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tem índio na onda


Licuri afiando o bakside no litoral paulista. Foto: reprodução filme

Por Fernando Gueiros

      O Brasil foi notícia no mundo com o curta-metragem de Guile Martins sobre Licuri, um índio surfista. Licuri Surf recebeu uma menção honrosa no Festival de Berlim – um dos mais conceituados do mundo, que premiou, entre outros filmes, o brasileiro Tropa de Elite, em 2008. Para Guile, o surf é “a capacidade de se deixar levar por um fluxo, uma força. Um corpo que, ao invés de brigar com a onda, conjuga-se a ela e torna-se arte”.
       Para o paulista de 29 anos, o surf não é apenas um esporte, mas uma sabedoria, uma lição de vida. “Por isso penso que na aldeia Pataxó todos os índios são, no limite, surfistas. Conjugam-se com a maré para pegar lagostas, com a lua para saber quando os caranguejos vão andar pelo mangue, com o barro para construir casa e com os ventos para navegar. São surfistas do tempo e sobreviventes das adversidades.”

UMA TRIBO E SUAS ÁGUAS, por Guile Martins

      Conheci Licuri há 11 anos, quando eu vagava meio sem rumo pelas praias do sul da Bahia. Desembarquei num vilarejo chamado Caraíva, lugar turístico bem conhecido por paulistas, mineiros, cariocas… Ao descer da canoa um indiozinho Pataxó vendendo colares de semente me perguntou se eu tinha onde ficar.
       Muito orgulhoso, agradeci a ajuda, mas disse que preferia me virar sozinho. Eu não levava mais do que 150 reais no bolso e logo percebi que não tinha condição de ficar em nenhuma das pousadas da vila. Decidi caminhar pela praia até que encontrei algumas ocas na areia. Fui chegando, meio sem jeito, e me deparei com Kaiandura e suas 12 crianças sentadas ao seu redor, fazendo colar de semente. Licuri era uma dessas crianças e, por caprichosa coincidência, era ele o menino que tinha me oferecido pousada quando desembarquei da canoa. O mundo deu uma volta e eu fui parar lá mesmo, onde ele quis me levar. Ali fui ficando, conhecendo as crianças e percebendo sua relação fundamental com as águas.
       Naquela época ninguém surfava, mas já eram golfinhos. Quando íamos pegar jacaré, Licuri sempre ficava no mar até o anoitecer, brincava com as ondas, deixava-se levar. Aquilo era natural para ele, que, na época, tinha 11 anos. Desde então volto todo ano, buscando a liberdade e a limpeza daquelas águas correntes.


 

O FILME
      As filmagens só se realizaram 10 anos depois, em 2011, e duraram aproximadamente um mês. A equipe ficou 10 dias na aldeia filmando o dia a dia da família de Kaiandura e Xuré, pais de Licuri. Depois partimos em viagem numa van que quebrou aproximadamente sete vezes. Saímos de Caraíva sentido sul. Filmamos surf em Regência, Camburi, Camburizinho, Toque-Toque Grande e Caraíva. A ideia era viajar em busca de ondas maiores, pois na praia de Licuri raramente o mar se adequa ao surf. No entanto, eu não queria que o filme dependesse tanto assim da sorte, e caso não encontrássemos ondas boas, algum outro proveito deveria ser tirado da viagem. Assim tivemos a ideia de promover o encontro entre Licuri e o shaper Ronaldo Marques, que vive em Camburi.
      Como o artesanato é algo muito natural ao povo Pataxó, pensei que Licuri poderia aprender um pouco a arte de shapear, acompanhar e desmistificar todo o processo de feitura de uma prancha. A ideia era que Licuri pudesse fazer sua própria prancha e levá-la de volta à aldeia. O encontro com Ronaldo foi fundamental e fermentou o filme. Além de ensinar Licuri a fazer sua própria prancha, ele fez questão de surfar com ele.
       Por ser nativo de Camburi, o shaper conhecia o caminho das pedras. Sugeriu que entrássemos no mar não pela areia, mas pelas rochas. E nos indicou um amigo fotógrafo, o Fábio Paradise, para fazer as filmagens no dia em que as ondas estavam mais fortes. Aquelas imagens só poderiam ser feitas por alguém que pegasse ondas, que soubesse onde se posicionar e que aguentasse o tranco. Assim o filme foi se fazendo, através de bons encontros, somando mãos, gestos e vontades.

O SURF E OS ÍNDIOS
      Percebi que o surf para Licuri era apenas um desdobramento natural da relação ancestral que seu povo tem com as águas. É do mar que tiram seu sustento, sua potência e também sua diversão. Para mim, Licuri encontrou no surf uma maneira de manter e reencontrar um significado para essa relação fundamental com as águas.
       Se o choque cultural é forte e crescente, ele escolheu pegar para si o melhor desse choque e deslizar sobre ele. Encontrou no surf uma maneira de continuar sendo índio e livre. Pode parecer utópico, mas eu acredito que na água somos todos iguais. Se há uma lição no filme é a de que enquanto houver água limpa e coragem, haverá liberdade, haverá surf. Mas ao se ameaçar o rumo dessas águas para outras finalidades, tudo o que foi visto de belo e vivo será apenas peça de museu.

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