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Nó na madeira

 


Foto: Marcos Villas Boas

Por Fernando Gueiros

Com uma faca de cozinha na mão, Felipe tenta cortar um pedaço de chocolate congelado que acaba de retirar do freezer. A faca, apontada 90 graus para baixo, forma uma letra C com a força feita pelo catarinense em busca de sua metade. Ele pretende tê-lo fatiado de qualquer maneira, primeiro com a ponta afiada, depois com a serra. Acostumado a lidar com facas mais perigosas do que essa, que serram madeiras de até 10 quilos, ele não tem sucesso no corte de um simples pedaço de sobremesa. O chocolate congelado vence. Sua mãe, Raquel, ri, ainda sentada na mesa do almoço. Felipe desiste, pega o tijolo marrom e sai com ele sem fatiar, em direção ao pequeno escritório de onde organiza a parte administrativa da Siebert Woodcraft Surfboards, marca que criou há cinco anos e que não para de crescer graças a um conceito raro no ramo de shapes: o desenvolvimento de pranchas retrô, 100% de madeira e com alta performance.

Faz frio em Floripa. É o primeiro dia do inverno, céu cinza, chuva horizontal. O forte vento atrapalha a formação das ondas, por isso Felipe desiste de qualquer incursão à praia e fica entocado em casa. Com o chocolate em mãos, mastiga sentado em uma das cadeiras do escritório. Nele estão dois computadores, um pequeno sofá de dois lugares, um ukulelê, um violão, camisetas de uma parceria entre Siebert e a marca Empty, que se juntou a Felipe em busca de um conceito mais profundo na criação de produtos, pranchas experimentais encostadas na parede, como uma fish de madeira ainda sem laminação e outra “bolachinha” de espuma convencional. Diversos shapes de skate de diferentes tamanhos preenchem um canto da sala; livros de surf, como um exemplar autografado de The Art of Surfboard, de Greg Noll, e The History of Surfing, de Matt Warshaw, estão empilhados ao lado do sofá, próximos a uma pilha de parafinas e adesivos de sua marca; no alto, handplanes são vistos dentro de um armário, perpendicular a um suntuoso longboard 9’4” de madeira preso sobre a porta que liga o escritório ao corredor. O ambiente é organizado, dinâmico e conta também com uma porta para um deck no quintal.


Foto: Marcos Villas Boas

De chinelos, calça jeans escura e camiseta bege, Felipe divide o espaço com seu irmão Fábio, de 26 anos, responsável pela parte de vendas online da marca. Ao explicar a diferença dos pranchões de madeira para os de espuma, Felipe se levanta, ainda com o chocolate na mão: “A quilha fica aqui, com um passo para trás você consegue fazer a curva e colocar na linha. Se for perito, cruza o pé e faz assim. Não tem movimentos de tronco, é apenas o peso certo do pé, e nos pranchões de madeira esse peso deve ser um pouco mais acentuado do que o normal”.

Seus olhos parecem realmente encarar as longas ondas que se formam em praias como Ponta das Canas, no norte da ilha, para onde vai quando o mar fica de ressaca, ou da Tereza, praia no Farol de Santa Marta onde costuma passar semanas na casa da família de seu pai. “Em Floripa, longboard é sinônimo de prego, mas depois que o cara vê que você tem controle, passa a olhar você diferente.” Para Felipe, chegar de pranchão no outside é como aparecer com um carro antigo no meio de um racha. “Me sinto estanho, mas chego rindo. De toda forma, o longboarder precisa de bom senso”, conta.

Um pranchão feito por ele chega a pesar 2 quilos a mais que um convencional, de espuma, e é um pouco mais lento para fazer viradas e cutbacks, mas isso não interfere no estilo clássico, pelo contrário, chega a melhorar a estabilidade de manobras de bico, por exemplo.


Foto: Felipe Siebert

Descendente de alemães e portugueses, Felipe é um sujeito alto, tem cabelos encaracolados escuros, é forte, com excelente postura ao se sentar e caminhar e tem traços notavelmente germânicos. Formado em Biologia, tem a voz grossa e é um cara que pensa antes de falar, sempre tranquilo, concentrado e de risada discreta. O olhar, por vezes dissimulado, sempre se mantém atento à conversa. Tem 34 anos de idade, parte deles dedicados aos shapes de madeira e à concepção da Siebert Woodcraft Surfboards, que hoje atua não apenas no desenvolvimento de pranchas de surf, mas também de skate, roupas, handplanes, balance boards e tem o potencial de agregar diversos outros produtos.

Sua mãe é professora universitária e muito ligada à arte – quadros pintados por ela enfeitam as paredes da casa; seu pai, Paulo, é engenheiro mecânico e sempre esteve ligado à marcenaria, consertando qualquer coisa com sua caixa de ferramentas. Foi esse DNA apurado que ajudou Felipe a colocar seu sobrenome entre os mais respeitados do surf de Santa Catarina. A descoberta de novos horizontes com o desenvolvimento de suas pranchas, mais pesadas e resistentes do que as normais, abriu os olhos para um novo nicho entre os shapers brasileiros.

“Existe muito espaço para shapear no Brasil, mas não com pranchas progressivas. A cada dia aumenta o número de pessoas que procuram alternativas, como um longboard clássico ou uma fish benfeita. Quem faz progressivas até se arrisca, mas acho que na parte de arte surge muita coisa de mau gosto”, diz. Para o freesurfer brasileiro Junior Faria, um apreciador do surf alternativo, nunca faltou quem procurasse esses tipos de prancha: “O que mudou é a cabeça de quem faz, não de quem compra”. Segundo o guarujaense, agora é mais fácil encontrar esses tipos de prancha. “A procura sempre teve. Com essas pranchas as pessoas podem se dar melhor no outside e em variados tipos de onda”.


Testando sua criação. Foto: Fabio Siebert

Na casa de Felipe, no bairro de Trindade, Florianópolis, que divide com os irmãos Fábio e Mariana e com a mãe, algumas de suas criações de madeira estão distribuídas pelos cantos. São pranchas feitas de madeira compradas em madeireiras de Santa Catarina e Paraná. Os tipos usados são marupá, figueira, sumaúma e cedro rosa, todas serradas e lapidadas com técnicas de marcenaria bem mais eficazes do que a utilizada por Felipe em seu pedaço de chocolate na sobremesa. A criação acontece em uma espécie de edícula duplex nos fundos e, posteriormente, em uma oficina na Praia dos Ingleses, no norte da ilha. Na edícula estão pedaços de madeira, quilhas semiprontas e máquinas, como serrafita, lixadeiras, furadeiras e plainas. No segundo andar, moldes e esqueletos de pranchas dividem o espaço com alguns experimentalismos em madeira, futuros projetos, protótipos, brincadeiras, testes e pranchetas.

“Chegamos num ponto em que principalmente na parte de skate está faltando produto”, diz Felipe. “Antes era mais por encomenda, agora estamos fazendo para pronta-entrega, focados no volume de produção e buscando atender à crescente demanda de pedidos.” A loja virtual, comandada por Fábio, é responsável por 90% das vendas da marca, e quase tudo para fora de Floripa. “Nas capitais, conseguimos entregar na porta da casa dos compradores”, explica. Para diminuir as taxas de correio, as obras de Felipe foram aprovadas por uma espécie de sindicato dos artesãos, que garantiu que o que o catarinense faz é mais do que shapes de surf: são obras artesanais. Com essa aprovação, o estímulo para entregar seu material é bem maior. O governo diminui a tributação de produtos com esse reconhecimento, por isso as entregas no Brasil ficam bem mais acessíveis. “Agora estamos estudando como fazer as vendas para o exterior”, diz Fábio. Pela internet acabam surgindo interessados da Espanha e Califórnia, afinal, o trabalho de Felipe é coisa rara em todo o mundo. Mas a logística para essas vendas ainda é complicada. “Pelo que estamos vendo, precisamos enviar para esses destinos uma grande quantidade por navio já com alguém do lado de lá para revender.”

Aos 10 anos de idade, Felipe Siebert ficou em pé pela primeira vez em pranchas de isopor e morey boogies, mas foi aos 19 que passou o primeiro inverno inteiramente dedicado ao surf (ainda de pranchinha) em Laguna, no Farol, onde se considera mais local do que em Floripa. Seu tio, Osmar, tinha pranchas e era o único familiar ligado ao esporte naqueles tempos. Nem sonhava que o sobrinho se tornaria um dos shapers mais refinados do país.

As primeiras shapeadas de Felipe aconteceram logo depois da faculdade, por pura brincadeira. A primeira ficou ruim, a segunda já ficou melhor e um amigo encomendou a terceira, quando finalmente o processo saiu do jeito que o shaper queria. As primeiras vendas eram a preço de custo. Os pedidos aumentaram e a empreitada ficou séria. Felipe é autodidata, aprendeu lendo, assistindo a vídeos e fazendo adaptações. Aos poucos se viu dentro do mercado de surf, buscando evoluir tanto na manufatura dos produtos quanto no próprio estilo de pegar onda. Friorento, logo investiu em roupas de borracha e hoje está orgulhoso de ter uma botinha, sua mais nova aquisição para encarar as águas geladas da praia de Tereza. Nessas águas, como se fosse religião, desfruta do prazer único de fazer sua arte e poder vivê-la entre família, caminhando sobre os 10 pés de madeira trabalhada por ele, ao lado do irmão, entre bate-papo, risadas e diversão.


Foto: Felipe Siebert

“A melhor coisa do meu trabalho, hoje, é poder ter total liberdade de horários. Posso tirar uma segunda-feira para ir surfar em Laguna ou ficar uma madrugada inteira pesquisando referências na internet”, conta Felipe. “A ideia agora é poder deixar um bom número de pranchas prontas para poder viajar para a Califórnia e ficar uns dois meses, tanto para surfar e conhecer a cultura quanto para ver eventuais possibilidades de negócio”.

O catarinense conta que o estado americano é um dos maiores celeiros de surf com pranchas alternativas do mundo. E não por acaso, foi lá que as pranchas ocas nasceram. “A galera entende que o surf é pura diversão, não apenas a performance de uma prancha igual à do Kelly Slater”, diz. “Hoje tem moleques de 15 anos arrebentando no surf clássico de longboard.” O estilo que ficou praticamente morto dos anos 1970 até o surgimento de Joel Tudor na década de 1990 ganhou mais força hoje em dia, com a chegada de uma geração ousada em busca de outros caminhos para o surf. Dane Reynolds e Alex Knost no exterior e Junior Faria no Brasil ajudaram a expandir os horizontes. “O Dane reflete o modo de vida dos californianos e ele conseguiu agregar isso na competição e agora no freesurf”, analisa Felipe. “O Junior também é um cara com a cabeça aberta para essas experiências.”

O surfista brasileiro, inclusive, tem uma prancha de Siebert em seu quíver, uma biquilha 5’5”. “No primeiro momento, a principal diferença é o peso. Depois, na onda, dá para notar uma flexibilidade bem diferente. Não é rígida nem mole”, diz Junior. “A madeira em si nem influencia tanto, são mais as quilhas, o shape, o outline em geral.”

Felipe é torcedor do Figueirense e quando não está na água gosta de jogar bola, independente dos riscos físicos que isso possa trazer para o surf. Sua mãe brinca: “Ele não se machuca, é uma coisa impressionante”. O pior que já aconteceu com o shaper foi cortar o dedo até o osso com a serrafita e ralar a palma da mão em uma queda de skate.


Foto: Marcos Villas Boas

Na oficina em que finaliza a produção das pranchas em sociedade com Márcio Martins, de 38 anos, antigo empreendedor do ramo de shapes de sandboard e skate, Felipe orienta um dos funcionários que lixa um shape ainda em processo de finalização. Márcio participa do debate indicando outras opções de ferramenta para evitar qualquer tipo de arranhão no processo anterior à laminação. Tudo é feito com muito cuidado. Prensas antigas ficam nos fundos e o ambiente é repleto de pranchas de madeira em todos os estágios de produção. O pai de Márcio, de 78 anos, antigo dono de uma madeireira, também participa do processo, na marchetaria, unindo pequenos filetes antes de ir para a prensa. “Ele que faz todo o trabalho das bordas das pranchas”, diz o sócio de Siebert. “Nos preocupamos em reutilizar todas as sobras de madeira, sempre produzindo um material resistente que dure a vida toda.”

Dois longs e duas fishs estão na fila para passarem pelos últimos retoques. São os primeiros modelos de pronta entrega que Felipe fez, já pensando no volume para suprir a demanda de pedidos e na tão sonhada temporada de folga na Califórnia. Cada um demora cerca de seis vezes mais para ser feito do que uma prancha normal. Uma de espuma é shapeada na máquina em 20, 30 minutos, depois passa uma hora por acabamento e finaliza na laminação, única etapa que leva praticamente o mesmo tempo de uma prancha de madeira. “Na nossa produção são muitas etapas de colagem. Faço o fundo e o deck, depois vêm o bico e as laterais, feitos com filetes de madeira colados manualmente”, explica Felipe.

A ideia de englobar a produção de skate na Siebert Woodcraft Surfboards surgiu dois anos depois do início da manufatura das pranchas de surf, quando Felipe viu skatistas fazendo manobras de bico idênticas às do longboard, mas no asfalto. “Fiz uns no facão e, como eu estava evoluindo no surf de pranchão, vi que o skate podia me ajudar nisso”, diz. Hoje, o número de pranchas com rodinhas que saem da oficina é maior do que as pranchas de surf. São cerca de 10 a 20 skates por mês com sua assinatura. Esse número, entre os pranchões e fishs, é de 5 a 8 por mês. A diferença, segundo Felipe, se dá por dois motivos: o preço e a quantidade de lugares onde se pode andar de skate. Skates vão para todos os cantos, pranchas de surf estão limitadas ao litoral. Para cada pranchão, Felipe utiliza madeiras de 10 quilos que rendem trabalho em mais de um produto. “Na construção de uma casa, é utilizado mais madeira do que eu vou usar durante minha vida inteira”, brinca. Depois de transformar um pedaço de tábua em arte, o preço de um long chega a R$ 2.200, em torno de R$ 500 a mais do que um convencional. “Fazemos uma prancha rara e difícil. Comparando com o que existe no mercado, acredito que nosso preço ainda é barato.” Suas estruturas ocas lembram miniembarcações da época das naus portuguesas ou asas de avião. A diferença é que, sob os olhos de Felipe, elas se tornam embarcações individuais para deslizar sobre as ondas, no melhor estilo de longboard dos anos 1940 e 50, porém baseadas na pioneira estrutura oca patenteada pela lenda do surf Tom Blake em 1931 (veja o box “Um pouco de história”, na página ao lado) e redescoberta no fi nal dos anos 1990 por shapers como Tom Wegner, da Califórnia. Com cerca de 20 cm entre uma estrutura interna e outra (espécie de costelas), Felipe dá leves batidas nas áreas do pranchão encostado no alto de seu escritório para notar as partes ocas. Um artista? Quem sabe: “Me preocupo principalmente com a funcionalidade das minhas criações. Se é arte ou não, deixo para que os surfi stas digam”, responde com a humildade que lhe é peculiar.


Foto: Marcos Villas Boas

Enquanto os cães Chica e Pingo, ambos pequenos vira- -latas, brincam nos arredores da casa, o shaper caminha de volta para a cozinha com seu chocolate em mãos. Fábio, falando ao telefone, surge com alguns boletos bancários da TAM Cargo, responsável pelas entregas, e faz gestos, tentando explicar o que são aquelas cobranças. Felipe faz um sinal de positivo com a cabeça, pega o boleto e, mastigando o chocolate, retorna ao escritório. Coloca a conta ao lado do teclado e liga o computador.

Tudo é feito com serenidade e sem pressa. Ao ligar a máquina, sua atenção é desviada para a previsão de ondas em Floripa. “Vento sul e swell de sul, tudo horroroso”, resmunga. Do lado de fora, a chuva cessa. Felipe entreolha preguiçoso pelas grades da porta que dá para o jardim. Seu irmão volta ao escritório, balança o mouse e, ao abrir a tela de seu computador, um vídeo está pausado. “Olha só, esse cara é campeão mundial de longboard e ninguém sabe quem ele é”, comenta.

Ao notar uma mensagem em seu celular, Felipe pergunta para o irmão: “O Márcio já está na oficina. Você vai lá comigo?”. De olho no céu cinza que brinda a chegada do inverno, Fábio responde: “Tenho que acertar uns pagamentos ainda, acho que não vai dar agora”. Felipe faz uma espécie de cesta na boca com o pedaço final de chocolate, se levanta, coloca a cobrança ao lado do teclado do irmão e resgata uma malha jogada no sofá. “Vamos lá. Hora de trabalhar”.

Confira o trabalho de Felipe em http://siebertsurfboards.com

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