueiros, palmeiras e garotas de biquíni. A visão mais pop possível que se tem do surf é também a mesma que atrai milhares de novos praticantes, pranchas de isopor, stand up paddlers, posers, amantes, geeks, viciados e derivados às praias de todo o mundo. Porém, em alguns lugares do planeta, surfistas que não se parecem muito com atores de seriado americano (e tampouco se importam com isso) encontram a mais pura essência do esporte, sem quaisquer dos elementos descritos acima. Água congelante, invernos rigorosos, cenários inóspitos, fauna e flora selvagens e, em meio a toda essa natureza hostil, ondas perfeitas e sinistras. A Tasmânia é assim.

A primeira vez que a ilha-estado australiana apareceu no mapa do surf mundial foi com seu cartão de visitas mais legítimo. A comunidade entrou em choque quando circularam em uma revista australiana as primeiras imagens de uma direita assustadora com um tubo grotesco e uma série de degraus líquidos.

Avistar Shipsterns Bluff pela primeira vez é como um ritual. A onda fica numa ilha no sudeste da Tasmânia, separada da capital Hobart pela nada amigável Baía da Tempestade. Um voo rápido por cima da Storm Bay deixa os surfistas em Port Arthur, o último entreposto de civilização antes de enfrentar as bestas. Pode-se então contornar a ilha de barco e chegar ao pico esgueirando-se pelas beiras mais tranquilas da baía, ou encarar uma caminhada de uma hora entre os arbustos secos de uma trilha que quase desaparece com a poeira do chão. Tanto por água quanto por terra, é uma cena que não se esquece jamais. “Quando as primeiras séries grandes atingiram o reef, eu não pude acreditar no que meus olhos viam”, conta Andrew Chisholm, fotógrafo, surfista e guia local. “Ainda consigo me lembrar do som da água sendo sugada da bancada, era algo surreal.”

Shipsterns Bluff ainda é um fetiche, sonho e pesadelo para 10 entre 10 surfistas. Mas, numa ilha destinada aos cascagrossas, é só o começo de uma longa jornada.

GEOGRAFIA GELADA

Com todos os privilégios naturais a que tem direito uma ilha, a Tasmânia é abençoada por uma infinidade de ondas incríveis. Diferentes fundos e formações geográficas em todo seu entorno litorâneo fazem de cada praia ou paredão rochoso um berço de ondas perfeitas em potencial. “Temos inúmeros picos em praticamente qualquer região da costa que, com a ondulação correta, podem ficar alucinantes, de nível internacional”, afirma Chisholm. Espírito de aventura é o mínimo que a ilha requer dos que planejam desbravar suas ondas. A grande Costa Oeste, quase inteira coberta por parques nacionais e áreas permanentes de preservação ambiental, é o provável abrigo de dezenas de tesouros inexplorados por pranchas, pés e mãos humanas. A maior parte do litoral dessa região é praticamente inacessível (até que se prove o contrário). Mas os poucos locais em que se pode chegar com facilidade, como Marrawah e Trial Harbour, oferecem ondas grandes e poderosas, expostas a ondulações direto do mar aberto.

Nas cercanias mais civilizadas da ilha, uma porção de ondas perfeitas se oferece aos surfistas. “Tem uma série de sete pointbreaks de direita nos arredores de Hobart, todos com ondas extremamente longas, com seções tubulares e manobráveis”, revela Chisholm. Hobart é a capital da Tasmânia e principal cidade da região Sul, onde se concentra boa parte dos 500 mil habitantes da ilha. A proximidade de um centro urbano conta com algumas mordomias para quem surfa na região, mas, como em qualquer outro lugar da Tasmânia, evitar o frio não é uma delas.

Para essas ondas quebrarem, é preciso um forte vento de sul gritando por alguns dias seguidos. Normalmente isso acontece no auge do inverno, quando a neve já cobriu as montanhas atrás de Hobart. A Tasmânia é um dos países mais setentrionais do planeta. Fica ao sul da Austrália – 240 km de distância – e a temperatura ambiente não passa dos 25°C no verão. De novembro a fevereiro pode-se ter a sorte de surfar um bom swell. É improvável, mas possível. “Nesses meses o mar fica terrivelmente fl at, mas um grande swell de sul pode realmente ocorrer a qualquer momento”, explica Andrew. Nos outros oito meses do ano, um long john 4/3 com botas é o mínimo para enfrentar uma água na casa dos 10°C. A temporada de frio e altas ondas está garantida, já as bermudas e garotas de biquíni não aparecem no cardápio.

OUTRAS BOMBAS

Além do frio e da natureza selvagem, mais alguns fatores podem tornar o surf na Tasmânia uma experiência extrema. O mais óbvio deles são as próprias ondas. Shipsterns Bluff ainda é a rainha daquelas bandas. Foi durante muito tempo uma lenda e, mesmo com a exposição que ganhou em publicações do mundo inteiro, mantém o crowd e os ares de um pico secreto. A maioria dos surfistas sãos prefere assistir ao espetáculo do penhasco sobre o qual as bombas se desmancham do que arriscar-se com uma prancha em seus tubos.

Mas a bravura (ou insanidade, se preferir) com que o local Andy Campbell se jogou pela primeira vez em Shipsterns, em 1997, deixou um importante legado para as novas gerações. Surfistas como Mike Brennan, Marti Paradisis e os irmãos Sean e Tyler Holmer-Cross têm em seu currículo a descoberta de duas ondas que causam dor de barriga na maioria dos mortais e fazem companhia a Shipsterns no rol das mais pesadas da Tasmânia e, provavelmente, do mundo.

Eddystone Rock fica 26 km mar adentro e, segundo Chisholm, quebra em condições surfáveis com até 50 pés. “O vento é sempre um problema por lá, mas, quando está grande, o tubo é gigante e pesado”, conta. O local também é inundado por uma rica vida marinha – aves, focas, peixes pequenos, peixes grandes. “Até uns um pouco maiores, com os quais você não vai querer se meter”, alerta o fotógrafo. Surfar ondas de 50 pés em alto-mar exige, além de colhões, uma estrutura mínima. As quedas de Brennan e companhia têm como suporte um barco com equipamentos de salvamento e pelo menos dois jet skis.

O outro pico, cujo nome ainda é privilégio dos ouvidos locais, já causou estragos em seus colonizadores. Vacando lá, Mike Brennan fraturou a coluna, mas, com uma dose incrível de sorte, escapou com a medula óssea ilesa. Ele não perdeu os movimentos dos braços nem das pernas, mas está há mais de dois anos recuperando-se do acidente. “É um slab muito pesado. Quebra numa laje de granito quase seca, são condições sérias e possivelmente mortais”, lembra Chiz, presente na maioria das expedições para ambos os picos.

* Matéria originalmente publicada na HC #275, agosto de 2012

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