Após uma série de cirurgias e uma lenta recuperação da coluna, a carioca de 31 anos comprovou em Nazaré que está mais pronta do que nunca em sua carreira, na evolução constante no big surf desde os 18 anos de idade.
Seis vezes vencedora da categoria de Melhor Surfista Mulher do XXL Awards, ela aguarda uma resposta do Guinness e da World Surf League sobre sua última onda surfada na Praia do Norte, no começo deste ano – provavelmente a maior já pega por uma mulher. Maya Gabeira revela na entrevista como alterou sua rotina de treinos, pranchas e logística para se adaptar ao corpo reabilitado e voltar ao posto de maior surfista de ondas grandes do planeta.
Entrevista por Adriano Vasconcellos
Retratos por Diego Cagnato
HC: Depois de passar por momentos tão intensos em Nazaré, agora você voltou para lá e, muito provavelmente, pegou a maior onda já surfada por uma mulher. Você está se sentindo realizada?
Maya Gabeira: Eu senti certa realização na forma como surfei a temporada. Acho que não foi só uma onda. A onda é um reflexo de como você está performando na temporada. Nunca consegui surfar uma onda incrível sem estar em um ritmo super bom. Sempre reparo que os meus feitos e as grandes ondas que já surfei na minha vida vêm em um momento em que estou performando muito bem, focada, no lugar certo, muito dentro d’água. Isso tudo influencia muito nesses momentos. Fiquei três anos em reabilitação e essa é minha primeira temporada cem por cento fisicamente, na verdade – como poucas vezes ou talvez eu nunca tivesse estado. Tinha mudado de treinador, tudo. Eu tinha passado um tempo na Indonésia, já estava surfando bem, ganhando confiança, até chegar à Portugal, em agosto. É meu quinto ano por lá, é um lugar com o qual tenho muita intimidade, que entendo e estava em outro processo de prancha, em outro momento com o time e em outra logística. Já tinha dado vários passos para evoluir e só faltava estar cem por cento no rip do surf. Com certeza, a melhor temporada que eu já vi lá, pelo fato de que a Europa estava muito fria e estava dando muita onda grande. Não dá para contar as vezes que eu estava dentro d’água e via uma onda de 20 pés ou mais, sem ninguém. Só eu e o Eric Rebière, ou então o Lucas Chumbo.
A gente chama de treino, porque eram 20 pés ou mais e não tinha ninguém na água. Outra realidade. Você pensa no Hawaii… isso não acontece mais lá, é muito difícil.
A gente chama de treino, porque eram 20 pés ou mais e não tinha ninguém na água. Outra realidade. Você pensa no Hawaii… isso não acontece mais lá, é muito difícil. E lá em Portugal a gente tem tido essa benção de não ter muito crowd e ter muita onda grande, em um nível em que as pessoas se cansam de tanto surfar. Morando lá, eu tenho a possibilidade de treinar muito e vinha num ritmo muito bom. Então me sinto realizada, porque acho que, desde a primeira vez que fui para Portugal, minha impressão sempre foi a mesma. Aquele lugar era “o lugar”. Se você quisesse ser um surfista de onda grande, não tinha lugar melhor para treinar, evoluir e elevar o nível do esporte. Essa minha percepção de Nazaré nunca mudou. É por isso que, mesmo depois do acidente, eu não tive muitos questionamentos do tipo: “ah, será que eu vou parar de ir para lá?”. Não, aquilo para mim era um tesouro. Eu não ia abandonar aquele tesouro assim, estava totalmente inexplorado naquela época. A cidade era fantasma, hoje já não é mais. A minha história foi evoluindo com o lugar e essa temporada foi a primeira em que pude ver como estava o meu nível de performance. Acho que em todos os outros anos que estive lesionada, eu tinha limitações, mas sempre evoluía em algum ponto, como pilota, no equipamento ou assistindo as pessoas dentro d’água. Seria diferente se eu tivesse falado: “não estou bem, acabei de operar a coluna e vou ficar em casa fazendo reabilitação no Rio”. Não, tive o insight de ir para lá e fazer toda a minha reabilitação durante a temporada.
Como foi a sua reabilitação, especialmente, para cuidar da sua mente? A opção de ir para Nazaré foi um desafio pessoal para vencer aquela onda? Não que você não tivesse vencido, mas sofreu o acidente e, de certa forma, algum trauma poderia existir. Como você balanceou isso?
Superar o trauma seria uma consequência. Eu precisaria superar o trauma para poder surfar e não via lugar melhor. Por acaso, a minha família é portuguesa, então tenho passaporte. Foram vários fatores. Acabei abandonando o Hawaii, para onde fui por 12 anos durante as temporadas. Essa temporada foi a primeira que eu não fui e não senti a menor falta. E as pessoas me perguntavam: “como assim, você não vai para o Hawaii?”. E eu dizia: “esse ano eu não vou. Quero pegar onda de 20 pés, três, quatro vezes por semana. Eu surfo sozinha”. Acabou que dei sorte nesse ponto. Mas a minha decisão de estar lá durante a minha reabilitação… Se eu me distanciasse muito do esporte, seria muito mais difícil a minha volta. Então, estar presente com certas limitações facilitava muito mais e eu sentia como se estivesse trabalhando, com a adrenalina, com desafio. Eu pilotei muito na época que não conseguia surfar e que estava com muita dor. Fazia resgate direto. Você pode treinar na academia, mas depois, quando olhar para uma onda de 60 pés na sua frente, terá um troço no coração, porque não vai estar mais acostumado. Eu tinha a percepção, por já estar no esporte há um tempo, de que estar acostumada com aquele ambiente seria essencial para quando meu corpo e a minha cabeça estivessem bem e eu quisesse voltar.
Você falou de treinamento, que mudou de treinador, e de pranchas. Você pode falar de ambos?
Foi difícil encontrar uma prancha boa para Nazaré. As minhas não funcionavam. E todo mundo foi surfar com uma prancha do SPO, que é o Cartaxana, mas também não funcionou para mim. Tem muita gente que gosta, mas eu não me adaptei muito. É uma prancha diferente, bem dura e na frente o bico é bem maleável, porque o conceito é que as pessoas passem pelo bump e não o sintam. Eu fui me adaptar com uma prancha – tive sorte porque tinha acesso a ela – do alemão Sebastian Steudtner, que também está lá há muitos anos e tem trabalhado muito nesses quesitos de prancha de tow-in com um shaper dele, que é um australiano. Foi o que fez uma grande diferença, porque pude testar várias pranchas de modelos muito parecidos. Não sei exatamente qual é o segredo, ele não me conta. E hoje em dia percebo que, quando estou surfando, na verdade parece que é ele. Porque a gente é goofy, eu o assistia muito surfando, fiz resgate para o time dele e do Éric Rebière por muito tempo nesses últimos anos. E a prancha foi a que encaixou para mim. Eu fiz algumas e fiquei confiante. E, em relação aos treinos, conheci esse treinador da Iugoslávia, que mora na Áustria. Comecei a fazer uns treinos muito parecidos com os que fazia na Red Bull, mas, como lá eram muitos atletas e a gente tinha muita programação, eu não conseguia manter um ritmo para evoluir nos testes. Na Red Bull, a gente fazia muitos testes de bicicleta, de força no centro de performance. E aí com esse cara eu consegui tê-lo com mais frequência e pude trabalhar de forma muito parecida. Não é preparador físico, eles chamam de sports cientist, porque eles trabalham tudo com sangue. Elaboram todo o seu treino a partir de onde você está e para onde tem que ir. Tudo pela coleta do sangue, que é feita toda hora. Então, existe um protocolo de como evoluir, elevar a tua condição e a minha estava bem deteriorada, até porque eu estava há três anos só fazendo reabilitação e é muito diferente da rotina de treino forte. Você fica só tentando se manter ou sair daquela situação pós-cirúrgica. Quando voltei, no primeiro ano, eu treinava mais do que surfava, foi chato. Mas, hoje em dia, estou começando a equilibrar, o que fez muita diferença.
Com as cirurgias, alguma vez você chegou a pensar que elas iriam atrapalhar a sua carreira, ou sempre foi o foco fazer as cirurgias para melhorar e chegar lá mais inteira e se entregar mais para o esporte? Quais foram as barras?
As minhas cirurgias sempre foram um “salve-se quem puder”. A minha primeira cirurgia na coluna… Na verdade, eu já tinha quebrado o nariz em Teahupo’o e já era após o acidente em Nazaré. Já tinha problemas na coluna há muito tempo, devido ao tow-in, ao desgaste. No acidente em Nazaré, piorou muito e aí eu fui para o Tahiti gravar um comercial para a Chanel e lá eu estava totalmente travada e quebrei o nariz e machuquei a perna que tenho problema no ciático. E aí, quando fui fazer a operação, eu operei o nariz. Me tratava muito em Los Angeles, no centro da Red Bull. Eles tinham um projeto bem grande para eu fazer, era bem físico, dois meses para frente. Falei: “olha, eu acho que estou super bem do nariz – porque ele é super simples, você põe um gesso e em três semanas está zero –, só que a minha coluna não está boa, não consigo surfar desde o acidente em Nazaré. Eu não consigo me recuperar, deve ter algo sério acontecendo”.
Já tratava muito a coluna, mas, imagina? Eu tinha 25 anos de idade. Já tinha feito um raio-x que não apontou nada. Não tinha pensado que precisasse procurar um neurocirurgião. E a Red Bull falou: “vamos lá para o centro. Por acaso, o hospital do convênio tem um dos melhores neurocirurgiões de Los Angeles. Vamos lá para ele ver o que você tem”. Logo no meu primeiro exame, ele falou: “olha, você tem uma hérnia de disco muito grande. Eu acho que você tem uma boa chance de se recuperar de uma cirurgia que é simples, uma discectomia. Por acaso, o Tiger Woods fez, Peyton Manning e várias pessoas já fizeram. Em dois meses, três, você vai estar boa, mas, se não quiser ir direto para a cirurgia, a gente pode fazer uma injeção que dá uma sedada, melhora a inflamação e você vê se aguenta”. Aí fizemos a injeção e eu não aguentei. Duas semanas depois, ia para a minha primeira cirurgia, que era para ser a única. Voltei para a reabilitação, que ficou sob cuidados da Red Bull de Los Angeles. Em um mês, comecei a sentir muita dor, a cirurgia tinha tido uma complicação e dois dias depois eu estava operando de novo. Fiz uma segunda discectomia. É um problema que ocorre, mas é raro. O meu disco estava em vários pedaços e, como não é possível ver, a gente não sabia. Quando um pedaço foi retirado, o disco, que estava aberto e todo despedaçado, cuspiu um outro pedaço e foi para o mesmo lugar da primeira hérnia. Eu sentia muita dor e meu médico já me encaminhou para outra cirurgia dois dias depois. Ele disse que seria simples, rapidíssima e que em um mês eu estaria surfando. Todo mundo na Red Bull falou: “não, não vai ser assim. A gente vai ter que ir bem devagar, porque estamos na segunda cirurgia sem planejamento, não é o momento de acelerar”. Então foi aí que eu perdi a temporada do Hawaii, perdi a de Portugal… Foi no ano seguinte ao acidente, em 2014, que eu realmente fiquei afastada. E aí comecei a me preparar para Nazaré no fim de 2014 e início de 2015, mas com muita dor, muita limitação. A minha vida era muito limitada, eu tomava muitos remédios. E fui para Nazaré, em um projeto com a Red Bull, De Volta à Nazaré, surfei ondas boas. Não quebraram as gigantescas nesse ano, mas eu sabia que tinha alguma coisa errada. Eu nem sentava e nem ficava em pé, só surfava e ia para casa deitar. Em fevereiro, comecei a procurar outros médicos, oito deles se recusaram a cuidar do caso. Cada um falava uma coisa. E aí achei um médico que deu o diagnóstico que eu achava que era. Eu pesquisava há muito tempo, desde a minha primeira cirurgia, e já tinha escolhido a cirurgia que queria, mas nenhum médico topava. Eu tinha certeza sobre uma cirurgia que daria certo, era uma alternativa bem radical para a minha idade, que era a fusão. Eu fui atrás desse nono cirurgião, o Doutor Luiz Pimenta, por acaso daqui de São Paulo, já totalmente sem esperança, mas ele falou dessa cirurgia: “olha, no seu caso, eu só poderia fazer essa cirurgia”. Eu perguntei: “então, quando a gente opera?”. “Olha, como você já procurou outros médicos, vamos dar dois meses e se você ainda estiver querendo operar, a gente faz”. Eu falei: “pode deixar”. Fiquei dois meses sem surfar e aí operei.
Como você tinha tanta certeza sobre esse procedimento? Qual era a complexidade dessa cirurgia?
Na fusão você anula uma parte da sua coluna, porque é removido completamente o disco e substituído por uma placa, parafusos. Então, todos os ligamentos e tudo que está desgastado naquele nível é imobilizado. E eu tinha certeza que era isso, porque tinha dores absurdas, muita dificuldade de ficar em pé, vários espasmos por dia, de cair no chão. Coisas que para mim ficava óbvio que, só acabando com aquela área do meu corpo, eu teria chance de me recuperar. Ainda assim, sempre foi uma dúvida. Sempre os questionamentos: “vai ficar boa? Quanto? Vai poder treinar? Surfar quanto?”. Foi algo de dia após dia, a gente ia vendo quanto eu conseguia surfar, se era uma hora, duas horas, indo para a academia, foi indo assim.
Esse sofrimento, porque você sentiu muita dor – o que ele te trouxe de ensinamento, Maya?
Não sei explicar. Eu acho bom sofrer. Sou do time que acha que a gente melhora com o sofrimento. E eu queria surfar, não queria abrir mão e acabar a minha carreira com 26 anos. Estava fazendo tudo que podia para ter minha vida de volta, meu dia a dia em que eu pudesse surfar, treinar, viajar. A minha vida mudou muito desde então. Eu viajava demais, carregava minhas pranchas pelo mundo inteiro. Não faço mais isso, porque tenho consciência de que isso me custou muito caro. Hoje tenho outra logística. O meu maior objetivo era esse: ficar bem de saúde, surfar as ondas enormes, surfar Nazaré bem, continuar evoluindo nessa área, que é a minha área profissional e de maior interesse no surf. Reaprendi como continuar a fazer as coisas que gostava na minha vida, mas com um estilo de vida um pouco diferente.
Passa pela sua cabeça, com toda a sua história de superação, por conta dos acidentes e agora das cirurgias, que você pode influenciar as pessoas?
Passa sim, porque as pessoas falam sobre isso. Mas muitas me influenciam também, sabe? Sou extremamente motivada pelas histórias de outras pessoas. Eu assisto a muitos documentários, filmes. Quando estava em uma época de muito sofrimento, dúvida e dor, eu assistia à muitas coisas sobre outras pessoas e conseguia ganhar uma perspectiva de que a minha vida é tão pequena. Sou só eu e o mundo tão grande, tantas histórias tão mais dramáticas do que a minha. Graças a Deus, tenho essa perspectiva: consigo olhar para o próximo, para as coisas à minha volta, e ver que, apesar de tudo, eu era muito sortuda. Sou muito sortuda.
E a onda que você surfou em Nazaré, que você vai agora inscrever no Guinness e está procurando especialistas. Gostaria que você falasse do momento daquela onda. O que te vem à cabeça quando se lembra daqueles flashes?
Uma das primeiras coisas foi o frio. Foi um dia extremamente desafiador, porque estava muito frio e a gente foi para a água no escuro ainda. O swell era mesmo à noite. A gente tinha visto aquela onda do Hugo, que mal dá para ver na imagem. Eu estava na água com o Eric e a gente sabia que as primeiras horas seriam as melhores. Com a minha coluna, é super desafiador para mim, primeiro porque eu sinto frio pra caramba, segundo que eu fico dura. Então, era o tempo todo: “levanta”. Fiquei destruída depois daquele dia, foram três horas e meia e só peguei duas ondas. Toda hora a gente aquecia, porque não adiantava estar ali, dar três horas, entrar uma bomba e eu, com meu corpo todo duro. Imagina, você dentro d’água, um mar congelante, fora d’água também congelante e eu saía do zero para uma onda gigante? Então a gente ficou aquelas três horas nessa, estudando o mar, aí a corrente entrava, levantava, saía do lugar, aí você se reposicionava. O Éric Rebière é muito assim, nós dois conhecemos muito o lugar, então a gente fica o tempo todo ligado, estudando e pensando para onde vai a corrente, que horas vai entrar a série. Exige muito foco. Eu confesso que depois de três horas já estava bem desanimada. Eu estava tentando me confortar porque, por acaso, a gente estava indo na onda que o Ross Clarke-Jones foi para a direita. A gente acabou indo para a esquerda. E o Ross tirou a gente da onda, porque ele veio por trás dela. Quando a gente começou a dividir o pico, o Benjamin Sanchis pilotou tanto de trás do pico, que ele expulsou a gente da onda. E eles nem viram, ou viram e ignoraram. E aí a gente perdeu aquela onda que já estávamos esperando há um tempão. E antes disso a gente já tinha perdido a onda do Benjamin, que era a que o Éric estava querendo pegar. A gente comentou três minutos antes da onda do Benjamin. Eu falei: “cara, está ficando liso”, e ele concordou. Só que ele não falou “pula na água” e eu estava na adrenalina, com medo, estava receosa. Eu não pulei na água e dois, três minutos depois o Benjamin veio naquela onda.
“Ninguém vai me convencer de que a onda tinha 15 metros, porque a gente estava surfando em um dia em que todo mundo dava medições de mares gigantescos”
Foi uma das melhores do dia. Então, já tinham acontecido algumas coisas ali que estavam me incomodando. Aí ele falou: “olha, eu vou lá para onde veio a onda do Benjamin. Eu vou esperar, porque vai vir uma antes de entrar o vento”. Na verdade, entraram poucas séries surfáveis lá fora. Então a gente ficou ali no jogo de paciência, tanto que quando você vê a filmagem a gente está muito mais fora que todo mundo. Quando veio a segunda séria, ele veio passando pela primeira, a gente ainda foi mais para fora buscar essa série. Quando a gente estava pilotando para fora, a primeira já veio como um triângulo enorme e ele perguntou: “você quer ir nessa?”. “Não, não! Na segunda”, porque eu já pensei: “se vou na primeira e depois vem aquela série de sei lá quantas ondas…”. A gente estava sem rádio, porque já tinha acabado a bateria, mas estava com resgate e tudo. Aí eu chutei, nem sabia se teria outra. Quando a gente foi para a segunda, vi a onda vindo e entendi. Eu tenho uma leitura, ela era bem de pico e ficaria bem do jeito que imagino. É difícil de fazer essa onda porque, quando você vem do pico e começa a descer, não pode ir à base, senão ela te engole. Então ou você vem por trás dela cortando, que não é muito uma linha que eu faço, ou, seguindo o que costumo fazer, vai do pico para baixo. Só que você não pode ir à base, porque chega um momento que ela começa a ir muito mais rápido e te engole. Eu já tinha tomado um mega caldo em novembro numa onda enorme assim. Então eu tentei me reposicionar, fazer outra linha, do meio para cima, e a espuma me engoliu. Mas saí com um pouco de sorte, porque fiquei completamente dentro da espuma. E, por acaso, eu estava em um lugar que, ao invés de a espuma pegar por baixo da minha prancha, por baixo dela ficou liso e mais fácil para eu sair. O Éric estava achando que eu já tinha caído. Então foi isso, essa foi a minha única onda boa do dia, mas só queria uma. A gente também tinha pegado uma antes, bem cedo, uma que não tinha sido nada demais, lá para o outro lado do forte. Tinha pouca gente lá fora nesse dia e todo mundo comemorou. Logo depois da minha onda entrou o vento e ninguém mais surfou onda boa nesse dia. Foi a última série. Demos muita sorte, porque é uma missão. A gente estava ali esperando e há uma semana treinando juntos. Ele estava dedicado, ficando em Nazaré e ele nem mora mais em Portugal, mas sim na Espanha. A gente não queria deixar passar em branco mas, às vezes, foge um pouco do nosso controle. Que bom que a gente pegou aquela onda.
Você falou da puxada do outside, então vou fazer uma pergunta direta, até por você ser mulher. Você sente mais respeito ou desrespeito dentro d’água, principalmente com ondas desse tamanho?
Em Nazaré, eu não sinto nada. Esse é o único lugar na vida em que de fato eu surfo ondas gigantes que não sinto diferença em ser mulher. Acho que é um dos motivos que me fez ficar lá também. Eu sentia muito em Jaws e em Teahupo’o. Me sentia menos do que os caras e, muitas vezes, acuada. Não me sentia no páreo, porque são lugares que têm um localismo forte. Na época em que eu surfava ondas de tow-in eram esses os nomes em Teahupo’o, o Vetea Poto, Manoa Drollet e outros. Era bem difícil, tinha certo desconforto, porque na minha cabeça era certo que eu viveria dos restos, das sobras, e eu tinha que estar de acordo com isso. Eu digo em dias importantes, não nos médios. Em Jaws era a mesma coisa, um lugar super competitivo, com pessoas locais que competem entre elas mesmas. Eu sou brasileira e sou mulher, uma combinação meio ingrata, às vezes. Então, em Portugal, é o único lugar que não tem essa. Se vier uma bomba, eu vou tentar pegar do lado do Ross, a gente vai se bater. A gente se bateu praticamente prancha com prancha, apesar de nos amarmos e nos abraçarmos. Eu sei que sou uma das pessoas que mais pilota ali, sei que surfo e que já quase morri em dias de ondas gigantes. Todo mundo ali foi crescendo junto, você não sente como se estivesse chegando ao ambiente de outra pessoa. É uma comunidade que cresce junto. Sinto que ali não tem isso de ser mulher ou homem. Eu surfo quando quiser.
E o processo para homologar a onda e entrar para o livro dos recordes. Quanto você acha que tem de tamanho a sua onda? Me fala do processo e vamos chegar no tamanho.
A onda é difícil de ser medida, para ser sincera. Não foi uma onda que eu fui até a base, então não dá para medir da base até em cima. Não é esse tipo de onda. Ela era um triângulo. Então, entendo que exista toda uma dificuldade de medição. Existe também uma dificuldade para entender qual protocolo é esse: se é o de uma pessoa da Nova Zelândia, que diz que a onda tem que ser medida no ponto que ela está mais alta e esse momento é tido quando a crista se curva. Eu não tinha feito isso, porque estava com o Miguel, cientista das áreas humanas, e não de oceano. O professor Miguel Moreira de Portugal. A gente ficou olhando para a onda e avaliando: “esse momento está enorme, mas onde está a base?”. Eu propus: “vamos fazer um negócio? Não vamos entrar nesse problema, vamos pegar a onda quando ela já está estourada?”. E aí a gente foi para um momento mais para frente da onda, quando ela já está completamente estourada, branco e com a base em espuma. Foi assim que a gente mediu. Apesar de que eu não estou na base da espuma, senão nem teria feito a onda. Estou bem aqui no meio. Enfim, essa medição dele deu 25 metros, com quatro ângulos diferentes, dez medições em momentos diferentes de cada onda, então é uma média. Mas lembrando que é no protocolo de medição dele. O cientista da Nova Zelândia já diria que esse não é o protocolo que ele usaria.
Qual o nome dele?
Eu o chamo de Doctor Shaw. Ele disse que não poderia seguir com esse protocolo, porque ele mede a onda no ponto em que a crista está se curvando. Então, já seria outro momento da onda. Eu sei que a onda foi grande. Ninguém vai me convencer de que a onda tinha 15 metros, porque a gente estava surfando em um dia em que todo mundo dava medições de mares gigantescos. A gente também fez um e-mail para o Bill Sharpe [do XXL]. Já tinha escrito um e-mail para ele sobre o assunto cinco anos atrás, na primeira vez que fui para Nazaré. Falei que gostaria de ir para lá e catalogar o recorde feminino no Guinness e ele fugiu do assunto: “não, pois é, porque a categoria gostaria muito de ampliar a posição feminina, mas não tem esse dinheiro, e a categoria masculina é a única que mede onda, que é a do Big Wave of The Year e a gente, como Overall Performance, não tem essa medição”. Ele falou isso e eu não consegui nada naquele ano. Dessa vez, na verdade, foi a minha mãe que falou com ele, porque prefiro não me envolver, e mandou um e-mail falando que a gente gostaria de saber se isso estaria na agenda deles e que consideramos importante isso estar na divisão, para que não seja um recorde unissex. Ele respondeu dizendo que sim, que estavam estudando uma medição feminina para o Guinness e que gostaria de entender o tipo de onda que eu gostaria que fosse medida, porque em todas as minhas grandes eu caio. Então, falei para a minha mãe: “diga que eu não caí, porque ele devia estar fazendo outra coisa e não estava olhando o website dele”. Então mandamos a onda para ele dizendo: “nessa onda ela não caiu e foi no maior dia do ano. Seria legal se pudéssemos medir”. Agora estamos num momento de silêncio dele, que mostrou alguma possibilidade, mas vamos ver se ele vai dar um passo. Seria muito mais fácil se a WSL resolvesse. Se não, vamos homologar. Ele já tem todo o esquema com o Guinness, eles têm o sistema de medição que é aprovado automaticamente e colocado no livro. Mas é isso, a gente depende de uma entidade e de algumas pessoas estarem com vontade de fazer. E eles nunca abriram o protocolo. Então é difícil entender como eles fariam uma média.
Você fez da tua vida o teu esporte, a sua paixão e o seu trabalho, isso foi planejado ou as coisas foram acontecendo? Hoje, como você se comporta com essa relação?
As coisas foram acontecendo. Eu nunca imaginei que de fato viveria do esporte e tenho muita sorte, porque fazer o que a gente gosta e ter o estilo de vida, o surf proporciona liberdade. Eu ainda, que não sou competidora, tenho uma liberdade absoluta em relação ao meu ano, para onde vou, quando vou. Eu crio todos os meus objetivos e os meus desafios. Eu sou dona da minha vida e gosto disso. Apesar de que, às vezes, é difícil porque a gente se vê completamente excluído da sociedade, daquela dinâmica das pessoas que vão trabalhar e têm um objetivo dentro de uma empresa, ou então do cara que vai para o CT querendo ser campeão mundial. A gente precisa ser criativa.
Eu comecei a entrevista perguntando se você estava realizada com a última grande onda que pegou e você é uma surfista muito jovem. Aonde você ainda pode chegar, Maya?
Eu sempre fui de um objetivo para outro. Talvez no ano que vem, eu não sei como será o Performance Awards, mas eu gostaria de disputar o campeonato de Jaws, porque esse ano eu não estava no evento de Mavericks. E talvez remar mais no ano que vem, seria uma coisa boa. Eu já remei bastante esse ano em Nazaré e quero continuar esse treino com um objetivo mais em vista, de estar competindo no circuito e continuar a minha vida normal.
Você pode assinar aqui a petição escrita por Maya Gabeira para que o Guinness aceite a inscrição do seu recorde independentemente da WSL.