John John Florence vive em um mundo relativamente fechado, de díficil acesso. Utiliza pouco as redes sociais, raramente compartilha momentos particulares, não gosta de conceder entrevistas.
Talvez o maior exemplo disso até agora tenha sido o instante em que conquistou seu segundo título mundial. O grande clímax do ano competitivo no surf foi compartilhado apenas por alguns amigos que estavam junto com ele em uma sala de estar fechada, sem câmeras nem repórteres nem nada. Nós não estávamos lá. A WSL não estava lá. Frustrante.
Assim aprendemos a apreciar as brechas que o bicampeão mundial abre para um olhar mais próximo sobre ele. Neste caso, não se trata de uma brecha, e sim de toda uma janela, uma visita guiada por ele mesmo a alguns dos momentos mais importantes de sua vida. O longo texto de John John no Players Tribune é apenas o segundo escrito ali por um surfista e, honestamente, muito menos emocionante e revelador que o primeiro, assinado por Adriano de Souza logo após seu título mundial.
Mas, ainda que não tenha o contexto de superação do relato de Mineiro – algo a que JJF, corretamente, nem se propõe -, a leitura é muito válida pela simples razão de entrar, por aguns momentos, em episódios e opiniões e histórias da vida de Florence.
Traduzimos abaixo alguns trecho que consideramos mais importantes, ou relevantes, ou reveladores. Sobre a crescer no North Shore, sobre uma grave lesão na coluna, sobre o despertar de seu espírito competitivo e algumas coisas mais.
Você pode ler o texto na íntegra, em inglês, aqui.
O oceano é tudo
“Quando as pessoas me perguntam como me tornei quem eu sou, ou o que me inspirou quando criança, normalmente falo a elas sobre o North Shore de Oahu.
Primeiro, entretanto, vou falar de minha mãe.
Ela surfa todos os dias. Sempre surfou. Quando eu estava crescendo, ela estava na água em todas as oportunidades. E até hoje, quando não está trabalhando ou surfando, ela está no skatepark. Ela ama skate quase tanto quanto ela ama o surf.
“Eu a segui oceano adentro”
Lembro desses tempo em que eu era muito novo, oito anos ou algo assim, e as ondas estavam realmente grandes… e eu estava um pouco assustado de pegar minha prancha e cair. Ela não me forçava a ir, não me pressionava nem nada do tipo. Ela só olhava para mim e dava de ombros: “OK então, estou indo lá”.
Assim… OK, tchau.
E eu apenas olhava para ela e pensava, Espera… o quê? Você vai mesmo cair?
Isso em Pipeline, bem em frente a nossa casa no North Shore. Tem ondas realmente grandes no inverno. Coisa séria. E essa é minha mãe.
Pronta para remar ao outside em seu pranchão e ver o que rolava.
Eu poderia só para trás, é claro.
Mas o que eu ia fazer… sentar na praia vendo-a pegar as ondas? Sem chance.
Então eu a segui oceano adentro.
E em cada vez que eu fiz isso, eu me diverti muito. Nunca me arrependi.
Então, sim, essa é minha primeira inspiração. Definitivamente. Minha mãe. Ela é clássica.
Também foi ela que me deu o apelido de John John – a primeira vez que ela o escutou foi para John F Kennedy Jr. (filho do ex-presidente dos Estados Unidos John Kennedy).
“O oceano é tudo aqui”
Esse inverno, depois de terminar a temporada da WSL com o título em casa, fiquei pensando bastante sobre o que significa para mim ter crescido aqui… e como é bom ser daqui. Eu amo basicamente tudo que vem disso, mas há duas coisas que realmente definem de onde eu venho:
Primeiro, o oceano é tudo aqui.
Minha vida se desenrolou em torno do mar desde o começo, e é assim com todo mundo por aqui. O North Shore tem essa sensação de cidadezinha do interior. Todo mundo se conhece, e parece que todo mundo tem alguma coisa com o mar.
Esse amor pelo oceano está dentro de você se você cresceu aqui – pode ser pescando, surfando, fazendo bodysurf, ou um milhão de outras coisas, tem sempre algo legal para fazer no mar. Então é um ponto em comum bem legal que todo mundo aqui tem.
Segundo, de onde eu venho as pessoas cuidam umas das outras.
É como uma grande família aqui, com certeza. Crescendo no Hawaii você aprende a respeitar os mais velhos, e a ter muito respeito por todas as pessoas a sua volta. Isso é a comunidade aqui. As crianças respeitam os adultos, e os adultos sempre cuidam das crianças. Principalmente na água. Isso foi muito importante para mim, pois comecei a surfar em Pipe quando ainda era muito novo.
Devido a esse senso de comunidade que existe no North Shore, sempre senti que tinham vários caras mais velhos olhando por mim dentro d’água. Era uma sensação muito, muito boa, com certeza.
Surfistas mais experientes vinham saber toda hora como eu estava, se estava tudo certo. Lembro de uma vez, quando tinha 12 anos, por aí, e as coisas começaram a ficar interessantes na água, umas ondas bem grandes. Eu estava no canal de Pipe, bem longe no outside, e do nada apareceu o Nathan Fletcher. Ele remou para perto de mim e perguntou, “E aí, John, tudo certo?”
Eu era só um moleque sentado na prancha lá fora. Ele deve ter achado que eu estava morrendo de medo. Mas a gente estava ali. “É, tudo bem sim”, respondi. Era como se a gente tivesse se cruzado no corredor do mercado.
E então, logo depois de eu responder, lembro de ele virar e botar para baixo em um dos maiores tubos que eu já tinha visto. Um tubo sinistro. Bem na minha frente.
Ele viu se eu estava bem, então foi e pegou sua onda.
“Eu só perdia e perdia e perdia”
Um monte de gente acha que surfar foi fácil para mim. Mas não é o caso.
Comecei a competir quando ainda era bem novo. Uma consequência disso é que você acaba perdendo muito.
No começo isso era OK. Como uma criança pequena, eu amava viajar para as outras ilhas para pequenos campeonatos porque eu encontrava muitos amigos lá. Era só um jeito legal de passar os finais de semana. A gente se juntava e ia para Maui ou Kauai, e o campeonato rolava e você passava o dia inteiro com seus amigos. Tudo era divertido.
Mas quando comecei a competir a sério no QS por uma vaga no CT, a parte de perder começou a ficar… menos divertida.
Eu só perdia e perdia e perdia. Não estava nem perto da qualificação. Eu ganhava uma bateria, e aí perdia de novo. Foi assim por dois ou três anos.
Em um momento eu pensei em largar tudo e fazer outra coisa da vida.
Lembro de pensar, “Qual é o plano aqui? Eu realmente quero ficar fazendo isso? Talvez seja mais legal ir em outra direção.”
Eu era muito novo. Hoje em dia fico feliz por ter começado cedo, mas foi muito difícil.
Bem quando eu estava pensando em seguir outro caminho eu quebrei minha coluna surfando em Pipe.
Tinha 18 anos e era o tipo de onda que eu já tinha surfado um milhão de vezes. Mas dessa vez, em vez de abrir um tubo, ela resolveu fechar bem em cima de mim. Fiquei sem surfar por quatro meses. Foi horrível.
Mas por causa dessa lesão acabei mudando meu jeito de ver as coisas. Eu estava muito animado para voltar a surfar, e em um ano eu consegui a vaga no CT.
“Eu amo o desafio”
Àquela altura eu percebi porque, por tanto tempo, eu não consegui me dar bem nas competições. Era o jeito que eu encarava aquilo.
O que eu mais gosto em surfar é estar lá fora com meus amigos. Dando risada e me divertindo e aproveitando a onda que tiver ali.
E tem algo de não-competitivo nisso. Surfar, para mim, tinha sido sempre aquela sensação do momento, essa diversão que é tão distante de “competição” – simplesmente estar na água com seus amigos, milhões de milhas longe do resto do mundo, aproveitando aquele momento e aquele lugar. Você só quer se divertir, dar risada e surfar.
O que, é claro, não é bem o que você encontra nos campeonatos.
Então, sim, alguns anos atrás eu percebi que na verdade eu fazia sessões de freesurf nas competições desde o começo. E que isso era legal quando eu era jovem e não queria entrar no CT nem nada disso.
Mas depois de muito tempo só perdendo, e depois de quebrar minhas costas, percebi que as competições eram um jeito realmente único de conhecer melhor a si mesmo, porque você tem esses altos e baixos e precisa lidar com suas emoções de algum jeito.
Comecei a ver as competições como um jeito de aprender sobre mim mesmo, e foi quando eu comecei a melhorar de verdade. Hoje em dia, por mais estranho que pareça, eu quase penso que as competições são mentalmente mais gratificantes para mim que o freesurf.
Eu amo o desafio.
Ainda estou desacelerando da última temporada, e ainda não caiu a ficha de que eu ganhei meu segundo título mundial. Tudo aconteceu muito rápido.
Uma coisa que eu sei é que, ainda que muita coisa tenha mudado para mim nesses últimos anos, muito do que eu sou continua igual, e eu não vejo isso mudando neste ano.
Quando estou em casa depois da temporada, eu realmente amo mergulhar de volta na comunidade do North Shore, ver todos os rostos familiares, aproveitar tudo que o lugar tem de especial.
É sempre muito legal ver a próxima geração de crianças fazendo exatamente as mesmas coisas que eu fazia aqui quando tinha a idade delas. É muito louco pensar que agora eu sou o cara mais velho que vai ver como as crianças estão no canal de Pipe, como o Nathan Fletcher foi para mim. E ver todas essas crianças correndo da escola que eu estudei para a praia para brincar na areia ou na água é simplesmente a coisa mais legal do mundo.
Essas crianças me fazem lembrar de mim mesmo, e de como foi bom crescer no North Shore. Temos tanto em comum, compartilhamos tantas experiências, e todos temos o mesmo amor e respeito pelo oceano.
De vários jeitos, aquelas crianças são eu.
E posso dizer que ainda me sinto como elas.”
Crédito da imagem de capa: WSL