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Fé na Tábua


Nordeste ou Indonésia? Foto: Clemente Coutinho.

Por Fernando Gueiros

Surfistas nordestinos exportam para o mundo um estilo descontraído e raçudo que, muitas vezes, caracteriza o brasileiro no exterior. Assim conquistaram seu espaço com autenticidade, humildade e vontade fora do comum. “A diferença é que eles já têm no sangue a persistência, o instinto de desafiar, de enfrentar dificuldades. O nordestino tem mais vontade de evoluir que os outros até por sua desigualdade”, diz João Carvalho, atual assessor da Abrasp, que já comandou a Opest Surf Shop, em Natal, entre 1985 e 1993, patrocinando atletas como Joca Júnior, o primeiro campeão brasileiro vindo do nordeste, Aldemir Calunga e Fabio Gouveia. Suas palavras refletem o DNA contido no sangue dos pernambucanos, cearenses, baianos, potiguares, alagoanos, maranhenses, paraibanos, piauienses e sergipanos. O mesmo sangue de grandes nomes brasileiros, como Luiz Gonzaga, Ariano Suassuna, Jackson do Pandeiro, Sivuca, Antônio Conselheiro e Lampião. Guerreiros e artistas, na vida e na profissão.

É claro o potencial da região ao analisar a versatilidade das ondas e bancadas locais: beachbreaks como Ponta Negra (RN) e Francês (AL), para quem quer aprender a surfar; as bancadas de nível havaiano, como a lajinha da Praia da Pipa e as pedras de Baía Formosa, ambas no Rio Grande do Norte; os corais de Barra Grande, na Bahia; e as bancadas de Noronha e Serrambi, em Pernambuco. São cenários perfeitos para lapidar novos atletas, realizar surftrips e fomentar as indústrias de surf locais.


Para o Top Jadson André, nascido no Rio Grande do Norte e 22º colocado do ranking mundial em 2011, os melhor picos do Nordeste para surfar são os fundos de pedra da Pipa e Baía Formosa. “A gente não recebe tanto swell, mas quando recebe, tem as bancadas perfeitas e as ondas ficam realmente bem parecidas com as da gringa”, diz.

Foram nelas que o mestre paraibano Fabio Gouveia lapidou seu surf. “Em Baía Formosa aprendi a pegar onda e desenvolver uma linha melhor de surf. Lá é muito bom, assim como a lajinha da Praia da Pipa. Cada uma tem seu dia”, diz. A face mais genuína do surf brasileiro foi responsável por cravar de vez a bandeira e difundir a cultura nordestina no surf nacional. Exemplo disso é o filme mais popular do Brasil, sua cinebiografia “Fabio Fabuloso”, com raízes incrustadas na cultura popular, utilizando a estética regional e poesia de cordel para contar sua história, como no tema “Linha Encantada”, do grupo Comadre Fulozinha:

“Travessô os Oceano
E foi lá pro Hawaii
Entrouxou todo Sunset
Envergando toda ilha
Fez os gringo de boneco
E ergueu mais um caneco”


Marco Fernandez, atleta baiano, dominando suas águas com categoria. Foto: Clemente Coutinho.

Ai, meu padim ciço

São 2.611 km de litoral com bancadas de pedras e corais abençoados por entidades nordestinas como Padre Cícero, ou Padim Ciço. A religiosidade, por sinal, é uma das características da região do país com a maior costa litorânea. E só Deus mesmo para trazer tantos presentes: “Já vi o João Maurício Jabour, que mora no Hawaii, sair de Serrambi e falar: ‘Mermão, essa onda aqui é a onda que nêgo paga R$ 5 mil dólares e vocês tem de graça em casa”, conta Clemente Coutinho, fotógrafo pernambucano que é um dos poucos que pode registrar aquelas ondas.

São praias que, além do surf, contam com água quente, sol, água de coco, peixe na brasa, aquele forrozinho de noite… “Aqui o cara vai pro mar todo dia, com ou sem swell. Tem tempo bom e marolinha pra treinar. Em Floripa, por exemplo, com marola ninguém cai por que é frio”, observa João Carvalho. Essa frequência que é responsável por formar um dos times de surfistas mais bem preparados do país.

“Eu acredito que os grandes campeões que o Brasil pode vir a criar vão sair do Nordeste”, analisa Daniel Friedman, veterano carioca e ex-top mundial. “Surfistas que precisam de grandes deslocamentos para surfar ou têm condições que exigem muito mais dedicação e vontade. Isso, sem dúvida, aumenta as chances de vitória no futuro.”

Alfio Lagnado, dono da Surf Co. e fundador da Hang Loose, acredita nisso: “O jeito do nordestino ser, descontraído e solto, combina totalmente com o espírito do surf. Eu sou fã do Nordeste, da comida, das pessoas, do jeito delas”. Para Clemente Coutinho, o mercado do Sul e Sudeste precisa abrir os olhos para esse potencial: “Temos ondas de altíssima qualidade e fundos melhores. Sem falar que o maior surfista brasileiro de todos os tempos é paraibano, vindo de um lugar que nenhum de nós aqui começaria a surfar”.


Alexandre Ferraz, nos tubos protegidos do Serrambi, PE. Foto: Clemente Coutinho.

De olho nos atletas

Muitos frutos das terras banhadas pelo Rio São Francisco se tornaram craques brasileiros, como Carlos Burle, Eraldo Gueiros, Danilo Couto, Bernardo Pigmeu, Paulo Moura, Fabio Cuencas, Felipe Dantas, Heitor Alves, Jadson André. Sem falar em surfistas que estão ganhando espaço, correndo atrás de uma sólida carreira profissional, como Allan Jhones, Ítalo Ferreira, Luel Felipe, Messias Félix, Halley Batista e Marco Fernandez. Mas ter visibilidade no mundo do surf e ser do Nordeste são duas coisas distintas? Não, se depender de um dos maiores empresários de surf do país, Alfio Lagnado. “Sempre teve essa discussão de que o surfista nordestino é um pouco discriminado, o que não é verdade”, ele garante. “A verdade é que existe um grande número de talentos no surf nordestino que acaba não sendo revelado. No Sul e Sudeste, os talentos acabam tendo mais exposição pela proximidade dos mercados, das marcas, das pessoas envolvidas”.

O campeão brasileiro e ex-top mundial Joca Júnior, do Rio Grande do Norte, acredita que “não existe a preparação que atletas gringos e, atualmente, os atletas de outras regiões do país, como Pupo ou Medina, têm desde cedo”. O que o ex-profissional alega é que as condições e perspectivas dos atletas nordestinos são diferentes: “Aqui o cara fica feliz só de ir para o Sul. Caras como o Jadson, por exemplo, deram certo porque conquistaram um patrocinador que acompanhou e deu toda a estrutura. Se não for assim, o cara fica no meio do caminho ou vai pra fora sem preparo e é discriminado”. Aí não tem nenhum São Francisco ou Padim Ciço que salve.

Para o antigo dono da Opest, João Carvalho, a exposição que o nordestino tem hoje é a mesma que no resto do Brasil: “Há alguns anos, tivemos um êxodo dos surfistas daqui para outras regiões. O Calunga foi pro Guarujá, o Fabinho pra Santa Catarina, o Joca pro Rio… Recentemente, chegou até a rolar um caminho de volta, graças ao circuito nordestino forte que tivemos nos últimos anos, mas eu acredito que hoje temos muitos campeonatos e nem sempre temos uma boa estrutura para os eventos”.

Segundo Clemente Coutinho, é preciso, acima de tudo, superar estigmas no país: “Querendo ou não, o Nordeste sempre foi esquecido”, observa. “Basta o cara abrir a boca que já falam: ‘Ih, o cara é nordestino, o cara é baiano’… isso sempre teve. Quando essa visão mudar, com certeza o surf nordestino vai crescer muito mais”.

A matéria "Fé na Tábua" continua nas páginas da HC #271, abril de 2012.

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