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sábado, 16 março, 2024
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Uma rasteira em Netuno


Craig Anderson sabe o que fazer com uma onda de reef. Foto: Nathan Lawrence.

Desde o mitológico Ícaro, o homem luta para dominar os ventos e, nas últimas décadas, conquistou êxitos exprssivos depois de muita ousadia e persistência. Agora, chegou a vez dos discípulos de Eddie Aikau tentarem influenciar a formação de seu bem mais precioso com a ajuda de reefs artificiais.

Por Rafael Thomé

Os cinco continentes, juntos, possuem quase 800 mil km de litoral. “Haja onda”, você pode pensar. No entanto, nem sempre é assim. Grande parte da costa mundial não apresenta boas condições para o surf, apesar de ser grande também o número de praias perfeitas, capazes de fazer a cabeça de muita gente boa com a boia debaixo dos pés. No Brasil são mais de 250 cidades espalhadas por cerca de oito mil quilômetros à beira do Atlântico, o que anima qualquer surfista à procura de ondas.

Apesar de vasta e bela, a costa brazuca, com frequência, pode deixar o marmanjo na fissura. “O Brasil tem uma carência grande de ondas de qualidade. Claro que existem alguns picos que quebram perfeitos em condições especiais, mas são poucos dias ao ano. A natureza foi um pouco ingrata conosco: na região Nordeste, onde estão os melhores fundos, as ondulações são pouco frequentes. Nas regiões Sul e Sudeste, onde as ondulações são muito frequentes, os fundos em geral são ruins”, analisa Luis Guilherme Morales de Aguiar, presidente da associação de surfistas da praia do Arpoador (RJ), o Arpoador Surf Club.

Experiências espalhadas pelo planeta dão força a uma ideia que pode ser introduzida em águas canarinhas: a construção de fundos artificiais para potencializar as ondulações. Guilherme, que também é engenheiro civil, mestre e doutorando em Engenharia Costeira na COPPE/UFRJ, comenta que “o importante é que se façam as modificações de maneira inteligente, sem causar impactos negativos que possam destruir a natureza. O tipo de ondas varia, a maré varia, e o vento varia. São infinitas combinações e conseguir dominar essas forças para formar a onda perfeita éum desafio fascinante”.


Tom Curren, muita habilidade pra não afiar quilhas no coral. Foto: Dave Sparkes.

Nas regiões Sul e Sudeste, por exemplo, a massa de água que se movimenta ao longo da faixa litorânea é a mesma, tendo apenas como diferencial a bancada de cada praia, responsável pelo empinamento e quebra da ondulação. Eduardo Siegle, professor e pesquisador do Instituto Oceanográfico da USP, explica que “a onda começa a sentir o fundo do mar quando a profundidade é equivalente à metade de seu comprimento (distância entre a crista de uma onda à outra). A partir daí, ela interage com o fundo e é transformada, aumentando sua altura até finalmente quebrar”.

Esse fenômeno, que jamais havia sofrido a interferência humana de maneira efetiva, começou a ser dominado com a chegada do novo milênio. Diversas tentativas mostraram que criar um fundo artificial pode ser uma alternativa viável e de bons resultados na formação de ondas e outras benesses. Boscombe (Reino Unido), Kovalam (Índia), Mount Maunganui (Nova Zelândia) e Cable Station (Austrália) são exemplos de recifes artificiais multifuncionais que tiveram resultados, no mínimo, satisfatórios.

É pra shapear

O funcionamento dos reefs é bastante simples: quando a onda entra numa baía, as pontas laterais se movem mais devagar que a parte central, já que ela vai se entortando e se ajustando ao fundo. É algo parecido com uma fila de soldados que vira uma esquina em formação, com os soldados que estão mais perto da esquina a andarem mais devagar e os que estão longe dela a andarem mais depressa.

“A ideia é usar esse processo de refração e concentrar a energia em um ponto, o que aumentaria a altura da onda e moldaria sua consequente rebentação. Esse é o caso do recife, seja ele natural ou artificial”, enfatiza Eduardo Siegle.

Além de alinhar e “engrossar” a onda, uma bancada destas pode interagir com o meio de diversas maneiras, inclusive servindo de apoio à proteção e recuperação ambientais. Diferentes organismos se instalam na estrutura à procura de abrigo, criando um ecossistema local e uma cadeia alimentar – novos animais vão passar a frequentar o arrecife, mas fique tranquilo, tubarões famintos não aparecerão por lá, a não ser que já vivam nos arredores. O pesquisador da USP alerta para o cuidado ambiental e ressalta que um dos benefícios é que “se houver uma praia com problema de erosão, por exemplo, um recife estrategicamente colocado protege a costa, já que a onda vai quebrar mais para fora e poupar a praia”.


Não era um reef, mas a bancada de areia formada pelo Pier de Ipanema, nos anos 70, proporcionava altas esquerdas para toda uma geração de surfistas cariocas. Na foto, Rico de Souza. Foto: Fedoca.

Guilherme concorda com Siegle, mas alerta que projetos mal elaborados, que não levem em conta as alterações que a estrutura causa nas correntes e, consequentemente, no transporte de sedimentos, podem causar impactos indesejados, como, por exemplo, erosão e recuo da linha de costa a sotamar da estrutura ou em áreas adjacentes.

“Assim como as consequências morfológicas, todos os demais impactos podem ter aspectos negativos que devem ser quantificados. Por exemplo, o enriquecimento da vida marinha normalmente é encarado como algo exclusivamente positivo, mas também pode ter efeitos negativos quando novas espécies são atraídas e geram um desequilíbrio local. Quanto aos impactos sociais, o crowd de surfistas, que um fundo artificial deve trazer, pode se tornar um ponto negativo em um local sem estrutura para recebê-lo”, analisa o engenheiro costeiro.

O estudo ambiental e o desenvolvimento adequado do projeto são essenciais para o êxito de um arrecife artificial. Não se iluda, porém, parceiro. Aquela praia em que nunca entra vala, e que o swell mais parece um vento soprando e penteando as águas de uma lagoa, não terá onda nem sob as ordens de Netuno. Os reefs não são máquinas de criação, eles apenas influenciam no empinamento da massa d’água e no alinhamento da parede, transformando uma onda irregular em onda surfável.

A matéria sobre reefs artificiais continua na HC de março.

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